rr.sapo.ptOpinião de Henrique Raposo - 22 mar. 06:46

​Bach ajuda

​Bach ajuda

Repare-se que nem toda a música clássica tem esta respiração teológica. Quando oiço compositores do século XIX, como Sibelius e Beethoven, sinto que estou a ouvir música de homens que tentam criar o seu próprio universo.

Na rua, à mesa, no mail, amigos e desconhecidos pedem-me conselhos sobre a fé, como mantê-la, como protegê-la do inferno das dúvidas, etc. Fico um pouco constrangido. Sou um convertido tardio, não tenho jurisprudência sobre a matéria. A minha autoridade sobre a fé é igual à minha soberania sobre os anéis de Saturno. Se quisesse antropomorfizar a minha fé, diria que é uma adolescente insegura - não pode dar segurança a ninguém. Seja como for, apesar de me sentir ridículo, lá vou dando conselhos na medida do possível. Um dos conselhos recorrentes está relacionado com música.

Entrar em certas atmosferas musicais ajuda a reencontrar a fé; uma música ou sinfonia pode funcionar como um João Baptista musical, um prenúncio, uma antecâmara. A frequência sonora de certas peças é porventura a frequência mais parecida à emoção que sentimos naqueles momentos em que temos a certeza que Ele está ali ao nosso lado. E aqui a música clássica é imbatível, sobretudo Bach.

Repare-se que nem toda a música clássica tem esta respiração teológica. Quando oiço compositores do século XIX, como Sibelius e Beethoven, sinto que estou a ouvir música de homens que tentam criar o seu próprio universo, há ali um som autónomo e totalmente humanizado, há uma direcção humana. Beethoven mudou para sempre a música com o seus tempos acelerados, como no início da 5.º Sintonia: ta, ta, ta, taaaaaaa. Claro que esta aceleração do tempo musical está relacionada com a aceleração do tempo histórico propriamente dito. Beethoven musicalizou o tempo histórico moderno e novo pós-revolução francesa.

Bach é diferente. O barroco remete para um tempo mais calmo, para um tempo não histórico, um tempo que não é bem o tempo tal como nós, homens modernos, o concebemos. Uma escritora particularmente preocupada com a soberania do amor ou do bem, Iris Murdoch, descreveu na perfeição a música de Bach no romance “Henry e Cato”: “Já só gostava de música sem fim, formalidade sem forma, movimentação sem movimento, inocente de drama e de história e romance”. A música de Beethoven descreve o drama humano, tem uma lógica e uma direcção humana: começa num sítio e acaba noutro. A música de Bach é um eco da eternidade onde não existe essa urgência de direcção; é uma música que fica ali a flutuar noutro tempo, um tempo que não tem pressa de ir a sítios; é uma música que está, que é, tem uma gramática de esperança eterna, imutável e circular e não a gramática retilínea da razão que quer completar, fechar, atingir. Sim, Bach ajuda a encontrar a sintaxe do Reino.

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