expresso.ptexpresso.pt - 24 mar. 23:00

Pimenta na língua (e na ‘pelykula’)

Pimenta na língua (e na ‘pelykula’)

Num dos seus filmes mais divertidos, Edgar Pêra concentra 24 anos de cumplicidades com a pluma afiada do poeta Alberto Pimenta. Abram alas para “O Homem-Pykante...”

De um lado, temos Pimenta, Alberto de seu nome, o escritor, o performer, o provocador, eternamente irreconciliado com as normas — é um dos vultos da poesia e do pensamento portugueses desde a segunda metade do século XX. Do outro, temos Pêra, chamado Edgar, cineasta igualmente único, responsável por uma obra experimental que não cessa de se questionar há mais de três décadas. Acontece que o segundo, isto em 1994 — foi na mesma altura em que ele realizou “SWK4” e “Manual de Evasão”, dois dos seus melhores filmes — cruzou, tanto quanto sabemos por mero acaso, o caminho do autor do celebérrimo “Discurso do Filho da Puta” numas Conferências do Inferno em que Pimenta, igual a si próprio, pintou a manta. E Pêra que, vá para onde for, tem sempre uma câmara à mão, seja de super 8mm ou de telemóvel (suponho que em 1994 Pêra ainda não tinha telemóvel...), começou ali mesmo a filmá-lo, e mais assiduamente desde 2002, e nas mais variadas situações e contextos: conversas em casa do escritor, performances de rua, happenings (a arte de Pimenta é suficientemente generosa e permeável à espontaneidade e à improvisação), leituras, exposições... Um filme começou então a ganhar forma sem que Pêra soubesse ainda que filme poderia eventualmente fazer. A tudo isto acrescentou o cineasta algum material de arquivo fotográfico e televisivo, nomeadamente aquele que fixou Pimenta, em 1977, numa performance no Jardim Zoológico de Lisboa em que este se trancou numa jaula com um chimpanzé.

Finalmente terminado em 2018 e, desde quinta-feira, em exibição nas salas portuguesas, “O Homem-Pykante — Diálogos kom Pimenta”, mais um título crismado por Pêra com a sua habitual gramática ‘sonika’ e um dos seus mais profundos e divertidos filmes de sempre, é muito mais do que um ‘documentário sobre alguém’ (Alberto Pimenta, no caso) ou ‘alguma coisa’. Franzindo o sobrolho às convenções do biopic e à vergada noção de homenagem desde o primeiro fotograma, o que estes diálogos nos dão é toda a abrangência da vida e do pensamento de Pimenta num filme feito de cumplicidades e de tempo, e se me é permitido insinuar isso, de algo mais, porque estas linhas paralelas, estas provas de contacto, me parecem de uma importância capital para o cineasta lisboeta. Quando Pimenta nos fala do que há de específico na primeira fase da sua poesia, e desta como “um jogo de repetições e de remissões vocabulares e fonéticas (…) e de uma questão que articula costumes e hábitos do ponto de vista da sua racionalidade e da sua irracionalidade (...)”, não está ele, no fundo (e sem que essa tenha sido a sua intenção naquele contexto), a falar de todo o trabalho de Edgar Pêra? Pimenta fala de si próprio, fala dos Homens, da Bíblia e do princípio que era o verbo (“mas que princípio é esse?!”, exclama), da infância e da morte, também de Deus, em tiradas inspiradas, “... e a porta, tão importante já nas religiões primitivas, começa a ser símbolo da nossa própria vida, porque a vida é feita de entradas e de saídas (…) e Deus está nas portas, e é nesse lugar em que passas de um lado para outro que encontras ou perdes Deus, seja Deus o que for para ti. Deus é aquele que te permite a euforia de viver, a falta de Deus é o que te a tira...”. Em simultâneo, Pêra reage à sumarenta colheita com texto off ou in, representações da sua habitual trupe de atores, som contra imagem, imagem contra som, numa “divina multi(co)média” que só podemos recomendar vivamente.

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