www.publico.ptpublico@publico.pt - 14 jan. 06:30

Da sociedade dependente para a sociedade competitiva

Da sociedade dependente para a sociedade competitiva

A política tem de abandonar as misturas consensualistas, que não escolhem nem decidem, para voltar a reabilitar as clivagens e polarizações que distinguem o possível do impossível.

Quando os Estados Unidos decidem, em nome de um programa neo-nacionalista e isolacionista, romper as suas redes de alianças e desmantelar a arquitectura de instituições multilaterais que antes tinham promovido, para deixarem de suportar o que consideram ser os custos das alianças e para não serem condicionados pela obediência a programas e normas comuns, não se pode esperar que o padrão de ordem mundial que está a ser destruído se venha a reconstituir espontaneamente.

Esta eventualidade do colapso do padrão de ordem mundial gera uma nova urgência para o estabelecimento de programas de acção, na política, na economia, na sociedade e na ideologia, que sejam adequados a esta circunstância, na vizinhança de um ponto de descontinuidade, e estejam operacionais para quando já não houver o referencial de estabilidade relativa em que se viveu nas últimas sete décadas.

Este não é um processo que esteja a ser desencadeado no Ocidente pela proposta de um mundo novo e de uma ordem nova, que possa ser avaliado em função do que são essas novas ideias que se apresentam para configurar o que deverá ser o novo padrão de ordem mundial.

Pelo contrário, o processo é desencadeado a partir de ideias e de programas políticos que defendem a reprodução de configurações políticas, económicas, sociais e de relações internacionais que existiram num passado já muito distante, mas que foram superadas pela evolução histórica e não poderão voltar a ser relevantes.

Este é o paradoxo actual do neo-nacionalismo e da regressão da cultura política no Ocidente: pretende reconstituir o nacionalismo da soberania em espaços delimitados por fronteiras quando as condições em que essa configuração política foi possível já não existem.

O neo-nacionalismo é uma impossibilidade estratégica na medida em que não é concretizável, mas isso não impede que seja uma ilusão política que motiva os comportamentos eleitorais de grandes grupos sociais.

E os mais seduzidos pela ilusão das sociedades fechadas e das economias protegidas prometidas pelo neo-nacionalismo são justamente aqueles que se sentem ameaçados pela mudança no mundo, pelo desaparecimento das estruturas de ordem a que se habituaram ou pela perda de posições no processo de modernização e que não são ajudados nem orientados pelos responsáveis políticos na interpretação do que são as condições estratégicas, actuais e futuras, que determinam o desenvolvimento na sociedade e na economia.

Sendo uma impossibilidade estratégica, o neo-nacionalismo é autodestrutivo, é a tentativa de realizar o seu programa que demonstrará o seu fracasso. Porém, o tempo para se fazer essa demonstração será também um tempo de destruição de oportunidades e de contracção de possibilidades, um tempo perdido no caminho de modernização. Não basta deixar que o neo-nacionalismo se destrua a si mesmo, é preciso evitar que ele destrua recursos necessários para o processo de modernização no futuro.

A primeira responsabilidade da política é assegurar que a sociedade não se dirija para o abismo da impossibilidade, evitando que tenha de ser por tentativa e erro que a sociedade vai encontrar o caminho que deve seguir.

E isso significa que a política tem de abandonar as misturas consensualistas, que não escolhem nem decidem, que não governam mas se reproduzem no poder numa eterna repetição do mesmo, para voltar a reabilitar as clivagens e polarizações que distinguem o possível do impossível, assumindo a responsabilidade política da condução estratégica.

Por um lado, a distinção entre sociedade fechada e sociedade aberta, que separa os que se condenam à estagnação do mercado interno protegido por barreiras alfandegárias, dos que reconhecem que é pelo alargamento dos mercados nacionais em redes de relações comerciais e de cadeias de produção que se geram os novos factores de crescimento das economias.

Por outro lado, a polarização entre as posições sociais dependentes das políticas públicas distributivas que procuram no Estado a protecção ou a compensação para a crise de competências e as posições sociais competitivas que fazem do crescimento económico a condição de base para as políticas públicas distributivas.

Estas clivagens e polarizações alteram as categorias tradicionais da esfera política. A distinção entre direita e esquerda, ou entre competição e distribuição, tem agora de ser articulada com a distinção entre o interior e o exterior, entre o isolamento e a integração. Na esfera política, há quatro quadrantes relevantes, onde direita e esquerda são muito diferentes conforme forem nacionalistas ou integracionistas, fechadas ou abertas.

A solidariedade distributiva encontra os seus limites no que for o crescimento económico e violar esses limites implica o crescimento do défice orçamental e da dívida pública, transferindo para futuro o encargo com os juros do que é distribuído para a geração actual.

Na realidade dos factos, a solidariedade distributiva só é sustentável se houver mobilização competitiva, porque é esta que assegura o crescimento dos recursos económicos que torna possível o exercício da solidariedade distributiva.

Estas são as clivagens estratégicas centrais no presente e no futuro: só há solidariedade distributiva onde houver mobilização competitiva e só há crescimento económico onde a sociedade aberta substituir a sociedade fechada.

Se quem disser a verdade não pode ganhar eleições, é preciso, para assegurar a defesa da democracia pluralista, que haja outras entidades que possam procurar a verdade efectiva das coisas para a apresentarem sem estarem interessadas em eleições. É este o papel dos centros de racionalização e de regulação: não têm por objectivo obter legitimidade eleitoral nem exercer o poder, mas têm por função interpretar os efeitos do exercício do poder.

Se o Movimento Europa e Liberdade contribuir para interpretar por que é que o regime político português acumula oportunidade perdidas e promessas que não são cumpridas, estará a contribuir para melhorar a qualidade da democracia pluralista, porque estará a clarificar o que são os perigos e as oportunidades nestes tempos de crise do padrão de ordem mundial e de fragmentação da Europa, onde a liberdade se perde no isolamento e na demagogia populista. Se for apenas um grupo de protagonistas à espera do autor que lhes escreva a peça – seja comédia, drama, tragédia ou burlesco – para eles subirem ao palco, será a repetição do que já se conhece, não servirá para nada.

Nota histórica

Durante sete décadas, o padrão de ordem no mundo foi configurado pelas iniciativas e pelas garantias, tanto políticas como militares, dos Estados Unidos.

O poder dos Estados Unidos, que lhe permitia exercer essa função configuradora da ordem mundial, foi formado na base de redes de alianças e de instituições multilaterais que sustentaram e difundiram os valores da abertura dos mercados e da democracia pluralista, fazendo da liberdade de circulação (de pessoas, de capitais, de produtos e de ideias) e do reconhecimento do pluralismo ideológico as defesas eficazes contra a radicalização e a violência.

Este padrão de ordem mundial herdava os ensinamentos da Paz de Vestfália, de 1648, e do Congresso de Viena, de 1815, o que significava que era uma nova evolução dentro da continuidade da cultura política do Ocidente. Da paz de Vestfália recebeu a recomendação da não-ingerência nos assuntos internos de cada Estado, o que permitiu encerrar o longo período de guerras religiosas na Europa ao considerar a escolha da religião um assunto interno de cada Estado. Do Congresso de Viena recebeu a ideia de que é pela defesa dos equilíbrios entre as potências que se evitam os conflitos pela via da dissuasão.

Mas os efeitos da Segunda Guerra Mundial exigiam mais do que a simples reposição dos ensinamentos anteriores. Estabeleceu-se uma arquitectura de instituições multilaterais que pudessem actuar com eficácia na prevenção e na resolução de conflitos (Organização das Nações Unidas e o seu Conselho de Segurança), na resposta a desequilíbrios das economias (acordos de Bretton Woods e Fundo Monetário Internacional), na promoção da liberdade do comércio internacional (com a Organização Mundial do Comércio) e na garantia da defesa dos valores da liberdade e do pluralismo nas democracias (Organização do Tratado do Atlântico Norte e tribunais internacionais). Foi a demonstração da vitalidade e da capacidade de adaptação da cultura política do Ocidente, com os seus valores de pluralismo e de liberdade, substituindo o tradicional nacionalismo soberanista pelas interdependências e formação de redes de cooperação e de integração em grandes escalas multinacionais coordenadas por políticas e regulações comuns.

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