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O cante alentejano foi “história viva” a entusiasmar o Kennedy Center

O cante alentejano foi “história viva” a entusiasmar o Kennedy Center

A histórica instituição de Washington recebeu na segunda-feira o Grupo dos Cantadores da Aldeia Nova de São Bento. Momento de relevo para o cante, pelo sucesso obtido em sala, pela projecção que a actuação pode proporcionar. O público americano a de

“É uma questão de que se perceba quem nós somos e o que fazemos”. Pedro Mestre está em palco, de costas para o público, falando aos companheiros do grupo de que é ensaiador. Não tardará até que, já voltado para a plateia, viola campaniça a trinar o seu som aberto, as vozes do cante se ouçam nas melodias bailadas da Moda do Entrudo. É segunda-feira, estamos no palco Millennium do Kennedy Center, em Washington, instituição central na música da cidade (e dos Estados Unidos) e o Rancho de Cantadores da Aldeia Nova de São Bento tem perante si uma plateia de 250 lugares. As cadeiras estão ainda vazias.

Pedro Mestre falava com os companheiros durante a tarde, no ensaio. Pelas 19h, ao terminar a segunda canção do encore que encerrou a actuação perante uma plateia praticamente esgotada, a questão estava resolvida: os americanos podem não compreender a língua do cante, mas perceberam perfeitamente o que são e o que fazem os cantadores da vila alentejana.

Não é fácil chegar a este palco. Exige uma candidatura, analisada por um painel de musicólogos, com exposição tanto das características técnicas e musicais do grupo, quanto da sua inserção na tradição musical a que se refere. A programação do palco, onde se realizam concertos diários gratuitos, às 18h, permite-nos apercebê-lo enquanto cenário abrangente em géneros e geografias. No mês em que se ouviu o cante, por ali passaram ou passarão guitarristas checos, sons das caraíbas e de Nova Orleães, afrobeat, cantores jazz polacos, música de câmara asiática ou cruzamentos entre o compositor russo Mussorgsky e música urbana moderna.

Chegar ao Kennedy Center é, portanto, um reconhecimento e, tão ou mais importante, a possibilidade de aceder a uma grande montra. Isto porque, além das duas centenas e meia de espectadores em sala, os concertos são transmitidos em streaming gratuito no site da instituição para uma audiência potencial de milhões.

PÚBLICO - EUGÉNIA NETO PÚBLICO - EUGÉNIA NETO Fotogaleria EUGÉNIA NETO "Tem algo de velhos tempos"

José António Falcão, director geral do Terras Sem Sombra, o festival alentejano que cruza música, natureza e património, viajando por vários municípios da região entre Janeiro e Julho, estendendo-se também este ano à Extremadura espanhola — a comitiva que viajou até Washington fê-lo no âmbito de uma dupla promoção, a do festival, que tem na edição 2019 os Estados Unidos como país convidado, e do Alentejo que o acolhe —, ficara com a sensação de missão cumprida.

Na residência do embaixador português na capital americana, Domingos Fezas Vital, que recebeu após o concerto a comitiva de músicos, autarcas e empresários portugueses, aos quais se juntaram agentes políticos, culturais e empresariais americanos, José António Falcão considerou que a actuação “excedeu as expectativas”. Concretizou: “As pessoas vivenciaram a experiência. Podem não ter compreendido completamente, mas vivenciaram-na. Para o Terras Sem Sombra, isto é o cumprimento de um dos nossos objectivos, que é mostrar a possibilidade de internacionalização de um território através da música. A música tem uma vantagem em relação a outras manifestações artísticas. Não precisa de mediação. Vale por si”. No Kennedy Center, isso tornou-se evidente.

Eis que o entrevistador se torna entrevistado e quatro americanos de duas gerações diferentes, Nana e Kyle Scott, pais de Kris, e Hanna Mitchell, queriam saber o que se passava na divertida Moda do Assobio, história de um pinga-amor assobiando noite fora, que tinham ouvido no concerto. Eis que o entrevistador se torna entrevistado e Dylan Bilao e Lila Raouf, 28 anos ele, 26 ela, perguntam sobre os fatos que os cantadores vestiam e sobre a terra de onde vieram. Uns e outros vieram ao Kennedy Center atraídos pela curiosidade que a apresentação do concerto na programação da sala lhes suscitou e, actuação terminada, ficou a vontade de conhecer mais.

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“Tem algo de tradicional, de velhos tempos”, diz Dylan. Nem ele, nem Lila, conheciam fosse o que fosse de música portuguesa. Ficaram impressionados com a potência do canto e com a forma como as vozes e a apresentação do grupo se uniam e os transportavam para outro lugar, para outro tempo. No caso de Dylan, havia outra razão a suscitar a sua curiosidade. “Eu tenho algum sangue português”, confessará ele, “e isso também contribuiu para querer vir”. Lila espanta-se: “Sangue português? De onde?”. Dylan não sabe responder. “Não sei. Descobri-o num teste de ADN”. Deixamo-los então a imaginar antepassados longínquos assobiando na planície dourada alentejana. Banda-sonora adequada já têm. Dela pode fazer parte a magnífica Dá-me uma gotinha de água, a tão popular Fui colher uma romã, com aqueles versos de magnífica ressonância poética – “as pombas quando namoram / pousam as asas no chão / que é para os pombos não verem / o bater do coração” —, ou a altiva Canção do Varejo, com misteriosos melismas magrebinos e imponência de catedral a céu aberto.

 “É história viva”

Pelo concerto no Kennedy Center passaram as três modas supracitadas, passaram o Cante das Janeiras e o Cante dos Reis, Pomba branca ou uma Moda do Entrudo que, durante o ensaio, o grupo, percebendo o impacto sonoro criado pelas boas condições acústicas e de amplificação, decide alterar ligeiramente — e é um grupo tão afinado, tão sintonizado no funcionamento conjunto, um grupo para quem o cante é tão natural, que, durante a actuação, a moda alterada à última hora parece ter sido interpretada assim desde sempre.

Depois de uma curta apresentação de contextualização, entraram em palco em fila ordenada, tomaram as suas posições, as mãos agarraram os coletes, o ponto deu o mote, os peitos encheram-se de ar num mesmo movimento conjunto e a música encheu o hall do palco Millenium. Perante eles, tinham uma plateia perto de lotar os lugares sentados, afluência surpreendente tendo em conta a queda de neve que tem assolado a cidade, paralisando serviços públicos, escolas e empresas e mantendo as pessoas em casa. Olhando pelas gigantescas portas envidraçadas à nossa esquerda, via-se o rio Potomac e suas águas escuras, viam-se os ramos das árvores ainda brancos e o recorte dos edifícios da cidade ao crepúsculo. Olhando para o palco, éramos transportados para longe. Progressivamente, o público americano foi seguindo viagem e, dos curtos aplausos iniciais, foram-se soltando, à medida que o concerto avançava, alguns gritos de incentivo, palmas mais prolongadas e ruidosas.

A família Scott nada sabia do cante, do Alentejo ou de música portuguesa. Agora, não parece haver dúvidas de que quererão saber mais, ouvir mais. Nana Scott estabelece paralelismos com músicas corais polifónicas que conhece de outras latitudes, da Albânia ou da Croácia, e lança num aparte: “Ah, e adorámos os fatos. Pareciam peregrinos”. Kris Scott e Hannah Mitchell destacaram o impacto emocional e físico do cante. “Era subtil no início, mas quando as vozes se reuniam era muito intenso, sentia-se o chão a tremer”, dizem, acrescentando que “olhando-os enquanto grupo, parecem ter algo de muito masculino, mas depois há uma certa fragilidade. São vozes cheias e solares”. Só lamentam não perceberem português para compreenderem mais plenamente o sentido daquilo a que acabavam de assistir. E é então que, como escrevemos acima, o entrevistador se torna entrevistado. Explica origens e contexto, traduz letras. “É história viva”, comentam então. “É importante manter vivas estas músicas”, defende Kris. Ainda impressionado com o alcance das vozes, imagina os cantadores a descansar longamente após o concerto, recuperando as gargantas com doses generosas de chá.

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No caminho para o autocarro que os conduziria ao jantar na embaixada, João Baptista, cujo alto aveludado, tocante, se destaca em Gota de água, por exemplo, diz ao PÚBLICO que o grupo nunca sente qualquer tipo de nervosismo quando sobre a um palco. Seja ele modesto ou nobre, actuem eles perante conhecedores do cante ou gentes que o ignorem totalmente, é indiferente para os cantadores. “Podemos estar a cantar para duas pessoas ou para dez mil. Cantamos sempre igual”. Interessa que se juntem, que harmonizem as vozes, que façam do cante força viva em todas as circunstâncias.

Cantar como um só

Terça-feira, a comitiva alentejana em Washington continuará a cumprir o seu programa. Autarcas e empresários promoverão os seus municípios e os seus produtos junto de senadores luso-descendentes e de representantes da indústria e do comércio americanos. Quanto aos cantadores, eles que já estiveram em Espanha, França, Alemanha ou China, eles que viajaram mais uma vez para os Estados Unidos — mas nunca o haviam feito para actuar num espaço com a dimensão institucional do Kennedy Center —, a missão está cumprida. Domingo, mostraram o cante à comunidade portuguesa de Manassas. Segunda-feira, revelaram-no ao público americano.

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Vemo-los ainda: o concerto acabou há pouco e ei-los no autocarro a trocar modas ao desafio, para delícia do condutor que exclamará quando os cantadores saem do veículo, “thank you, what a damn fine singing!”. Vemo-los: reúnem-se a um canto da sala da residência do embaixador português e cantam novamente. Cantam como um só, que o cante é vida comunal, dos mais novos que não eram nascidos quando o Grupo de Cantadores da Aldeia Nova de São Bento foi formado, a Francisco Vinagre, 92 anos, homem que está no grupo desde o início. Não foi preciso descanso algum. Cantam e brindam nos Estados Unidos. Bebem vinho da Vidigueira.

O PÚBLICO viajou a convite do Festival Terras Sem Sombra

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