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Portugal em Leipzig, “um território de língua e não um território nacional”

Portugal em Leipzig, “um território de língua e não um território nacional”

Os autores de língua portuguesa representam actualmente apenas 0,4 por cento dos livros traduzidos em alemão. O número é considerado inaceitável pelos responsáveis pela presença portuguesa na Feira do Livro de Leipzig, que querem inverter a situação

Depois de uma procissão de vampiros em marcha muito lenta, chega-se a um jogo em terra batida onde Darth Vader passa a bola a Sherlock Holmes ante o olhar curioso de uma figura que parece um gnomo. Há colegiais japonesas, fadas, personagens da mitologia, caveiras que pregam sustos de mentira. Tudo normal ao terceiro dia. No primeiro, quem nunca esteve na Feira do Livro de Leipzig e entre pelo pavilhão dedicado à manga e à banda desenhada passa por momentos de alguma perplexidade. Será mesmo isto?

É. Uma multidão de gente mascarada dos seus heróis. A maior parte, adolescentes e jovens adultos que durante os quatro dias da feira alteram a imagem da cidade, como se vivessem dentro dos livros que lêem; passeiam pelas ruas, andam de eléctrico, concentram-se no pavilhão temático que parece um planeta de fantasia e dispersam-se por todos os outros, ouvem leituras de poesia, sentam-se entre a plateia que assiste aos debates sobre edição, assistem a conversas com autores, diluem-se entre os 200 mil visitantes média anual da feira. Os seja, tudo normal em Leipzig, no fim da edição de 2019 da Buchmesse e a dois anos de Portugal ser país tema

É o quarto ano em que o país está presente na feira de Leipzig por iniciativa da Embaixada de Portugal em Berlim e do Instituto Camões em reacção a um facto: o reduzido número de autores de língua portuguesa publicados na Alemanha.

“É inaceitável num país de leitores como este, os autores de língua portuguesa representem 0,4 por cento do mercado de traduções”, diz Patrícia Severino. A conselheira cultural da embaixada sublinha esse número como revelador do desconhecimento que existe actualmente desses autores na Alemanha e justificativo de uma série de incentivos à tradução e promoção da literatura em português naquele país. 

Num contexto destes, como se pode dar a conhecer um autor cuja língua de escrita é inacessível aos leitores? Que perguntas lhes são feitas que permitam furar essa ignorância? “Os escritores portugueses não traduzidos têm essa desvantagem da língua inacessível”, diz ao PÚBLICO Ana Margarida de Carvalho.

A escritora está em Leipzig, não está traduzida em alemão, mas está a falar para alemães, a tentar chegar a eles, acompanhada por outros autores, que, como ela, também não estão traduzidos. “Caminhamos todos sobre ombros dos gigantes que foram Pessoa, Saramago, Sophia e agora Lobo Antunes. E isso abre-nos pelo menos a porta da curiosidade dos leitores longínquos”, precisa.

Ana Margarida de Carvalho acaba de chegar de Praga, segue para Salzburgo e conta que na Europa Central a pergunta que mais lhe têm feito é “sobre o papel do mar na minha/nossa literatura”. Ou seja, “porque é que o mar está sempre presente nos romances e qual a sua função narrativa? De facto, sendo nós um país de mar, ele está muito presente nem que seja inconscientemente. A nossa literatura cheira a maresia, que é algo que poucos aqui saberão exactamente o que é. E o mar invadiu-nos a literatura desde tempos medievais, assim que nós historicamente o invadidos a ele. Para mim, o mar está sempre no horizonte dos romances. Esta luta contra o mar que nos leva a terra, nos afoga, naufraga e também nos alimenta. Além do valor simbólico. O mar é uma metáfora literariamente muito arável. Também psicanaliticamente. Vemos-lhe a superfície, mas não sabemos os perigos, os monstros e os encantos que ele oculta nas profundezas.”

A nova literatura de Portugal

É uma das mitologias. Parece inevitável falar de mar quando se fala de literatura portuguesa. Mas continuemos a seguir a curiosidade alheia sobre os nossos “desconhecidos” autores. Ana Margarida de Carvalho, Afonso Cruz, Joana Bértholo e Valério Romão são quatro dos dez autores da delegação trazida a Leipzig este ano.

Sexta-feira, dia dois do evento, às sete da tarde, já noite, já a feira fechada por esse dia, na zona das avenidas largas da cidade, entra-se num bar e chega-se a um espaço reservado a espectáculos. Estão sentados a uma mesa, no palco, virados para um anfiteatro cheio. Foram apresentados como representantes da “nova literatura de Portugal” e respondem a perguntas que os pretendem dar a conhecer. Os moderadores, o jornalista português Ricardo Duarte e o professor de literatura portuguesa Jobst Welge, perguntam-lhes pelo contexto da literatura em que escrevem, a ideia de país, as circunstâncias em que cresceram e começaram a escrever, fora dos condicionamentos de gerações anteriores de onde vieram alguns dos poucos nomes ali conhecidos, como os já referidos José Saramago ou António Lobo Antunes, e como é que a sua literatura se deixa ou não contaminar pela política.

“A política é muito importante, mas o trabalho do escritor é muito moroso. Demoramos anos a escrever um livro, e quando falamos de política, especialmente sobre a actualidade, ficamos muito desabilitados. Esse é mais o trabalho de um cronista, do jornalista. A nós cabe-nos ficar com alguns princípios, perspectivas históricas sobre a política”, diz Afonso Cruz, em português, interrompendo a sua exposição para que as suas palavras sejam traduzidas para alemão.

A conversa segue. O autor intercala a sua fala com a da tradutora. Sobre se o escritor deve ou não ter um papel político, sobre a complexidade inerente à resposta a essa pergunta, sobre o espaço de liberdade que lhe é reservado. “Concordo que o escritor deve fazer o que lhe apetece e escrever sobre o que lhe apetece, mas percebo que, quando não vivemos em liberdade, não nos podemos alhear das questões políticas.”

Ana Margarida de Carvalho concorda e afirma que interage com a sociedade de forma política e também reservando-se um espaço de liberdade criativa. Mas diz: “Quem tem de dar as soluções são os políticos. A literatura não serve para dar respostas, mas para fazer perguntas”.

Joana Bértholo acrescenta: “A politização de um texto está eminentemente na leitura e não no escritor.” E diz: “Sento-me a escrever cheia de intenções, mas depois tento ter a percepção que isto não é um tiro ao arco, a flecha não vai acertar onde quero que ela acerte, por muita pontaria que eu tente fazer. O texto político não pertence à minha intenção, mas à vossa leitura.”

Depois da tradução, é a vez de Valério Romão. “Não tenho qualquer tensão política, tento não seguir as notícias. Há pessoas que querem mudar o mundo, e salvar o planeta, e acabar com as alterações climáticas... Eu só gostava de manter o meu quarto arrumado algum tempo. Sinto-me muito pequeno, já me sentia pequeno quando pertencia só a Portugal, ainda me sinto mais pequeno dentro de um país muito pequeno e muito impotente face a tantas coisas que acontecem todos os dias a uma velocidade que já não é a minha. A minha tentativa é manter-me minimamente são e minimamente feliz.”

Incentivos à tradução

Os quatro autores viram excertos de livros seus traduzidos e tiveram leituras públicas deles. Como aconteceu ainda com João Luís Barreto Guimarães ou o moçambicano Lucílio Manjate, Luís Filipe Castro Mendes e Raquel Nobre Guerra tiveram edições alemãs da sua poesia, e o angolano José Eduardo Agualusa viu publicado em alemão o seu último romance. De resto, leu-se em alemão Sophia de Mello Breyner no ano do seu centenário, e leu-se também Camões e Yvette Centeno, escolhas portuguesas de editores alemães numa lista de 190 nomes  todos os autores de língua portuguesa publicados na Alemanha, um número que os responsáveis pela participação de Portugal na Feira de Leipzig querem ver aumentar.

Já este ano, haverá a publicação de Caderno de Memórias Coloniais e A Gorda, de Isabela Figueiredo, e, em 2020 e 2021, aguardam-se os efeitos da edição deste ano da feira e do programa especial de apoio à tradução e edição de autores de língua portuguesa para língua alemã.

Apresentado precisamente em Leipzig, no dia de abertura da feira, este é um projecto conjunto do Instituto Camões e da Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas. É um complemento aos programas já existentes de apoio à tradução e aos custos de edição, ou seja, um programa extra que quer incentivar a publicação do maior número de traduções de obras a sair até 2021.

A data limite para as candidaturas é 29 de Novembro e as editoras que se candidatem saberão do apoio até 14 de Fevereiro de 2020. Todos os editores da Alemanha, Áustria e Suíça, que publiquem desde esse dia até Leipzig 2021, podem candidatar-se, sem limite de projectos, a esse programa de apoio extra. Iniciativas semelhantes aconteceram em Turim em 2006, Bogotá em 2013 e, mais recentemente, em Guadalajara em 2018.

“Queremos mostrar que este é o território da língua portuguesa e não um território nacional”, afirma Patrícia Severino, acrescentando que já é possível fazer um balanço desta edição. “Temos um contexto diferente, um stand maior que permite mais livros expostos, e um auditório para os nossos eventos”.

Na organização da participação portuguesa em Leipzig desde 2016, ano da estreia, Patrícia Severino salienta a importância da “consolidação” da presença, com mais autores, de editores de língua portuguesa este ano com Mbate Pedro, da editora Cavalo do Mar (Moçambique), e Zeferino Coelho, da Caminho e de muitas iniciativas pela Alemanha, seja na Feira do Livro de Frankfurt, onde voltou a haver autores portugueses desde 2016. “A parte das conversas e das leituras é fundamental, porque é aí que as pessoas têm acesso aos excertos de obras que vamos traduzindo ao longo do ano. E é interessante para os alemães em geral o facto de termos assumido isto [Leipzig 2021] como um território de língua e não um território nacional”. 

O PÚBLICO viajou a convite da Embaixada de Portugal/Instituto Camões em Berlim.

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