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Tratado das relíquias

Tratado das relíquias

Hoje, as crenças continuam baralhadas e há muitas religiões sem Deus: o sagrado e o profano não se entendem.

— Aqui está! — declarou a Titi. — Se entendes que mereço alguma coisa, pelo que tenho feito por ti, desde que morreu tua mãe, já educando-te, já vestindo-te, já dando-te égua para passeares, já cuidando da tua alma, então traze-me desses santos lugares uma santa relíquia, uma relíquia milagrosa que eu guarde, com que me fique sempre apegando nas minhas aflições e que cure as minhas doenças.

E pela vez primeira, depois de cinquenta anos de aridez, uma lágrima breve escorregou no carão da Titi, por sob os seus óculos sombrios. (1)

Em tempos de grandes rigores ortodoxos, intransigências e protestos com os papas e o catolicismo de Roma, João Calvino (1509-1564) publica em Genebra o seu Tratado das Relíquias (1543) com uma recomendação inicial sobre o grande benefício que seria para a cristandade se se fizesse o inventário de todos os corpos de santos e relíquias que se encontrassem na Itália, França, Alemanha, Espanha e outros reinos e países. A lista é interminável, especialmente no que diz respeito aos despojos da Paixão de Cristo: verónicas, pregos, cruzes, túnicas, cabelos, coroa de espinhos, sangue, lágrimas, esponjas, etc. Reunindo as relíquias do Santo Lenho espalhadas por catedrais, abadias, igrejas e capelas, diz Calvino que se teria de arranjar um barco bem grande para carregar tudo (2).

A questão era séria. A tradição medieval da veneração das relíquias tinha atingido uma proliferação incontrolável e aquilo que era resultado de um sentimento de veneração tinha-se tornado um negócio vultuoso para a hierarquia da igreja e uma idolatria corrompida para os crentes. Não havia corporação, cidade ou região que não tivesse os seus santos patronos, confrarias, os seus símbolos, crenças e rituais de devoção que ofuscavam e distorciam a verdadeira mensagem de Cristo, focando a fé e a veneração em pedacinhos de osso, restos de tecido, corpos embalsamados, cabeças, unhas…, prodígios fervorosamente venerados, milagreiros, propiciadores de indulgências plenárias, remissão de pecados e salvadores de almas tolhidas, iluminados por velas e candeias, incensados, transportados em procissões, expostos com grande pompa, sermões e missas, verdadeiros tesouros, a maior parte falsos, guardados em relicários de cristal de rocha, madeiras finas, prata, ouro e pedras preciosas.

Por esses tempos, Emanuel Felisberto, duque de Sabóia e suserano feudal de Genebra (1528-1580), tratava de levar a suprema relíquia, o Santo Sudário, para a catedral de Turim, legitimando o poder da casa de Sabóia. O seu filho, Carlos Emanuel I, não olhou a despesas para que a arquitectura e o urbanismo de Turim reflectissem a magnificência da família, o poder e a importância cultural de Turim. A Piazza Castello era um dos pontos altos dessa cenografia que culminava com o brilhantismo barroco da capela do Santo Sudário de Guarino Guarini (3). 

Hoje, as crenças continuam baralhadas e há muitas religiões sem Deus: o sagrado e o profano não se entendem, não se sabendo ao certo o que se sacraliza ou o que é para uns a profanação que outros não vislumbram; as ortodoxias e os extremismos religiosos aparecem em todo o lado; o povo perdeu a inocência; as cruzes e os altares entraram nos videoclips; os vampiros e lobisomens andam em todas as televisões; o outro mundo vai na Fox em episódios; a natureza está de volta com os seus génios e demónios; os lugares sagrados nunca tiveram tanta gente; a frequência das missas anda por baixo mas os concertos e os estádios nunca tiveram tantos fiéis; a fé inundou o ciberespaço; os anjos nem sempre têm asas; a Terra Santa está a ferro e fogo como sempre; também há romarias nos centros comerciais ao domingo à tarde e nos festivais de Verão regados com cerveja; festas há sempre, mas os santos padroeiros medem concorrência com o festival da castanha, da alheira, do vinho ou do chocolate; o Pai Natal é patrocinado pela Coca-Cola; os génios dos lugares dedicam-se ao turismo; a globalização mistura as divindades exóticas com as dos panteões oficiais; os cultos domésticos mudaram-se para junto dos ecrãs e para devoções individuais e não é tudo o que há.

Coloquem-se então as relíquias profanas em arcas cristalinas expostas nos lugares públicos para que o povo organize procissões motorizadas em infinitos giratórios, à volta, à volta, incessantemente, 2π r num perímetro perfeito de roda da fortuna em sentido único. Se Calvino aparecer, que circule e que deixe a cada um as suas crenças e rodopios. Se lhe der para a mística, alguém que lhe explique o tratado do interaccionismo simbólico, o papel da partilha de significantes e significados na organização da sociedade e nas suas representações colectivas.

Como as cidades se dissolveram em territorialidades difusas, é necessário colocar os relicários nos lugares certos; naqueles, como nas antigas praças, por onde circula mais gente. Os fiéis atormentados e os iconoclastas devem dar tantas voltas quanto a duração das ladainhas que constantemente vociferam em surdina.

1. Eça de Queiroz (1951), A Relíquia, Porto, Lello & Irmãos Editores, pp.81/82 (1.ª ed., 1887)

2. In Jean Calvin, Traité des Reliques suivi de L’Excuse a Messieurs les Nicodémites, Introduction et notes para Albert Autin, Paris: Editions Bossard, 1921, p.113

3. John Beldon Scott (2003), Architecture for the Shroud: Relic and Ritual in Turin, Chicago: University of Chicago Press
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