www.publico.ptopiniao@publico.pt - 22 mar. 06:29

Uma suspensão da decência democrática

Uma suspensão da decência democrática

Isto não é suspensão de Orbán coisa nenhuma. É uma suspensão da decência democrática. É uma suspensão da vergonha na cara.

Durante nove anos, o primeiro-ministro húngaro Orbán protagonizou o maior ataque sistémico de sempre aos valores da democracia, do Estado de Direito e dos direitos fundamentais na União Europeia. Não que não haja problemas noutros países da UE, mas a diferença de um ataque sistémico começa, em primeiro lugar, por ser sistémico: Orbán não torceu esta ou aquela lei, não limitou esta ou aquela instância de controle, não concentrou poder nesta ou naquela área. Ele iniciou logo nos primeiros anos de governo centenas de alterações constitucionais, institucionais, legais e políticas que foram todas no mesmo sentido, que ele próprio definiu orgulhosamente e desde logo como sendo o da criação de uma “democracia iliberal”. Alterando a Constituição múltiplas vezes, acabando verdadeiramente com a oposição e encerrando os media independentes, alterando a lei eleitoral e decapitando o sistema judiciário, criminalizando os refugiados e os sem-abrigo, num rolo compressor imparável e inédito na UE. Outros o seguiram, à esquerda e à direita, mas nenhum foi tão longe, e só ele foi o precursor. Daí a importância que teria tido detê-lo no início, quando os primeiros alertas foram lançados, até 2013. Nós sabemos o que acontece quando não se age a tempo perante o autoritarismo na Europa. Foi assim que a Sociedade das Nações perdeu toda a credibilidade. O que aconteceu depois está nos livros de história.

Durante nove anos, o maior partido da Europa, o Partido Popular Europeu, deixou-o fazer. Não que alguns bravos deputados (Frank Engel, Carlos Coelho, Annamaria Corrazza-Bildt) não tenham alertado para o que se estava a passar e pedido a expulsão do FIDESZ, o partido de Orbán, do PPE. Essa expulsão teria sido crucial há seis anos, quando o Parlamento Europeu determinou, num relatório de que fui autor, que com Orbán a Hungria estava em risco de colisão frontal com as normas democráticas europeias. Teria sido crucial há cinco anos, quatro, três, dois, um — e até agora, porque mais vale tarde do que nunca. Mas o FIDESZ e Orbán sempre contaram com a cumplicidade do homem que agora é o candidato do PPE a presidir à Comissão Europeia, o mais constante branqueador dos atos de Orbán. Manfred Weber, assim se chama o candidato-líder do PPE, tornou-se useiro e vezeiro em inventar “linhas vermelhas” para Orbán violar e logo serem substituídas por outras linhas vermelhas. Weber sabia o que estava a fazer: a colaborar com um inimigo dos valores do Estado de Direito em troca de apoio político à sua carreira.

No fim destes nove anos parecia que ia haver finalmente movimento. Além dos políticos e partidos do PPE que genuinamente sempre se opuseram a Orbán, outros políticos e partidos tentaram distanciar-se da sua imagem justamente associada ao nacional-populismo, ao autoritarismo e à conivência com a estratégia putinesca de destruição da União Europeia. Com sucesso, conseguiram que não houvesse boletim de voto pan-europeu nas próximas eleições europeias, o que tem como efeito tornar menos transparente aos cidadãos que compartilham partido, programa e candidato presidencial com Orbán. E, finalmente, alguns começaram a falar em expulsar Orbán, o que depois foi transformado em suspender Orbán para “avaliação”, uma medida tão ligeira que o próprio Orbán votou a favor e alega tê-la sugerido.

O calendário deste procedimento é revelador do cinismo com que ele foi decidido. Orbán é suspenso a dois meses das eleições, para não atrapalhar demasiado. Mas a sua avaliação sairá em setembro, após as eleições mas a tempo de se perceber se Weber precisa dos votos húngaros para chegar a presidente da Comissão Europeia. Isto não é suspensão de Orbán coisa nenhuma. É uma suspensão da decência democrática. É uma suspensão da vergonha na cara.

Em conclusão, e sem mais paciência para farsas. Acuso Manfred Weber de deitar os valores da UE para a fogueira em nome da sua carreira política. Acuso todos os partidos do PPE, que votaram por esta fraude de suspensão, incluindo os portugueses PSD e CDS, de serem cúmplices com o desmantelamento do Estado de Direito na UE. Acuso estes políticos de carreira de quebrarem com a promessa europeia. É por causa deles que Orbán consegue os seus intentos, e o julgamento da história não lhes será leve.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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