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O boicote de uma “parede” para derrubar a tuberculose

O boicote de uma “parede” para derrubar a tuberculose

Hoje é Dia Mundial da Tuberculose, doença latente em dois mil milhões de pessoas no planeta e que rouba cerca de dois milhões de vidas por ano. Em Coimbra, há uma equipa de cientistas que não desistiu da luta para derrotar a fatal micobactéria

Um dos mais importantes trunfos da tuberculose é uma “parede” que esta micobactéria constrói à sua volta e que impede o nosso sistema imunitário de a atacar. Esta sua “armadura” é essencial no seu ataque ao hospedeiro, ou seja, nós. Uma equipa de investigadores do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra (CNC) – que fez para o PÚBLICO a banda desenhada que acompanha este texto – tem procurado boicotar esta fortaleza que, uma vez derrubada, tornará a micobactéria mais fraca e vulnerável. Os cientistas já identificaram “quem” fabrica os tijolos que servem para erguer esta parede e “quem” os transporta. Ou seja, já foram identificados vários genes envolvidos na produção de enzimas que servem para transportar os “tijolos”. Também já foram encontradas moléculas que poderão bloquear a função das enzimas codificadas por esses genes. Agora, é “só” boicotar a empreitada.

A Mycobacterium tuberculosis existe há milhares de anos, mas ainda guarda demasiados segredos. Um dos mais importantes passos para desmascarar esta micobactéria foi a sequenciação do seu genoma. “Ainda não conhecemos a função de cerca de metade dos genes do genoma de Mycobacterium tuberculosis, um ‘puzzle’ de 4 mil ‘peças’ que devemos completar para melhor compreendermos a biologia desta bactéria e para dispormos de mais ferramentas para desenvolvermos estratégias para a combater”, contextualiza Nuno Empadinhas, investigador do CNC. As estratégias passam, necessariamente, por conhecer o inimigo. Quanto mais soubermos, melhor.

Sabemos já que estas bactérias “possuem uma parede que funciona como uma “armadura” e que as protege de agressões como as que são desencadeadas pelo sistema imunitário para as tentar destruir”, explica Nuno Empadinhas ao PÚBLICO, numa introdução ao projecto que há já alguns anos coordena no CNC com a investigadora Susana Alarico, entre outros colaboradores, e que também conta com o apoio de investigadores da Universidade do Porto, da Universidade do Minho, da Universidade de Guelph, no Canadá, e da Universidade de Cambridge, em Inglaterra.

No centro desta investigação está a tal parede robusta que é construída por centenas dos genes da Mycobacterium tuberculosis. “A construção da parede depende do fornecimento de ‘tijolos’ produzidos no interior da bactéria e que são transportados por estruturas especiais (polissacáridos metilados) para o local onde a parede é erguida”, explica, adiantando que há uma década não se sabia ainda quais eram os genes envolvidos na produção desses polissacáridos. “O nosso grupo desvendou a função de vários destes genes, adicionando novas “peças” importantes ao puzzle”, diz.

E agora? “Sendo estruturas essenciais para o transporte de “tijolos” para a parede das bactérias, tentaremos bloquear a sua produção, utilizando moléculas (compostos químicos) específicas que provavelmente terão que ser sintetizadas. Bloqueando a produção destes polissacáridos, a parede deixará de ser erguida e o efeito será letal para as bactérias”, resume. Até porque, esclarece, sabe-se que muitos dos genes desta via foram considerados essenciais ao crescimento da bactéria, significando que, se o gene não produzir uma enzima funcional, a bactéria não sobrevive”. Assim, as moléculas inibidoras que impedem a construção da “parede” da bactéria poderão vir a ser eficientes antibióticos, se passarem com sucesso todo o exigente (e demorado) processo de validação e testes em humanos.

Parece fácil, mas – obviamente – não é. Também pode parecer que já estamos perto de um final feliz, mas – infelizmente – a solução ainda poderá demorar muito tempo. Os cientistas querem derrotar a tuberculose, que, apesar de poder soar como uma velha e distante preocupação, continua a ser uma prioridade de saúde global e actual. O número de casos tem vindo a diminuir, mas a ameaça permanece, com o aparecimento de estirpes multirresistentes aos antibióticos, a par das associações que têm sido feitas por cientistas que parecem juntar esta infecção ao perigoso aliado da pandemia da diabetes. O ideal era encontrar novos antibióticos que fossem mais eficazes em menos tempo de tratamento (actualmente, o tratamento da tuberculose arrasta-se durante vários meses). A equipa do CNC é um dos grupos de investigação que poderão estar perto dessa meta, após a identificação dos genes que serão potenciais alvos e das moléculas inibidoras que serviram de arsenal.

Assim, se parou neste texto com a sensação de estar a ler sobre um problema de saúde que pertence ao passado e que não afecta Portugal, vai descobrir que está redondamente enganado. “Ao falarmos de tuberculose no século XXI, em que viajamos para o outro lado do mundo em horas, a baixa incidência da doença num país como o nosso não é preocupante”, admite Nuno Empadinhas, reconhecendo que “o Programa Nacional de Tuberculose tem sido absolutamente essencial e garante a monitorização e eventual aplicação de medidas relacionadas com cadeias de transmissão, entre outras linhas de acção cruciais”.

O mais recente relatório do Centro Europeu para a Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC) e da Organização Mundial de Saúde (OMS) para a Europa refere-se ao ano de 2017 e assinala que Portugal regista menos casos de tuberculose, mas ainda está acima da média europeia (a incidência em Portugal é de 17,5 casos por cada cem mil habitantes, enquanto na UE não vai além dos 10,7 por cada cem mil).

Mas baixar a guarda só porque a incidência parece estar a cair de forma consistente nos países mais desenvolvidos pode colocar-nos em muitos maus lençóis, avisa Nuno Empadinhas. “É preciso continuar a investir em novas estratégias de luta contra a tuberculose”, reclama, lembrando que desde 2015 os esforços contra a doença se intensificaram. Recorda as declarações de compromisso governamentais e ainda uma reunião da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, em Setembro passado, “para debater exclusivamente esta doença, o que atesta a gravidade do problema, que ameaça ficar fora de controlo a curto prazo”.

Surge, assim, uma outra parede que muitos terão construído à sua volta e que os pode impedir de ver o problema da tuberculose como uma prioridade de saúde global e actual. Isto junta-se à fortaleza da própria micobactéria, que serve para sua defesa e eficaz estratégia de ataque ao mesmo tempo. Há, portanto, duas paredes importantes para derrubar. 

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