www.publico.ptpublico@publico.pt - 14 jan. 06:43

Liberdade de expressão para banalizar ou não falar do racismo?

Liberdade de expressão para banalizar ou não falar do racismo?

Inacreditavelmente, a propósito de saber se a facho-esfera merece espaço na disputa democrática, paira no ar um requintado iluminismo absolutista sobre o conceito de liberdade de expressão que atravessa todo o espectro político.

A propósito das reações ao convite do facínora Mário Machado (MM) pela TVI, Pacheco Pereira (PP) acusa o SOS Racismo de tentativa de instrumentalização da ERC e de patrocinar o regresso da censura. Os ataques de Pacheco Pereira ao SOS Racismo são frequentes e muito velhos. Fossem estes ataques apenas inscritos na ordem da afirmação da divergência política, apenas mereceriam a atenção que, em democracia, merecem as divergências: um debate frontal, sério. Mas são muito mais do que isso, pois são ataques desonestos e soezes que se escondem por detrás do biombo da defesa da liberdade de expressão para relativizar a ignomínia que é o racismo na sociedade portuguesa, que próprio PP diz padecer de uma “escondida, mas presente, má consciência colonial e pós-colonial” (Expresso, 17-06-95). Para além de ser refutada, merece ser desmascarada e combatida a intenção subjacente a estes repetidos ataques. E, curiosamente, quase todos eles ocorrem em momentos em que o racismo resulta na morte de cidadãos e causa maior indignação social e política no país.

Foi assim quando foi assassinado o Alcindo Monteiro, foi assim quando foi assassinado o Toni no Bairro da Bela Vista em Setúbal e assim foi também quando foi assassinado o MC Snake.  Anos antes, sempre na senda da desvalorização da violência racista da extrema-direita, o mesmo Pacheco Pereira já havia considerado o assassinato do dirigente do PSR, José Carvalho, pelo Movimento de Acão Nacional, uma milícia de extrema-direita, como sendo um “caso isolado”. Portanto, o padrão dos ataques de PP é sempre o mesmo e inscreve-se subtilmente na minimização do racismo e na catalogação das reações à violência racista como sendo “exageradas”, atentatórias à liberdade de expressão e “manipulatórias.”

Em 17 de Junho de 1995 (Expresso, 17-06-95), indignado com os exageros e a “histeria” das reações ao assassinato de Alcindo Monteiro por um bando de nazis a que pertencia MM, escreveu PP: “o que de todo não se justifica e, bem pelo contrário, merece também indignação mesmo que politicamente incorreto é o absoluto exagero, destempero, excesso não só das reações ao que aconteceu como do modo como o que aconteceu está a ser politicamente usado com a complacência de todos.”

Ainda sobre o terror da noite do 10 de junho de 1995, em que milícias nazis varreram o Bairro Alto, perseguindo, atacando, espancando negros e matando o Alcindo Monteiro, PP escreveu: “o ridículo de falar na 'noite de cristal' ou no 'terror fascista à solta pelas ruas de Lisboa' só não salta aos olhos de toda a gente porque o nosso discurso está tão degradado que as palavras já não têm o significado que pretendem ter.” Concluiria dizendo que “o que aconteceu foi um grave incidente racista que, não sendo isolado (...), não justifica, apesar de tudo, a dimensão apocalíptica que lhe querem dar”. Para além de ter classificado o assassinato de Alcindo Monteiro de “incidente racista” teve a proeza de nunca se referir ao nome dele em todo o artigo, tal o desvalor que atribuía ao que acontecera.

Portanto, sobre os ataques de alguém que mais tarde, em 2007, escrevia no seu blogue que “tudo na longa manutenção de prisão preventiva de Mário Machado é estranho e aponta para razões puramente políticas, o que é inadmissível numa democracia”, percebemos hoje que nada mais podia dizer sobre o branqueamento de um criminoso nazi que esteve preso no julgamento do caso de violência que vitimou Alcindo Monteiro.

E a propósito deste branqueamento, após o comunicado do SOS Racismo e da Carta Aberta que acolheu a subscrição de dezenas de coletivos e centenas de individualidades de pertenças socioecónomicas e filiações diversas, apareceu muito boa gente alarmada com a liberdade de expressão e, claro está, como não podia deixar de ser, o corolário do perigo censório, bem como a um pretenso ataque indiscriminado à comunicação social. Gente essa que seria secundada pela inenarrável deliberação da ERC, uma deliberação que, pela forma e pelo conteúdo, nos envergonha enquanto comunidade intransigentemente comprometida com o combate contra o racismo e preocupada com a defesa da democracia. A ERC escolheu encolher os ombros e assobiar para o lado como quase sempre fez nesta matéria, mostrando-se escandalosamente confortável com a normalização e a banalização do racismo na imprensa. Tendo optado pela inércia e pela desresponsabilização perante a ameaça aos valores democráticos essenciais, a ERC revelou-se institucional e politicamente imprevidente e inócua, contribuindo ainda para um maior descrédito das instituições. Não fosse a honrosa declaração de voto de Mário Mesquita e a desforra teria sido ainda maior, tal é a vacuidade ética da posição da entidade reguladora. E há que dizer que é falso e desonesto falar em ataque à liberdade de expressão e a toda a comunicação social. Aliás, só por má fé é que se pode invocar o pedido de sanções à TVI e outros órgãos de comunicação social por violação da lei para apoucar o ato de cidadania que foi a Carta Aberta.

Não deixa de ser curioso notar que aqueles que tentaram amesquinhar as reações ao que aconteceu optaram ou por desvalorizar o lugar e o papel da palavra nas opressões ou por relativizar e desconversar sobre a extrema-direita e o racismo, convocando a ladainha do Pedro e do lobo. Para os adeptos da fábula do Pedro e do lobo, recordo que, em 2017, o Professor Jorge Vala dizia a respeito do programa de investigação “Atitudes Sociais dos Portugueses”, baseando-se em dados do European Social Survey, que: “somos dos países da Europa que mais manifestam racismo biológico e cultural. Ou seja, acreditamos que se podem hierarquizar grupos humanos em função de fatores biológicos ou de fatores culturais.” Mas, ainda assim, contra todas as evidências, advertem-nos solenemente – e mesmo com o aumento exponencial de queixas por discriminação racial à Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial e a duplicação de inquéritos abertos por crimes de ódio pelo Ministério Público em 2018 –, que a extrema-direita só existe por falarmos dela. Numa caricatura perfeita das posições destes indefetíveis defensores da liberdade de expressão e avisados sentinelas contra o perigo fascista, pode-se, no limite, dizer que combater o racismo faz mal à democracia e que gente que se dedica a este ofício é, simplesmente, gente tola e idiota útil da facho-esfera. Esta posição de avestruz em nome da democracia não é defesa mas ataque à democracia.

Do alto do seu privilégio e da sua suprema condição de zeladores pela democracia, vêm dizer-nos que, em nome da liberdade de expressão, há o direito de ser racista, misógino e homófobo. Pois “opiniões racistas” são apenas “opiniões”. Intimam-nos a olhar para as palavras como se fossem vácuos separados da realidade física e das disputas que nela se operam. A tese é que as “opiniões”, sejam quais forem e seja qual for o seu grau de vilania e violência, têm a legitimidade de existir. Tão obnubilados com a defesa da liberdade de expressão estão que já pouco lhes importa se a “opinião” pode ou não servir para legitimar a violência, sobretudo aquela que põe em causa a dignidade da pessoa.

Inocentar a “opinião”, como se nada tivesse a ver com a ação e a prática social e política, é por si só um ato de violência. Para quem é sistematicamente esmagado e violentado pelo poder das ideias e das “opiniões”, das convenções sociais e políticas que o remetem para um lugar de subalternidade e de estigma, toda a tese de que o racismo, o machismo e a homofobia são meras opiniões é uma afronta. Dar palco à ideologia fascista e racista, seja em que circunstância for, nada tem que ver com a preservação do exercício da liberdade de expressão. É, antes pelo contrário, uma capitulação perante a tese de que na disputa política todas as ideias têm o mesmo direito ao capítulo e, por conseguinte, a mesma legitimidade. Não, em democracia, o que põe em causa a dignidade humana não merece respeito nem lugar. A armadilha não é não saber distinguir uma estratégia comercial vil e torpe de caça às audiências com a adesão política de banalização do fascismo e do racismo na imprensa. A armadilha é antes, por taticismo ou alheamento, relativizar a dimensão do racismo na sociedade portuguesa, dando cobertura a uma narrativa estafada e completamente desfasada da realidade de negação do racismo. Aí sim, quando acordarmos, como tem acontecido um pouco por toda a parte, pode o pesadelo ser tão grande que talvez nos arrependamos das teses dos exageros das reações à real dimensão da extrema-direita. Portanto, é de repetir até a exaustão que a ida do facínora ao programa da TVI não foi nenhum exercício de liberdade de expressão. Não se tratou de escolher entre liberdade de expressão e censura, mas sim entre a democracia e o ódio racial. Não basta arguir que a subjetividade de crenças ofensivas e violentas pode enquadrar-se na esfera da opinião. Daí que o racismo jamais pode ser considerado uma mera opinião, pois belisca um bem maior, a humanidade de alguns, sejam muitos ou poucos.

Numa sociedade decente, o direito à dignidade está acima do direito à liberdade de ofender e de violentar e consiste na responsabilidade de não usar o direito à liberdade de ofender para exercer violência. Esta é a baliza ética do limite à liberdade de expressão, numa sociedade decente. A liberdade de expressão não pode servir para não falar do racismo e muito menos para banalizá-lo.

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