visao.sapo.ptvisao.sapo.pt - 16 jan. 09:10

Ser homem, “um homem a sério”, é problemático?

Ser homem, “um homem a sério”, é problemático?

Sim, diz a maior associação científica e profissional de psicólogos americana, que tem um guia para ajudar rapazes e homens a libertarem-se de modelos rígidos de género por considerar que lhes limita o desenvolvimento e causa danos físicos e mentais, incluindo aos próprios

A masculinidade tradicional faz mal aos homens e é urgente libertá-los de modelos rígidos e limitadores. A mensagem é da Associação de Psicologia Americana (APA), que acaba de lançar um guia de 36 páginas que visa orientar a atuação dos ‘psis’, à semelhança do que já existe para o género feminino, desde 2007.

Em síntese, o comunicado da APA destaca que a masculinidade tradicional, assente nos conceitos de estoicismo, competitividade, dominância e agressividade, é psicologicamente nociva e contribui para a homofobia, a misoginia, o bullying e, até, o assédio sexual.

O paradoxo da masculinidade

Os últimos 40 anos de investigação sobre este assunto sugerem que este modelo inviabiliza que se mostrem vulneráveis ou peçam ajuda, tornando claro que “a limitação da expressão das emoções produz danos internos e externos”.

A razão para mudar de paradigma justifica-se pelo facto de a atual continuar a ser uma faca de dois gumes: por um lado, coloca os homens numa situação de privilégio - por exemplo, 95,2% dos líderes das 500 empresas do ranking da revista Fortune é do sexo masculino - mas torna-os reféns da rigidez ligada ao papel de género e à mercê das suas consequências, da repressão emocional ao isolamento e às condutas violentas.

O que há "de mal" na masculinidade tradicional?

O que mostram os estudos:

- Comportamentos de risco (alcoolismo, tabagismo, etc) são considerados normais pelos homens que se conformam às normas masculinas dominantes (Boston College, 2007).

- Homens convictos do modelo tradicional investem só metade das vezes na promoção da saúde e prevenção da doença, face a outros (pesquisa da Rutgers University, 2011)

- A relutância em procurar ajuda, sobretudo psicológica, é menor nos homens com atitudes mais flexíveis face ao papel de género (Psychology of Men & Masculinity, 2015)

O que revelam as estatísticas americanas:

- Os homens cometem 90% dos homicídios e representam 77% das vítimas dos crimes violentos

- As mortes por suicídio tendem a ser 3,5 vezes mais comuns nos homens do que ans mulheres

- A esperança de vida dos homens é menor do que a das mulheres: eles tendem a viver menos 4,9 anos que elas

O que dizer do cowboy solitário?

“Apesar de beneficiarem da ideologia patriarcal, os homens são limitados por ela”, assegura Ronald F Levant, professor emérito da universidade de Akron e um dos mentores do documento Orientações para Prática Clínica com Rapazes e Homens. Com esta iniciativa, o também co-editor de uma obra da APA sobre psicologia masculina (em 2005, altura em que presidia a APA), lançou um debate sem precedentes e que está a agitar a academia e a sociedade civil. Para Levant, não bastam as campanhas das autoridades de saúde que apostam em dar uma aura de normalidade à procura de ajuda por parte dos homens. E, sobretudo, quando tal não é esperado entre eles nem têm outros exemplos para seguir em situações de sofrimento (acabando por envolver-se em condutas de risco ou negativas). Esta mudança de paradigma pode e deve ser feita. E compete aos clínicos estar alerta e ter presente que “a agressão e outros sintomas orientados para o exterior podem camuflar problemas internos”.

Tóxica para uns…

Para a maior organização científica e profissional dos psicólogos dos EUA, o documento não quer passar a mensagem de que ser homem, nos moldes atuais, é uma doença, mas sim um conceito a rever, a começar pela rigidez de códigos de conduta e a uniformização de certas formas de pensar e de agir, perigos que são, com frequência, prejudiciais para o desenvolvimento pessoal e noutras áreas.

Ryon McDermott, psicólogo da universidade de Alabama, um dos colaboradores do guia, lembra que nos anos 2010 “[o género] já não assenta num modelo binário macho-fêmea”. A APA defende uma definição de homem que destaque a valorização de atributos menos tóxicos, como a liderança e a coragem, e também o direito à vulnerabilidade, sem que esteja, coladas às regras da masculinidade tradicional que constrangem a liberdade e a saúde dos rapazes e dos homens, com danos físicos e emocionais desnecessários.

… Sob ataque para outros

Um documento influente que procura limar arestas ao conceito da masculinidade parece, aos olhos de muitos, uma ameaça ao cromossoma Y, dada a multiplicidade de estudos com resultados a sugerir que a identifdade de género é socialmente construída.

No rescaldo do movimento #MeToo e dos escândalos de figuras públicas que refletem uma certa ideia de homem “feio, porco e mau”, ou com poder e fama pela sua supremacia evolutiva (o mais competitivo leva a melhor, em território, mantimentos e fêmeas e está acima da lei), a condenação da mensagem da APA não se fez esperar, sobretudo em setores conservadores.

“A Esquerda deseja que a masculinidade simplesmente se extinga”, titula-se na Newsmax, em que James Hirsen, best seller do New York Times e analista de media, traz ao debate “a hipótese do macho guerreiro”, referida pelos psicólogos evolucionistas. Atributos como a força, as alianças para conquistar recursos como comida, território, poder, status e afins, continuam a ser decisivos para atrair o sexo feminino e não só.

Hirsen assume a influência da APA e teme que essa influência venha a trazer mais danos do que aqueles que a APA pretende travar e evitar: “Essencialmente, homens de todas as idades serão solicitados a negar quem são e a converter-se naquilo que os engenheiros sociais definiram para eles. Um cenário insustentável para quem sabe como a autonomia individual é para que uma sociedade se mantenha sã.” Uma postura não muito diferente da politicamente incorreta assumida pelo psicólogo e bestseller canadiano Jordan Peterson, que esteve recentemente em Portugal na digressão mundial do seu livro, 12 Regras Para a Vida: Um Antídoto Para o Caos.

Enquanto as organizações dos profissionais meditam sobre o assunto noutras partes do globo, incluíndo Portugal, o novo anúncio da Gillette tem sido chacinado nas redes sociais e em orgãos de comunicação como o jornal britânico The Guardian e a CNN, por ilustrar situações condenadas socialmente e pela APA: sexismo, machismo, assédio e outros atributos que fazem - ou não deveriam fazer - um homem.

A palavra a cavalheiros, senhoras e mais além

Homem ou mulher, quem ainda se lembra do antigo anúncio português da marca de um restaurador para o cabelo dos homens, no final dos anos 1960, poderá ter a estranha sensação de dejá vu. “Um preto de cabeleira loura ou um branco de carapinha não é natural”. Naquela altura não era politicamente incorreto e ficou na memória dos portugueses que viveram no Estado Novo e desejavam esconder os cabelos brancos com o produto que devolvia ao cabelo “a cor primitiva”. Se a tradição já não é o que era, social e politicamente falando, alguma coisa mudou em quase meio século.

Voltando às expetativas de género e como lidar com elas hoje? O que se espera de um homem mas que não lhe faz bem. O que um homem precisa e não sabe, ou não espera, por não haver lugar para essa necessidade se expressar e realizar na sua cultura de pares. O que um homem espera de outro, ou de uma mulher. Se nos sentimos oprimidos ou vítimas no nosso corpo e identidade ou donos(as) e senhores(as) de nós. Tudo isto está a ser revisto, em pequena e grande escala, nas interações quotidianas, privadas e públicas. Na comunidade e nas instituições.

A famosa terapeuta de casal belga Esther Perel está a dar que falar um pouco por todo o mundo com aquilo que designa por paradoxo da masculinidade, tema que traz o seu podcast e palestras. Numa outra linha, a colunista Monica Hasse, no The Washington Post, começa por falar do avô, que “tinha tudo para caber no perfil do homem tradicional”, incluindo o recusar-se a tomar medicação para as dores às portas da morte. Hasse tomou a liberdade de abordar o professor californiano Englar-Carlson, mais um dos académicos que trabalharam na construção do guia ao longo de vários anos. Contou-lhe sobre o avô, o quanto era amado e respeitado, embora ninguém lhe tivesse perguntado se ele se sentira preso no seu papel de género ou se queria ter tido uma vida diferente. No final, ficou o recado: “Eu disse a Englar-Carlson que queria que toda a gente fosse como meu avô. Mas também queria que soubessem que têm a opção de não ser.”

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