expresso.ptexpresso.pt - 16 jan. 02:31

Brexit. Antes do adeus, o ficarmos sós

Brexit. Antes do adeus, o ficarmos sós

Derrota da primeira-ministra abre período de difícil definição. O Parlamento sabe o que não quer mas não se entende quanto ao que quer. Theresa May promete ouvir todos mas o calendário aperta e a saída é automática a 29 de março, com ou sem acordo. Oposição trabalhista vai ter de sair da sua cómoda ambiguidade

“Em circunstâncias normais, um primeiro-ministro demitir-se-ia depois de sofrer uma humilhação destas numa das suas políticas mais fundamentais”, dizia terça-feira à noite, numa análise, o editor de Política da ITV, Robert Peston. “Mas estes não são tempos normais e Theresa May não é uma primeira-ministra normal”, concluiu.

Não são mesmo. A governante sofreu ontem a maior derrota de sempre numa votação parlamentar e a maior revolta interna de um partido na História da democracia britânica: 118 conservadores voltaram costas à sua própria chefe de Governo e não há apenas uma razão para isso, caso contrário até poderia ser mais fácil trazê-los de novo à arena. Somados com quase toda a oposição, 432 deputados rejeitaram o acordo de May para sair da União Europeia. Uma maioria adversária capaz de tornar Narciso num homem humilde.

“Neste momento, o que Jeremy Corbyn e parte do Partido Trabalhista estão a fazer é olhar para o ‘Tory Titanic’, sentados numas espreguiçadeiras de lona, a beber gim com água tónica, de charuto na mão, a comentar a briga terrível que ali vai no porão entre o capitão e a sua tripulação”. É assim que Denis MacShane, ministro dos Assuntos Europeus de 2002 a 2005, sob Tony Blair, explica ao Expresso a posição assumida pelo seu partido no caótico processo a que chamamos ‘Brexit’.

O último dos vários livros que publicou, nomeadamente sobre a relação do Reino Unido com a União Europeia, chama-se “Brexit no Exit: Por que é que (no fim) o Reino Unido não vai sair da UE” e explora a impossibilidade de um país cortar totalmente laços com um bloco comercial com tamanho peso. O próximo, “Brexeternity”, junção das palavras “Brexit” e “eternidade”, vai no mesmo caminho. Cabe notar, todavia, que a saída está consagrada na lei e marcada para 29 de março às 23h, haja acordo ou não. Só pode ser travada adiando ou cancelando o Brexit.

John Keeble/Getty

“Foi deliberado. Ela nunca quis sair”, resmungava, minutos após a votação, o eurocético Dave McClellan, à porta do Parlamento. Este ativista das redes sociais garante ao Expresso que o propósito da UE é dividir o Reino Unido, atraindo para o seu seio a Escócia e a Irlanda do Norte, que em 2016 votaram pela permanência no referendo em que o país decidiu, por 52% contra 48% dos votos, abandonar a organização a que aderira em 1973. A seu ver, é preciso o Partido Conservador escolher outro líder para que o país saia mesmo da UE.

Moção de censura deve fracassar

É preciso saber se é o atual Governo que vai continuar as negociações. A jornada parlamentar (a quinta sobre este assunto) dedicou horas ao acordo que o Governo britânico assinou com os 27 no passado dia 26 de novembro. Contados os votos, Theresa May reconheceu a derrota e admitiu que é necessário saber se mantém a confiança da Câmara dos Comuns. Corbyn fez-lhe a vontade, apresentando uma moção de censura que será votada na quarta-feira, 16 de janeiro, logo após o debate semanal com a primeira-ministra, e votada pelas 19h.

A probabilidade de o Executivo cair é baixa. May não tem maioria mas a formação política que sustenta o Governo conservador através de um acordo de incidência parlamentar — o Partido Unionista Democrático da Irlanda do Norte — prometeu votar contra a iniciativa trabalhista, ainda que hoje tenha ajudado a chumbar o acordo. Também as franjas eurocéticas e europeístas do Partido Conservador que hoje se uniram no propósito de chumbar o pacto Londres/Bruxelas irão votar, amanhã, pela estabilidade governativa.

Se por surpresa a moção de censura passasse, May teria 14 dias para tentar recuperar a confiança dos Comuns. Falhando, o país iria a eleições.

A responsabilidade por as coisas terem chegado a este estado pode ser da própria May. “A forma como conduziu todo o processo foi muito pouco eficiente, estoica mas ineficaz. Tomou em mãos todas as discussões sobre o Brexit: não consultou nem os representantes da Escócia, nem académicos, nem centros de estudo, nem se reuniu com representantes do comércio e da indústria, sindicatos ou especialistas em política internacional. Tudo foi feito como se fosse o seu espetáculo. E agora está a pagar o preço”, diz MacShane.

As linhas vermelhas que a primeira-ministra traçou à cabeça (fim da livre cirulação de pessoas, nenhuma fronteira na Irlanda, saída do mercado único e da união aduaneira) e a própria data precoce em que invocou o artigo 50 do Tratado de Lisboa, acionando a contagem do prazo para sair, deixaram-na encurralada. A oposição e os companheiros tories ajudaram, claro, bem como uma UE apostada em dissuadir futuras saídas de Estados-membros. A reação dos dirigentes europeus é disso mostra: o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker. pediu ao Reino Unido clareza, Donald Tusk, líder do Conselho Europeu, insinuou no Twitter que não há alternativa, desde hoje, senão o país ficar na UE.

John Keeble/Getty

No entender do histórico do Partido Trabalhista, May passou de defender a permanência na UE no referendo (embora timidamente) a “discursar apenas para os ‘durões’ do Brexit”. A seu ver, a governante “disse coisas muito tristes sobre os cidadãos europeus, por exemplo, que ‘passam à frente’ na fila para os empregos ou que são ‘cidadãos de lado nenhum’”. Em 2017, “convocou eleições para ganhar vantagem política com o Brexit, pensando que o país estava todo pela saída. Claramente não estava”.

Falar com todos

O banho de humildade leva Theresa May a prometer falar com todos os partidos para perceber em que condições poderão apoiar um plano “negociável e que possa ter suporte parlamentar”. Terá de apresentar uma moção à Câmara dos Comuns na segunda-feira e do respetivo conteúdo dependerá o que se segue. No Parlamento há consenso contra o acordo rejeitado e contra uma saída à bruta, mas não surgiu, até à data, consenso a favor de coisa nenhuma. Existem defensores de mitigar a saída dura, outros de forçar Bruxelas a renegociar (mas divididos entre versões mais afastadas e mais próximas daquela que May levou a votos), além dos partidários de novo referendo ou revogação simples do Brexit.

MacShane continua a não acreditar numa “amputação total” dos acordos comerciais que o Reino Unido mantém com a UE e acredita que, quando a realidade começar a tornar-se imprevisível, “tanto os britânicos como a União estarão dispostos a aprovar um acordo de emergência”. O diabo está, como quase sempre, nos detalhes. MacShane oferece dois exemplos. “Os britânicos são os terceiros maiores consumidores de papel higiénico de toda a Europa e quintos em todo o mundo. São 110 rolos por pessoa por ano. Importamos quase todo esse papel, como aliás quase todo o papel que usamos, higiénico ou não. Existe pouco mais de um dia de reservas de papel higiénico nos nossos supermercados”, diz.

O problema dos direitos dos cidadãos britânicos que vivem fora do país também o preocupa, refere-o várias vezes ao longo da conversa. O acordo previa reciprocidade entre o Reino Unido e a UE na manutenção dessas prerrogativas, mas o chumbo significa que nada do que estava acordado tem força de lei. “Pensemos nas cartas de condução. Quantos britânicos, se tiverem de tirar a carta nos países onde residem, saberão falar espanhol, italiano ou português, que é preciso para o exame teórico? Quantos serão demasiado velhos para as renovarem? É nestas pequenas coisas, que operam transformações imediatas e poderosas no dia-a-dia das pessoas, que ninguém parece pensar”.

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Talvez seja preciso um choque maior, como uma falha no abastecimento de um medicamento, para que as partes se voltem a sentar à mesa com seriedade. Mesmo aí, acredita o ex-ministro, os políticos britânicos haveriam de encontrar forma de culpar a Europa por se estar a vingar. “Estou mesmo a ver os jornais a escreverem: ‘Agora a Europa está a matar-nos nas camas de hospital’”.

Calendário apertado para voltar às urnas

Theresa May pode convocar um novo referendo ou antecipar eleições (disse não querer fazê-lo, mas não foi taxativa, e em todo o caso já quebrou a palavra antes) ou optar pelo que não fez no início de todo o processo: chamar a Downing Street os vários setores da sociedade e os membros da oposição para tentar entender o que é que seria um “Brexit aceitável”.

“Não sei se um referendo seria a melhor opção, porque é possível que viesse a confirmar o primeiro. Com referendos corremos sempre grandes riscos, porque é normal as pessoas utilizarem-nos para enviar mensagens de profundo descontentamento”, diz MacShane. “O Partido Trabalhista vai acabar por ter de apoiar nova consulta”, vaticina, pelo contrário, Sam Davis, com quem o Expresso conversou na praça dianteira ao Palácio de Westminster. Corbyn tem resistido, mas ainda hoje ouviu o líder parlamentar dos nacionalistas escoceses (SNP), Ian Blackford, dizer que era tempo de escolher um lado. “Saia de cima da cerca!”, exortou.

“A militância vai agir, é de esperar que Corbyn receba muitas cartas em breve”, prossegue o ativista Sam. “Ele vem de uma certa esquerda protecionista, mas vai ter de mudar de tática”. O certo é que a conduta do líder trabalhista tem sido norteada por aquilo que acredita, a cada momento, que o levará ao poder mais cedo.

John Keeble/Getty

A restante oposição e a maioria dos militantes trabalhistas são a favor de voltar a votar, mas resta saber que pergunta seria feita ao eleitorado, que hipóteses constariam do boletim de voto. Esta opção, como a de realizar eleições, quase decerto implicariam um adiamento do Brexit, dado o tempo que requerem. É provável que os 27 (cuja autorização é necessária) acedessem, mas qualquer protelamento que vá além do início de julho pode exigir que o Reino Unido eleja eurodeputados em maio, coisa que no âmbito do Brexit não está prevista.

Suavizar o Brexit

A opção que poderia garantir um grau maior de sucesso, na opinião de MacShane, é a de o Reino Unido permanecer na união aduaneira. Corbyn, que prometeu renegociar o Brexit se chegasse ao poder (independentemente do que diz Bruxelas), aceitaria esse Brexit suave, tal como alguns conservadores que hoje recusaram o projeto da primeira-ministra. “May pode dizer aos seus deputados: ‘Chegou a altura de considerarmos ficar na união aduaneira’. É nesse sentido que têm ido as exigências dos trabalhistas, por isso talvez conseguisse uma maioria. Há possibilidades, mas todas têm um preço e, neste caso, o preço seria May conseguir esbater um pouco a linha dura dentro do seu partido”. A mesma que tentou derrubá-la em dezembro, que hoje ajudou ao desaire, mas que amanhã a segurará. E que padece de falta de um nome alternativo para suceder à atual chefe do Executivo.

Os trabalhistas não estão isentos de falhas no processo do Brexit. O líder apoiou a permanência na UE em 2016, mas pouca campanha fez. Há muito que vê na UE um clube capitalista com mecanismos demasiado neoliberais. “Não mudou desde os anos 70”, avalia MacShane. Muito eleitorado trabalhista fugiu, nas eleições de 2015, diretamente para o partido eurocético UKIP. Corbyn recuperou parte dele em 2017 e não quer aliená-lo.

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“A UE foi fundada em nome da paz!”, gritava uma manifestante encostada às grades do Parlamento. “Já há 56% dispostos a votar para ficar na UE”. “Traidora”, murmurou outra senhora que passava. UE e paz não são ideias que se conjuguem intuitivamente num país dividido por esta questão, de forma mais aguda desde há três anos, mas na verdade há muito mais tempo.

Maldição histórica

Dois anos depois da adesão, já os britânicos votavam em referendo para apurar se era mesmo a valer. Ganhou o sim, apoiado pela então futura primeira-ministra Margaret Thatcher (que no mesmo ano destronou o companheiro de partido Edward Heath). Hoje, os eurocéticos evocam a Dama de Ferro a torto e a direito porque batia o pé a Bruxelas. Corbyn votou contra.

Todos os primeiros-ministros desde então tiveram dissabores relacionados com a construção europeia. Thatcher caiu quando uma ala europeísta do Partido Conservador começou a ver nela um peso. O sucessor John Major chamava “bastardos” aos membros da fação anti-UE. Os trabalhistas Tony Blair e Gordon Brown tinham ideias diferentes sobre a moeda única (o primeiro queria que o Reino Unido aderisse; o segundo, então seu ministro das Finanças, travou essa decisão).

John Keeble/Getty

De David Cameron reza a história que prometeu um referendo que nunca pensou convocar (impedia-o na altura uma coligação com os mui europeístas Liberais Democratas), mas depois conquistou uma inesperada maioria absoluta e teve de cumprir. Pretendeu calar os eurocéticos e estancar a sangria de votos para o UKIP, mas acabou por se demitir e é hoje acusado de irresponsabilidade. Theresa May pode bem ser a próxima vítima desta magna questão, que alguns comparam à quebra de laços com a igreja católica protagonizada, no século XVI, pelo rei Henrique VIII. Só que esses eram tempos de poder absoluto, há muito findos.

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