visao.sapo.ptMiguel Araújo - 22 mar. 08:00

Ballad of a Thin Man

Ballad of a Thin Man

Eu tenho precisamente a mesma idade que o David Susskind tinha quando os Beatles apareceram no Ed Sullivan Show. Mas eu sei que quem determina os caminhos do mundo são as legiões de rapazes e raparigas de 14 anos

O David Susskind era um produtor americano ligado à televisão, ao cinema e ao teatro. Ganhou fama no início dos anos 60 do século passado com o seu talk show pioneiro, Open End, que viria a servir como uma espécie de farol que ajudou a formatar o género, cuja importância se mantém relevante ainda hoje em dia. David Susskind era o típico nova-iorquino oriundo de uma família de judeus de Brooklin. Trabalhou como captador de talentos de uma agência de música, combateu na Segunda Guerra Mundial, viveu numa época importante da nossa história, da nossa cultura. Era um homem moderno, aberto ao mundo. Foi no seu talk show que pela primeira vez se falou assumidamente contra a guerra do Vietname em canal aberto para todo o país. As primeiras discussões sobre assuntos como os direitos dos homossexuais, a transexualidade e questões raciais bastante sensíveis para a América conservadora da época foram no seu programa. Nikita Khrushchev foi por ele entrevistado, num enormíssimo momento televisivo na altura. É considerado um talk show pertinente de se rever ainda hoje em dia. David Susskind era um homem do seu tempo. Formatado pelos ares do seu tempo, como todos nós. Pela boa música do seu tempo, do Irving Berlin, do Gershwin, do Cole Porter, nas vozes do Frank Sinatra, do Dean Martin e da Ella Fitzgerald.

Todos nós somos assim, pessoas do nosso tempo e, de certa maneira, e ainda bem, vamo-nos encurralando no beco sem saída de nós próprios, da rígida esquadria da nossa identidade, da nossa personalidade, do certo e do errado que o nosso escafandro permite ver. E foi por isso que o David Susskind, mal viu os Beatles a gritarem e a abanarem a melena na cara da América via Ed Sullivan Show, proferiu a mais do que expectável, previsível e inadvertidamente histórica apreciação sobre os quatro liverpulianos: “Os Beatles são o mais repulsivo grupo de homens que alguma vez vi.”

Os Beatles andavam sossegados a fazer barulho numas cafurnas bafientas em Hamburgo, morada perfeita para tudo quanto de estranho aparece, tudo normal. Mas invadir assim o mainstream, para toda a gente ver, em horário nobre, em canal aberto para toda a nação, naquela gritaria, alto lá! A brigada que conserva o mainstream num aparente e estável conforto reagiu de imediato. A William F. Buckley, um importante intelectual da época, fundador da revista National Review, que já existe há mais de 60 anos, coube afirmar o seguinte: “Os Beatles não são apenas maus: são tão inacreditavelmente horríveis, tão aterradoramente não-musicais, que qualificam como os reis incontestáveis da antimúsica.” O meu avô Sérgio desesperava, no andar de cima da sua casa, ante os gritos incompreensíveis de yeah yeah que vinham da sala de baixo, enquanto os meus tios arranhavam aquela música estranha, incompreensível. A minha avó fazia palhetas a partir de cartões de plástico para que o meu tio não ficasse com os dedos em carne viva, porque mãe é mãe e ao menos os miúdos divertem-se. Passaram-se uns anos e agora nós somos os tais que viraram pais, como diz o adágio popular. Eu tenho precisamente a mesma idade que o David Susskind tinha quando os Beatles apareceram no Ed Sullivan Show. Mas eu sei que quem determina os caminhos do mundo são as legiões de rapazes e raparigas de 14 anos. Não são os “especialistas”, cristalizado em estátuas de si próprios, gigantones a tentar perceber para e de onde correm os ventos. “Come writers and critics who prophesize with your pen and keep your eyes wide, the chance won’t come again. Don’t speak too soon, for the wheel’s still in spin and there’s no tellin’ who that it’s namin’. For the loser now will be later to win. And the times, they are a-changin’.” Isto tudo para dizer que se calhar eu tenho de ir à médica ver se é encefalite, mas eu gosto das músicas do Conan Osiris e tenho andado 100 paciência para estas conversas.

(Crónica publicada na VISÃO 1358 de 14 de março)

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