observador.ptJosé Augusto Filho - 14 jan. 00:20

O ditador, os tiranetes e a ópera bufa autoritária

O ditador, os tiranetes e a ópera bufa autoritária

A posse de Maduro foi uma encenação do que restou de mais farsesco, autoritário e mofado no cenário político mundial. Numa peça de humor sem graça, o PT foi representado pela presidente do partido.

“Fidel não será absolvido pela história”, sentenciou o escritor peruano Mario Vargas Llosa, dois dias após a morte do velho ditador cubano. O veredito atingia frontalmente o mito criado pelo livro A história me absolverá – célebre discurso feito em autodefesa perante o tribunal que condenou o líder revolucionário em 1953, após uma tentativa falhada de golpe. Como poucos, Vargas Llosa conhece o sinal invertido dos regimes implantados pelos “libertadores” da América Latina e Caribe.

O “discurso em defesa da democracia, contra a injustiça social, a corrupção e violência policial que marcaram a vida de Cuba anos antes da revolução” de Fidel encantou plateias de incautos pelo mundo – o próprio Vargas Llosa caiu no canto da sereia do ideal delirante socialista. Mas foi o povo cubano, antes vítima da tirania do caudilho Fulgencio Batista, quem teve páginas de sua história escritas com o sangue daqueles que ousaram levantar voz contra a crueldade do regime comunista dos irmãos Castro.

Quando proferiu sua sentença, Vargas Llosa disse ao El País esperar “que uma etapa democrática e de esclarecimento dos fatos ocorridos desde a Revolução de 1959” pudesse acontecer para reescrever a biografia do ditador cubano. Entretanto, passados pouco mais de dois anos, o legado de Fidel continua a moldar regimes rotulados de esquerda. Fortemente influenciado pelo castrismo da ilha-prisão, o bolivarianismo da Venezuela é um exemplo de ordem política que mimetiza as características essenciais da sua matriz ideológica, nomeadamente a pobreza, a corrupção e o autoritarismo.

Conceito de socialismo inventado por Hugo Chávez, o bolivarianismo é um engodo que se apropria do mito de Simon Bolivar – um oligarca aspirante a substituto de dominador espanhol –, para contrapor-se ao marxismo-leninismo decadente do final do século XX. Segundo o historiador Marco Antonio Villa, o bolivarianismo «nunca passou de um amontoado mal articulado de chavões esquerdistas associados à velha retórica caudilhesca latino-americana». Mas o engodo funciona como força propulsora das causas da tragédia venezuelana.

O socialismo bolivariano de Chávez e Maduro foi exitoso enquanto os “petrodólares” puderam custear os devaneios dos tiranetes lunáticos. Nos primeiros anos, com o preço do petróleo em alta e controle cambial, o regime garantia recursos para manter os programas sociais e ainda tinha margem para as orgias de corruptos que desviavam dólares para vender no mercado paralelo com sobrepreço até 12 vezes o valor oficial.

Entretanto, o castelo de cartas bolivariano ruiu ao primeiro sopro da queda em flecha do preço da commodity a partir de 2014. A tragédia anunciada de um Estado que esmaga a liberdade e a espontaneidade individual se materializou gradativamente no sofrimento da população. Os números de 2018 são catastróficos: a inflação foi de 1.698.488,2%; o crescimento do PIB, -18%; o desemprego atingiu quase 50% da população. Diante da grave crise humanitária, a Venezuela segue presa a uma situação que promete piorar antes de começar a melhorar.

A sorte do país não muda muito ao depender de forças políticas internas contrárias ao chavismo – centenas de críticos padecem nas prisões do regime. Formada por uma direita radical com dificuldade de unificar suas agendas, a oposição domina o Parlamento e faz do Legislativo sua trincheira. Já no segundo dia do novo mandato de Maduro, o presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, conclamou o apoio da população, dos militares e da comunidade internacional para convocar nova eleição.

O secretário-geral da OEA, Luis Almagro, imediatamente saudou Guaidó de “presidente interino” no Twitter. O governo brasileiro divulgou nota de apoio à decisão do parlamentar de “assumir constitucionalmente a Presidência da Venezuela”. No entanto, por ordem de Maduro, a ousadia do opositor foi punida com a prisão. Como se vê, atores externos pouco podem fazer para além de pressionar, aplicando sanções econômicas e diplomáticas. Para dissabor dos globalistas, a soberania dos Estados ainda é um ativo no sistema internacional.

Mesmo numa encruzilhada, o tiranete está disposto a permanecer no cargo – ilegítimo na visão até de elementos associados à esquerda. É impagável o editorial do El País, que finalmente assumiu posição crítica ao regime, intitulado “A farsa de Maduro”. Já não é mais possível tapar o sol com a peneira, o socialismo bolivariano matou a democracia e converteu-se em ditadura.

A alavanca que pode destravar o poder na Venezuela está nas mãos dos militares. O dia em que as forças armadas – donas de grande protagonismo na história política do país e até aqui sustentáculo do regime – retirarem o apoio ao bolivarianismo, Maduro cai, por que podre já está. Acuado, o pupilo de Chávez atira para todos os lados. Seus blefes miram principalmente os adversários externos – reais ou imaginários. Maduro é um presidente à procura de inimigos.

Neste momento, uma crise regional é tudo que o tiranete precisa para catalisar apoio doméstico, continuar a reprimir brutalmente a oposição e, de borla, ainda posar de vítima perante os aliados estrangeiros – poucos, diga-se a verdade. Nada como um inimigo externo para justificar a existência de um governo autoritário, tática bastante eficiente que permitiu aos soviéticos assassinarem milhões de compatriotas e conservar o poder por mais de sete décadas.

A história recente mostra que as relações entre Venezuela e Colômbia estão longe de serem classificadas como amistosas. Todavia, é na fronteira com a Guiana que o tiranete avança suas peças para dar um xeque mate e abocanhar 2/3 do território vizinho. Uma decisão de 1899 de um tribunal internacional concedeu o direito à Guiana sobre a região de Essequibo. Entretanto, o mapa venezuelano desenhado por Chávez não acata a resolução. O regime passou a reivindicar direitos sobre o território, e não raro são registrados incidentes. Enquanto a ONU não arbitra o litígio, o agressor oportunista faz valer a vantagem das armas.

A Venezuela detém hoje, seguramente, uma das forças armadas mais bem equipadas e modernas do subcontinente Sul-americano. Interessados em desestabilizar o “quintal” dos Estados Unidos, russos e chineses figuram como os maiores fornecedores de armas do país. Não por coincidência, o mesmo autoritarismo que aproxima Venezuela, Rússia e China também serve para atrair para a órbita do socialismo bolivariano devotados apoiadores, os participantes da ópera bufa encenada na posse do tiranete para novo mandato.

À cerimônia realizada no Tribunal Supremo de Justiça, dominado pelo regime, meia dúzia de gatos-pingados compareceram para aplaudir o camarada. Igualmente irrelevantes, outros preferiram enviar mensagens a reforçar a crença no delírio coletivo. Esse foi o caso dos partidos comunistas de Brasil e Portugal, que não perderam a chance de propagandear seu discurso mofado, a retratar o regime bolivariano como vítima, alvo de “desestabilizadoras armações imperialistas”.

Sem as presenças de chefes-de Estado dos principais países da América Latina e Caribe, dos Estados Unidos e da União Europeia, assim como dos parceiros Rússia e China, Maduro teve de se contentar com a claque amestrada de tiranetes de segundo escalão. Os presidentes da Bolívia, Evo Morales; Nicarágua, Daniel Ortega; Cuba, Miguel Díaz-Canel; El Salvador, Salvador Sánchez Cerén; e Ossétia do Sul (país não reconhecido pela ONU), Anatoly Bibilov, foram os únicos que tiveram coragem, ou despudor, de comparecer para renovar apoio ao camarada venezuelano.

Entretanto, uma personagem merece destaque no enredo farsesco executado na posse do pupilo de Chávez. Trata-se da deputada eleita Gleisi Hoffmamn, presidente do Partido dos Trabalhadores de Lula da Silva, orgulhosa no papel de títere de presidiário. O gesto representou a prova de fidelidade do partido ao socialismo, ideologia que os petistas negaram durante a campanha eleitoral. Por mais que seus políticos tentem esconder, sua natureza autoritária, a beirar o totalitarismo, sempre se revela.

Gleisi e seu partido idolatram o castrismo. Fidel, Chávez e Maduro são seus melhores exemplos de lideranças na pretensa tarefa de unificar o poder político continental nas mãos daquilo que rotulam de esquerda. Se Fernando Haddad tivesse vencido a eleição, o Brasil seria conduzido para o mesmo buraco no qual se encontram Cuba e Venezuela. Quando Bolsonaro prometeu no seu discurso inaugural “o país vai se libertar do socialismo”, em que pese o tom messiânico, o presidente estava certo.

Os petistas fizeram troça da fala de Bolsonaro, considerada um exagero. Entretanto, sob o lulopetismo, a verdade é que o Brasil deu passos largos em direção ao socialismo. Os exemplos saltam aos olhos. Da mesma forma que os bolivarianos de matriz castrista, o país foi capturado pelo narcotráfico, assistiu ao empobrecimento da população, à desindustrialização e ao enfraquecimento da livre iniciativa, ao aparelhamento das instituições, à corrupção estrutural, ao ataque à democracia e ao estado de direito etc. Ou será que estas não são algumas das mais expressivas realizações da onda de governos bolivarianos iniciada por Chávez em 1999?

Por trás desta catástrofe, que levará décadas até ser reparada, está o Foro de São Paulo, organização criado por Fidel Castro e Lula da Silva, em 1995, para congregar a esquerda na América Latina e Caribe, incluindo os terroristas e narcotraficantes das FARC. A região sempre foi alvo de líderes exclusivistas, imprudentes e obcecados pelo poder. Mas poucos foram tão erráticos quanto os da esquerda que, no comando político de seus países, desperdiçaram um momento historicamente favorável ao desenvolvimento de uma parte do mundo que parece fadada ao atraso. Numa narrativa digna do realismo mágico de Vargas Llosa, o líder petista foi condenado e preso por seus crimes. E como afirmou o escritor peruano, “Fidel não será absolvido pela história”.

Jornalista e doutorando em Ciência Política e Relações Internacionais no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa. Pesquisa os desafios do multilateralismo liberal no presente contexto de transformação da ordem mundial.

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