rr.sapo.ptOpinião de Francisco Sarsfield Cabral - 23 mar. 10:47

Os ingleses e o Continente

Os ingleses e o Continente

As relações do Reino Unido com a integração europeia são há décadas tortuosas e complicadas. Os problemas do Brexit são o culminar dessa tendência.

As trapalhadas do Brexit vieram da parte britânica. Talvez porque os defensores da saída da UE não esperavam ganhar o referendo de junho de 2016, nada prepararam para organizar essa saída. David Cameron, o primeiro-ministro conservador que convocou o referendo, também não preparou essa saída, porque esperava que ganhasse o “remain” (ficar na UE) na consulta popular.

Mas as relações entre o Reino Unido e a Europa continental sempre foram complicadas. O império britânico, tão vasto que nele o sol jamais se punha, já no século XVIII dava ao governo do país um poder internacional considerável, baseado numa poderosa Marinha. Isto, mesmo depois de perder a sua colónia na América do Norte – os Estados Unidos. Essa política internacional visou, durante séculos, evitar a emergência no continente europeu de uma potência dominante, o que frequentemente implicou dividir os países continentais, pondo-os uns contra os outros.

A revolução industrial começou no Reino Unido, reforçando o seu papel de líder mundial no século XIX. Só na transição para o século XX essa liderança começou a ser ameaçada pelos progressos industriais na Alemanha e nos EUA.

Uma conhecida anedota (talvez real) revela o sentido de superioridade dos britânicos. Num dia de forte nevoeiro na Canal da Mancha, alguns jornais ingleses titulavam em grandes letras: “Nevoeiro no Canal: o continente isolado”.

O discurso de Churchill

O Reino Unido, com a preciosa ajuda americana, venceu a II Guerra Mundial. Mas o esforço de guerra deixou o país de rastos. E começava a sentir-se o movimento descolonizador, ameaçando a permanência do império britânico, nomeadamente na Índia e em África.

Winston Churchill foi um extraordinário primeiro-ministro, que manteve o moral dos britânicos durante os ataques alemães na II guerra mundial. Mas em 1945 perdeu as eleições. Em setembro do ano seguinte, Churchill, num discurso em Zurique, fez um apelo apaixonado à criação “de uma espécie de Estados Unidos da Europa”. E previu, lucidamente, que o primeiro passo nesse sentido teria de passar por uma parceria entre a França e a Alemanha, países que deveriam liderar essa Europa unida.

Só que Churchill era também um grande defensor do império britânico. Por isso não incluiu o seu país nos tais Estados Unidos da Europa. “Nós, britânicos, temos a nossa Commonwealth de nações”, explicou. Começaram aí os equívocos sobre o Reino Unido e a integração europeia.

Integração económica e política

Na década de 50 do século XX, na maioria dos países europeus havia consciência de que teria de existir maior união na Europa, num mundo dominado por duas superpotências, os EUA e a União Soviética. Com pequenos mercados nacionais, os europeus não conseguiam as economias de escala, que estavam na base de uma boa parte do poderio económico americano.

Em 1952 seis países europeus – França, Alemanha, Holanda, Bélgica, Itália e Luxemburgo – criaram a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA). Esses países desejavam aprofundar a integração europeia, nomeadamente no plano político. O Reino Unido compreendia a necessidade de integração no campo económico e defendia a criação, na Europa Ocidental, de uma grande zona de comércio livre – mas rejeitava a integração política.

Os seis países da CECA avançaram para a Comunidade Económica Europeia, que era mais do que um mercado comum. Por exemplo, o Tratado de Roma (1957) já previa votações por maioria no Conselho. Os britânicos tiveram que se contentar com uma pequena zona de comércio livre para produtos industriais, a EFTA, na qual Portugal teve a sorte de ser admitido, juntando-se ao Reino Unido, Áustria, Dinamarca, Noruega, Suécia e Suíça.

Viragem britânica

Perante o sucesso da CEE, os britânicos cedo perceberam que haviam apostado no cavalo errado. Em agosto de 1961 o primeiro-ministro conservador Mac Millan solicitou a adesão do seu país à CEE. Em janeiro de 1963 o general de Gaulle, presidente da França, vetou a entrada na CEE do Reino Unido (que considerava um cavalo de Troia dos americanos), fazendo cessar as negociações.

Em 1967 novo pedido britânico de adesão à CEE, desta vez apresentado por um primeiro-ministro trabalhista, Harold Wilson. Segundo veto do general de Gaulle. A adesão britânica apenas se concretizou em 1973, pela mão do primeiro-ministro conservador Edward Heath, quando o presidente francês era outro, Pompidou.

Mas em 1975 o primeiro-ministro Harold Wilson teve dúvidas sobre o empenhamento britânico na CEE e convocou um referendo. Nas urnas, 67% dos eleitores disseram sim à CEE.

Euroceticismo na Grã-Bretanha

Margaret Thatcher votou a favor do sim à CEE nesse referendo. Mas quando subiu a primeira-ministra tornou-se menos europeísta.

Os fatores financeiros pesaram nesse crescente euroceticismo de Thatcher.

Por causa da política agrícola comum da CEE, o Reino Unido tornou-se quase um contribuinte líquido para o orçamento comunitário. Ficou célebre a reclamação da primeira-ministra num Conselho Europeu: “I want my money back!” (quero o meu dinheiro de volta). E, de facto, conseguiu a devolução de parte do dinheiro - é o chamado "cheque britânico".

Mas as opiniões de M. Thatcher sobre a CEE começaram a ser contestadas no final do seu mandato por outros conservadores e até por membros do seu gabinete, contribuindo para a sua demissão. John Major, o sucessor de Thatcher, viu agravarem-se os conflitos no partido conservador quanto à Europa.

O governo trabalhista de Tony Blair (1997-2007) foi, porventura, o mais europeísta desde a adesão britânica à Europa comunitária – mas não entrou na moeda única. Só que a desastrosa invasão americana do Iraque, que Blair apoiou abertamente, reduziu a credibilidade deste ex-primeiro-ministro.

Mais recentemente, surgiu na Grã-Bretanha o United Kingdom Independence Party (UKIP), hostil à UE. Por convicção e porque o UKIP tirava votos ao partido conservador, cada vez mais políticos deste partido se tornaram eurocéticos.

Foi na esperança de pôr fim às querelas europeias no interior do partido conservador britânico que o primeiro-ministro David Cameron convocou o referendo de 2016, convencido de que ganharia o “remain”. Enganou-se redondamente e de então para cá as complicações britânicas com a UE atingiram um nível demencial.

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