expresso.ptexpresso.pt - 24 mar. 10:30

O lado oculto da Lua

O lado oculto da Lua

A propósito de um polémico documentário sobre Michael Jackson, aqui se discorre sobre delação e denúncia, sobre dúvidas e certezas, e sobre esse misterioso conceito a que cada vez se dá menos importância: a ética por oposição às consciências que se velam em função das oportunidades que têm para se expor, quando não para se exibir

Pode um delator ser considerado um herói? Deve um denunciante ser tratado com distinção? Nenhuma das perguntas tem uma resposta fácil. Claro que, para os que acham que todos os meios justificam os fins, que os fins justificam todos os meios, a resposta às duas questões estará, aparentemente, facilitada. O problema é, acima de tudo, de natureza ética e, quando assim é, torna mais complexas as equações de uma variável que encerra em si mesma um vasto conjunto de complexidades.

Vivemos num tempo de altíssimo escrutínio. Ainda bem, quando este decorre do apuramento de factos que devem conduzir à verdade. Ainda mal quando, vertidas nas redes sociais, as suspeições lançadas sobre alguém, os ódios convertidos em vingança pessoal, os rumores em nome de um protagonismo meramente narcísico, conduzem a situações de injustiça e edificam estigmas demasiadas vezes irreversíveis. Por cá, o país descobriu num passado recente, e debateu-a ainda mais recentemente, a questão da delação premiada. Exposta e instituída no Brasil (bem como em outros países) sobretudo a propósito do caso Lava Jato, a delação premiada tem no verbo a sua maior perversão: será inteiramente justo (e a Justiça não pode ou não deve ter meio termo) premiar de forma direta ou indireta os direta ou indiretamente implicados em atos passíveis de serem vistos - e julgados - como criminosos? De outra forma: pode um bem maior sobrepor-se a um mal que é apontado e assumido como menor?

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Vem esta reflexão a propósito de várias e mediáticas revelações assumidas por intervenientes de grande porte, sendo que a última delas diz respeito ao documentário da Netflix a propósito de Michael Jackson.

Antes do polémico produto televisivo, importa recordar os testemunhos de figuras como Edward Snowden, Julian Assange e o inenarrável ex-advogado de Donald Trump Michael Cohen.

No primeiro caso, o analista de sistemas tornou públicos detalhes dos programas de vigilância e segurança da National Security Agency. Parte integrante do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, a NSA esteve envolta durante um largo período de tempo em secretismo, o que tornou ainda mais apetecível qualquer revelação sobre as suas funções -- essencialmente, proteger o sistema de comunicações dos EUA e análise de informação.

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O próprio Snowden garantiu que a NSA tinha acesso, com facilidade, a intercetar informações de qualquer cidadão, como correio eletrónico, palavras-passe, registos telefónicos ou de cartões de crédito. Snowden divulgou no jornal britânico “The Guardian” e no norte-americano “The Washington Post” as informações a que teve acesso enquanto funcionário da agência.

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No segundo caso, Assange tornou-se célebre através da Wikileaks, uma vasta plataforma de exposição de inúmeros documentos, nomeadamente da administração norte-americana, mas não só, muitos deles comprometedores para a classe política e dirigente de vários países. As fugas de informação são o grande e inesgotável manancial das informações expostas ao público pelo australiano que se viu envolvido numa polémica quando, em 2010, foi acusado de violação e abuso sexual. Na internet logo circularam rumores segundo os quais Assange estaria a ser vítima de uma conspiração...

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O terceiro caso é mais recente e reporta-se ao momento em que o mundo, atónito, ouviu o depoimento de Michael Cohen perante o Congresso dos Estados Unidos. Durante cerca de oito horas, o antigo advogado de Trump descreveu o seu ex-cliente como “racista”, “vigarista” e “batoteiro”, entre outros encómios. Há, no entanto, uma frase que merece eventualmente mais destaque: “Tenho vergonha de ter participado na ocultação dos atos ilícitos do sr. Trump, em vez de prestar atenção à minha própria consciência.”

Peço imensa desculpa pelo ridículo do paralelismo, mas a declaração lembra-me os condutores que deixam o carro em 2ª fila, onde quer que seja, deixando os quatro piscas ligados como atenuante de um ato que sabem ser condenável.

Michael Cohen foi colaborador próximo, íntimo de Donald Trump durante mais de uma década. E é precisamente no final dessa colaboração, e quando está a braços com a justiça norte-americana, que a consciência do advogado renasce numa espécie de redenção forçada. Pode ter razão em tudo o que diz, mas a amplitude do que fez -- do que assumiu ter feito -- enfraquece sem margem para dúvida o suposto poder do seu ato de contrição.

E eis-nos chegados, enfim, à massiva polémica que envolve o mais recente documentário sobre Michael Jackson e sobre as acusações de abuso lançadas sobre o cantor e performer por dois adultos que, enquanto crianças, conviveram de perto com o ícone da música pop. James Safechuck e Wade Robson são precisos e detalhados quanto ao comportamento que o mais famoso -- “notorious”, diria eu -- dos irmãos Jackson manifestou durante o tempo que estiveram (demasiado) próximos.

Sem outro juízo de valor que não seja a condenação inequívoca de quaisquer tipo de abusos perpetrados seja por quem for e em que circunstâncias for, permito-me, a bem da equidade, sublinhar a ausência de contraditório nas quatro horas do documentário (e outras, diria eu, que legitimamente não mereceram figurar na edi��ão final). Claro que não ficamos descansados (bem pelo contrário, ficamos em desassossego) com as revelações apresentadas em “Leaving Neverland”. Elas são desconcertantes, desconfortáveis, incómodas, chocantes e merecedoras da maior atenção.

Mas, pergunto sem qualquer malícia, não seria o documentário mais preciso (e mais precioso) se ouvisse igualmente o lado do acusado? Não ficaríamos nós, o público, mais esclarecidos se todas as partes integrassem o enorme puzzle que foi o conjunto de relações muito duvidosas, e não menos escandalosas, que Jackson terá mantido com crianças no seu rancho que parece agora de pesadelo?

O documentário de Dan Reed surge exatamente 10 anos passados sobre a morte de Michael Jackson (25 de junho de 2009); será uma coincidência que assinala a mórbida efeméride. Mas aqui ocorre-me uma pergunta: por que razão um obscuro produtor austríaco que trabalhou de perto com Michael Jackson em digressões e vídeos veio agora – e só agora – dizer que tudo no documentário é verdadeiro e que “ninguém conseguia travar Michael”, a quem chama sem rodeios, predador?

Se Rudi Dolezal (assim se chama o produtor) sabia, desde 1992, que o comportamento sexual de Jackson era impróprio, ainda mais com crianças envolvidas, por que motivo nada fez, nada disse, nada revelou no tempo próprio? A explicação, dada pelo próprio, é esclarecedora: “Se a lenda Michael Jackson for destruída por este documentário, só há uma pessoa responsável por isso: o próprio Michael Jackson; mais ninguém.” E assim deixa incólume uma consciência cívica e moral, e assim se iliba de cumplicidade e de moral uma série de comportamentos observados e silenciados.

Não procuro razões nem culpados na análise ao controverso documentário de Dan Reed. Lembro, tão simplesmente, que um documentário não é nem pode ser um tribunal. É uma narrativa que parte da perspetiva de quem a idealizou. Neste caso em concreto, não me parece ser igualmente um trabalho jornalístico, uma vez que não tem contraditório.

Sei por outro lado que, tal como no desporto, também na música as paixões ultrapassam em muito a razão, pelo que é natural que as posições se extremem quanto à observação e conclusões de “Leaving Neverland”.

Permito-me por isso optar por uma “terceira via”. Chama-se Verdade e, enquanto não for, ela sim, escrutinada por inteiro, o melhor mesmo é recorrer ao tempo e ao que ele possa revelar para que, dessa forma, os postulados apriorísticos de hoje possam tornar-se certezas amanhã.

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