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O mundo secreto que Constantino criou e toda a vida o perseguiu

O mundo secreto que Constantino criou e toda a vida o perseguiu

Acumulou processos em tribunais de todo o país, por burlas e falsificação. Fugiu duas vezes da prisão. Cumpre actualmente 39 anos num país onde a regra é que a pena máxima seja de 25. Estivemos com Constantino Dias Oliveira na Cadeia de Santa Cruz d

As burlas replicavam-se a um ritmo tal que se tornaram um modo de vida. “Não o único, mas o necessário.” As ilegalidades que Constantino Dias Oliveira alternava com “negócios legais” confundiam-se na rotina dos meses. Mais do que uma mentira, ganhava corpo uma verdade paralela e (acreditava ele) inofensiva.

Dessa prática, que diz ter desenvolvido para sobreviver, a mulher não tinha conhecimento. A filha nem imaginava. As irmãs e irmãos não desconfiavam. A vida familiar mantinha uma aparência de rendimentos garantidos, com o recurso a documentos falsos e a cheques sem cobertura. Muitos anos depois, já com dezenas de processos acumulados em tribunais de todo o país, o mundo secreto de Constantino ruiu.

Ainda novo, apresenta-se como comerciante de electrodomésticos. Desloca-se a várias zonas do país, onde burlou dezenas, se não centenas de pessoas. Também em Espanha desenvolve negócios e pratica mais burlas. Saberia o que estava errado, mas dificilmente fazia o que era certo. Como um vício.

Está preso desde 2002, sem nunca lhe ter sido permitida uma saída precária devido ao padrão de fugas demonstrado, lê-se em processos judiciais que arquivou para preparar a sua defesa. Os quase 39 anos de prisão a que foi condenado resultam de três cúmulos sucessivos de penas por crimes de burla, falsificação, emissão de cheque sem provisão, furto, evasão, entre outros.

Constantino foi condenado primeiro a sete anos e 11 meses, depois a 16 anos e por fim a 15 anos — num total de 38 anos e 11 meses, um período superior aos 25 anos previstos como pena única máxima de prisão em Portugal.

Numa sala de visitas do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, mostra documentos dos processos judiciais metodicamente arquivados em pastas, partilha os poemas que escreve e publica na revista da associação de inspiração cristã Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos. Nas mais de quatro horas de entrevista, várias vezes tenta não chorar. Nunca a expressão se lhe rasga num sorriso, num brilho no olhar, num qualquer sinal de alívio.

Mais do que o máximo

A Constituição da República estabelece que “não pode haver penas” de prisão “com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida”. O Código Penal prevê, desde 1995, que “em caso algum pode ser excedido o limite máximo referido” de 25 anos de prisão.
Contudo, entre outros, um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, citado no Código Penal, determinou em 2012 que “desde que haja sucessão de crimes ou um crime continuado, nada impede que um determinado arguido cumpra diversas penas de 25 anos de prisão”.
Quando há penas a serem cumpridas sucessivamente, o condenado começa a cumprir a metade da segunda pena logo que tenha concluído a primeira metade da primeira pena. E assim sucessivamente. Tal está previsto no Código Penal e dá a possibilidade ao condenado de ver analisada a sua saída em liberdade condicional quando tiver cumprido metade do total das penas sucessivas.

“Sem explicação”

Constantino inicia a actividade criminosa em 1978, com 24 anos, após uma adolescência atormentada pelos episódios de violência em casa. “Não aguentava aquilo”, diz trémulo de comoção. Conclui o liceu e planeia prosseguir os estudos, mas sai de casa. Tenta, sem conseguir, uma admissão como quadro permanente do Exército. Trabalha, sem conseguir entregar-se a um emprego fixo. Não suporta o trauma, os ataques do pai sobre a mãe que durante anos tentou proteger, interpondo-se entre os dois.

“Não sei como aquilo aconteceu”, diz uma primeira vez sobre essas lembranças. Di-lo outra vez quando evoca a mentira em que envolveu desconhecidos (que burlou) e familiares (que enganou). “Foi um comportamento que não tem explicação. Acho que fui demasiado mau para toda a gente.”

A filha tem sete anos quando Constantino tenta o suicídio por “não aguentar” ser mais uma vez recapturado pela polícia.

Ainda muito novo, 25 anos apenas, é preso uma primeira vez, anda fugido, e é de novo apanhado cerca de um ano depois. Engendra nova fuga em 1987, e vive à margem até 1996. 

Já depois de internado por perigo de suicídio, consegue escapar do Hospital Sobral Cid em Outubro de 1998, onde esteve 42 dias (e não quatro anos como o PÚBLICO referiu inicialmente quando noticiou este caso). “Eu sabia que um dia isto podia acontecer”, diz-lhe a filha ao ver o pai preso, pela terceira e última vez em que é recapturado, em 2002. Constantino sente, como nunca antes sentira, um manto de culpa cair sobre ele. “Sempre pensei que a minha filha não percebia o que eu fazia. Até esse momento.”

“Sempre pensei que a minha filha não percebia o que eu fazia"

Em Janeiro de 2014, 12 anos passados sem saídas precárias, a psicóloga do EP de Santa Cruz do Bispo elabora uma informação clínica “para efeitos jurídicos” na qual refere o acompanhamento psiquiátrico desde os 17 anos e “as condutas suicidas” nos períodos de maior vulnerabilidade psicológica de Constantino. “Neste estabelecimento prisional, já ocorreram episódios de agravamento do seu estado mental”, salienta a psicóloga, que aponta como ��factores de mau prognóstico”, “além da idade e da evolução clínica crónica” de Constantino, “o longo período de reclusão, sem medidas de flexibilização da pena, e recente doença da esposa a exigir internamento”. A equipa enfatiza ainda que “o contexto prisional acresce negativamente ao prognóstico” do recluso.

“A longa reclusão, o não beneficiar de medidas de flexibilização da pena e o agravamento do estado clínico” voltam, em Novembro do mesmo ano, a ser apontados “entre os vários factores de risco” numa informação clínica feita a pedido de Constantino Dias Oliveira. Nessa ocasião, a psicóloga reporta “sintomas de depressão, instabilidade emocional, humor triste e elevada ansiedade” e “frequentes” ideias suicidas, sendo estas, em períodos de maior instabilidade, “mais estruturadas”.

Duas visitas por mês

Quer poupar a mulher, dizendo-lhe para não ir visitá-lo. “A pena da minha mulher é maior do que a minha.” Contudo, religiosamente, Sara Santos, que vive em Lisboa, vai ao Porto e cumpre o ritual de fazer pelo menos duas visitas por mês. “Sou abençoado por ter esta família.”

É a uma morte natural (e não às duas tentativas de suicídio) que parece referir-se quando diz: “Talvez seja apenas por eles que eu estou vivo.” Constantino fala mais da solidão de Sara do que da sua. Chora de novo ao contar como a mulher saudável quebrou. Começou a certa altura a ter visões do marido. Ora o via em liberdade, bem, ou a ser torturado com picos, o corpo ferido. Esteve internada. Hoje está bem.

Não encontra perdão para o que fez. “Eu deixei a minha filha com 13 anos, e hoje ela tem 29. Elas também sofrem, como eu.” Fala da filha, da mulher e de uma das irmãs, em particular. “Fiz-lhes tanto mal, provoquei-lhes tanta dor.”

“A minha mulher não sabia que eu estava fugido, sabia que eu tinha problemas com a Justiça.” Até ao dia em que a própria polícia coloca um “anúncio muito chamativo” no jornal Ocasião. Constantino liga, diz-se interessado na compra, combina a entrega da encomenda imaginando que esta lhe valerá uma lucrativa revenda depois de a adquirir, como sempre fazia, com um cheque falso. Chega ao local e é abordado por cinco polícias vestidos à civil, que o prendem.

Os cinco minutos a que tem direito para telefonar da cabine da prisão “é o melhor dos dias”, declara sem hesitar. Partilha as sete chamadas telefónicas a que tem direito por cada um dos sete dias da semana, pelas três pessoas a que gostaria de poder acudir. Todas as manhãs, dá-lhes um toque como um sinal a que elas — a filha, a mulher e uma das irmãs — só respondem se precisarem, diz Constantino. Se nenhuma atender, liga à destinatária previamente designada da chamada desse dia. 

Cumpre horários certos nas manhãs e nas tardes de segunda a sexta como responsável da lavandaria da masculina de Santa Cruz do Bispo. Antes disso, trabalhou no bar e criou uma biblioteca na Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental. Por mês, recebe 37 euros com os quais compra a comida do bar que leva para a cela. Janta e almoça sozinho e é sozinho que passa a maior parte dos tempos livres.

Os cinco minutos a que tem direito para telefonar da cabine da prisão “é o melhor dos dias"

Perturba-o “a grande barulheira” do refeitório, as situações que lhe causam revolta sem que possa alterar nada e o fumo dos vários consumos supostamente proibidos, mas afinal consentidos, aos reclusos. Privilegia o silêncio da minúscula cela com a ténue luz de uma pequena janela quadrada junto ao tecto. Passa horas a ler manuais de Direito — o Código Penal, o Código do Processo Penal e outros — como quem respira a possibilidade de uma libertação.

Tem amigos, diz. “Muitos amigos.” São os que confiam nele para lhes redigir papelada dirigida ao tribunal ou aos directores do estabelecimento ou dos serviços prisionais — requerimentos, pedidos e algumas queixas. Embora tenha esse direito, a maioria dos presos não tem advogado — pela ausência de informação e agilidade do sistema, pela falta de predisposição de defensores de pessoas já condenadas.

Não pede nada em troca, não vende nenhum serviço, assegura, embora seja essa a prática na prisão onde tudo se vende ou se aluga, desde logo telemóveis para fintar a proibição de contacto com o mundo lá fora. Com ou sem represálias, não desiste de falar: acredita que já cumpriu a pena merecida pelos crimes que cometeu.

Páginas e páginas de processos

Via o que o jornal Ocasião anunciava, escolhia o que corresponderia a dinheiro imediato, telefonava e fingia-se interessado na compra. Combinava uma hora e um local, sempre com morada diferente, onde ainda na rua recebia a encomenda — habitualmente computadores, pequenos electrodomésticos ou outros aparelhos eléctricos. Retribuía com um cheque sem cobertura e uma identidade falsa e logo os revendia. Chegou a fingir ter dinheiro para comprar jóias e outros bens valiosos. “Se era um comportamento compulsivo? Não. Era um modo de subsistência.”

Mostra páginas e páginas de processos acumulados por crimes julgados em simultâneo (dando lugar a um cúmulo jurídico de penas), ou em paralelo. Teve processos que correram em tribunais dispersos, sem que a informação fosse reunida num só. Andou fugido, não recebia as notificações do tribunal. Aconteceu-lhe ser julgado duas vezes pelo mesmo facto. Não se diz inocente, diz-se injustiçado. Vê-se como um condenado a prisão perpétua.

Contando o tempo que passou na prisão a partir de 2002 apenas, a eventual análise de uma liberdade condicional só poderia acontecer em 2021 (nesse ano, acaba de cumprir metade da pena) ou em 2024 (quando chega aos dois terços). A contar-se o período de prisão que cumpriu antes das evasões de 1979 e de 1987 (foi recapturado em 1996), a metade da pena já estaria ultrapassada e a liberdade condicional poderia já ter sido apreciada. 

Via o que o jornal Ocasião anunciava, escolhia o que corresponderia a dinheiro imediato, telefonava e fingia-se interessado na compra. Combinava uma hora e um local, sempre com morada diferente, onde ainda na rua recebia a encomenda – habitualmente computadores, pequenos electrodomésticos ou outros aparelhos eléctricos. Retribuía com um cheque sem cobertura e uma identidade falsa e logo os revendia.

O Tribunal de Execução de Penas (TEP) do Porto não tem, no entanto, prevista uma análise da liberdade condicional de Constantino, com o argumento de que ele cometeu um crime continuado, ao longo dos anos e nos intervalos de tempo em que andou fugido (porém, Constantino não desiste e continua a reclamar junto do TEP que lhe seja revista a pena, o que lhe permitiria sair em condicional).

Numa decisão de 19 de Março de 2009, o juiz-conselheiro Artur Rodrigues da Costa manifestou outro entendimento da lei. Em resposta a um pedido de revisão da pena, considerou que tendo já o condenado uma primeira sentença de 23 anos, “quase o máximo absoluto consentido por lei”, à qual “se soma a pena do presente cúmulo”, poderia ficar comprometida “por completo a sua reinserção”. Constantino tinha então 54 anos e correria “o risco de passar o resto dos seus dias no estabelecimento prisional”.

Além disso, declarou Rodrigues da Costa, quando há conhecimento posterior a uma condenação de crimes “em situação de concurso com os anteriores”, por serem crimes idênticos, “não há nenhuma obrigação de respeitar a pena conjunta anterior”. O magistrado referiu ainda que “a reformulação é um novo cúmulo, em que tudo se passa como se o anterior não existisse”. 

Nesse acórdão do Supremo Tribunal, de Março de 2009, o juiz deu-se vencido na decisão de apenas ser reduzida a pena de 17 para 16 anos (no segundo cúmulo sucessivo de Constantino).

Nessa altura, o preso ainda tinha como primeira sentença acumulada de vários processos um total de 23 anos que ele próprio contestou, conseguindo, ao fim de cinco anos de diligências, baixar para 15 anos; mas ainda não fora decidida a terceira pena de 15 anos.

Na cadeia, Constantino nunca teve uma sanção disciplinar, registou sempre um bom comportamento e viu reconhecida a relevância, para a sua reinserção, de ter uma família que o apoia incondicionalmente. Com os seus 64 anos, completados neste domingo, não sabe o que esperar do tempo que lhe resta dentro — ou fora — da prisão.

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