observador.ptobservador.pt - 18 nov. 10:30

Cada livro perdido é uma pequena tragédia

Cada livro perdido é uma pequena tragédia

O italiano Giorgio van Straten contou a história de oito livros e do seu súbito e muitas vezes misterioso desaparecimento e mostrou que, pelo menos na literatura, a vida nem sempre acaba com a morte.

Título: Histórias de Livros Perdidos
Autor: Giorgio van Straten
Editora: Elsinore
Páginas: 144
Preço: 14,99 €

Histórias de Livros Perdidos, do italiano Giorgio van Straten, chegou às livrarias no final do mês de outubro

Uma das histórias mais tristes de toda a humanidade é a da destruição da Biblioteca de Alexandria. No interior da maior, mais imponente e mais importante biblioteca do mundo antigo estima-se que existissem cerca de 400 mil papiros, com muitos milhares de obras lá dentro. Com o seu fim, desapareceram as palavras e os ensinamentos dos mais influentes escritores e pensadores da Antiguidade, que, por mais que queiramos, nunca iremos conseguir recuperar. Nem é possível calcular o que se perdeu, tal era a dimensão do que havia na capital do Egito, da mesma forma que não é possível imaginar o que sentiu Malcolm Lowry, ainda que numa escala muito mais pequena, quando percebeu que o trabalho de quase uma década ardia no interior de uma cabana de madeira em Vancouver. O que chegou até nós não é suficiente para haver certezas, mas talvez Rumo ao Mar Branco fosse a grande obra do escritor inglês. Ainda maior do que Debaixo do Vulcão.

Lowry é um dos oito escritores que o italiano Giorgio van Straten escolheu incluir em Histórias de Livros Perdidos, sobre obras que, apesar de terem existido, já não existem mais. “Não são, pois, os livros esquecidos que, como sucede com a maior parte dos homens, desaparecem aos poucos da recordação de quem os leu, evaporando-se das histórias da literatura, esvaindo-se com a existência dos seus autores.” Estes, explicou van Straten, podem ser encontrados em qualquer livraria. Já as memórias de Lord Byron ou a segunda parte de Almas Mortas de Nikolai Gogól, cujo desaparecimento van Straten relatou, perderam-se para sempre.

Estas oito histórias de oito obras perdidas aparecem no livro de van Straten sem ordem aparente. O objetivo foi, segundo van Straten, levar o leitor numa “volta ao mundo em oito volumes, ao invés de oitenta dias”. “Parti do livro que não consegui salvar, da minha casa, porque a minha casa, como a de Romano Bilenchi, está em Florença, e depois mudei-me para Londres, e depois de um percurso circular, a Londres regressei, como Phileas Fogg, tendo passado por França, Polónia, Rússia, Canadá e Espanha”, esclareceu o autor na introdução. O livro que o italiano não conseguiu salvar e que serve de ponto de partida é o romance Il Viale, do amigo Romano Bilenchi, que van Straten chegou a ler antes de se perder para sempre por decisão da viúva, Maria. A última paragem é o romance Double Exposure, de Sylvia Plath. Entre estes dois, talvez várias obras de  génio que se perderam. Como o romance de Lowry.

A vida depois da morte

Chamar ao livro de van Straten “uma pequena obra-prima”, como a editora Elsinore fez ao citar o The Guardian, é certamente um exagero. Ainda que tenha sido escrito com base em alguma pesquisa, este não apresenta nada de novo. Não há nenhuma novidade palpitante que dê a entender ao leitor que existe, afinal, a possibilidade, ainda que ínfima, de um dia se vir a encontrar alguma destas obras perdidas ou que ajude a desvendar o rumo muitas vezes incerto de alguma delas. Ainda que o contrário fosse um pouco estranho, Histórias de Livros Perdidos acaba assim por limitar-se a reunir a informação que qualquer um pode facilmente encontrar, a custo zero, na Internet. Em 2018, não passa de uma curiosidade.

A forma como van Straten relata o destino trágico dos oito manuscritos também não tem nada de brilhante. A sua escrita é seca, direta, e as suas histórias parecem às vezes demasiado sucintas. Sabem a pouco. Só no caso de Walter Benjamin e Sylvia Plath é que parece conter alguma espécie de emoção. Talvez porque, no caso destes autores, o desaparecimento dos seus livros tenha sido ditado pelo seu desaparecimento físico. Com o suicídio de Benjamin perdeu-se o conteúdo da sua mítica mala preta; com o de Plath, um romance inacabado. Não se sabe o que nenhum dos dois continha.

As circunstâncias em que um e outro desapareceram são muito diferentes, mas igualmente trágicas. No caso de Benjamin, o misterioso caso está relacionado com a sua fuga de Paris, cidade onde viveu longos anos, onde escreveu algumas das suas obras mais importantes e que se viu obrigado a abandonar depois da invasão de França pelos nazis, em 1940. Benjamin era alemão, mas era também judeu: não teve outro remédio senão fugir. Dirigiu-se então para Marselha, com o objetivo de entrar em Espanha, seguir para Portugal e depois, a partir daí, arranjar um barco que o levasse para os Estados Unidos da América, onde pretendia viver calmamente os últimos anos da sua vida (tinha então 50 anos). O ensaísta tinha amigos do outro lado de Atlântico, mas isso de pouco lhe valeu ao chegar a território catalão — as regras do jogo tinham mudado e, uma vez chegado à cidade de Port Bou, foi informado que teria de ser deportado.

Walter Benjamin, que tinha feito vários quilómetros com grande dificuldade (sofria de vários problemas de saúde, incluindo asma) agarrado a uma mala preta que se recusava a largar, decidiu que não sairia de Port Bou, que não acabaria nas mãos da Gestapo. A 26 de setembro, matou-se com 31 pastilhas de morfina no quarto n.º 3 do Hotel França da localidade catalã. A mala, onde alguns acreditam que estava o manuscrito completo de Passages, a sua monumental obra sobre Paris, e todo o seu conteúdo desapareceram para sempre.

O desaparecimento do romance inacabado de Sylvia Plath, Double Exposure, também parece ter sido ditado pelo seu suicídio. No dia 11 de fevereiro de 1963, Plath ligou o fogão da cozinha do apartamento em que vivia em Londres, trancou-se lá dentro e deixou-se morrer. Tinha então completado 30 anos. Depois da sua morte, foi o marido, o poeta Ted Hughes, com quem tinha uma relação tão complicada que na altura do seu suicídio já nem viviam juntos (ela tinha descoberto que ele a traía), que se tornou responsável pela publicação da sua obra, que na altura era composta maioritariamente por inéditos. Foi Hughes que tratou da edição de Ariel, a coletânea de poemas que tornou Plath postumamente conhecida, mas também foi Hughes que parece ter desaparecido com o manuscrito de um romance que a escritora deixou inacabado, como contou van Straten num dos melhores textos do seu livro.

Intitulado Double Exposure, até hoje não se sabe o que lhe aconteceu. Ted Hughes foi várias vezes questionado sobre o seu paradeiro, mas nunca soube dar uma resposta satisfatória. Isso levou a que muitos chegassem à conclusão de que ele o tinha destruído. Não seria a primeira vez, uma vez que o próprio tinha admitido ter desaparecido com as páginas do diário da mulher que falavam das suas traições porque não queria que os filhos as lessem. Mas há outros, como o autor de Histórias de Livros Perdidos, que preferem acreditar que o manuscrito está intacto e guardado na Universidade de Georgia, a instituição a que o poeta doou os papéis de Sylvia Plath. Há uma parte desse material que não pode ser consultada antes de 2020, altura em que se assinalam os 60 anos da morte precoce de Plath. Giorgio van Straten está disposto a esperar — talvez possa afinal encontrar o seu final feliz.

Não deixa de ser curioso que no caso de Benjamin, Plath e uns quantos outros,  as suas obras se tenham perdido precisamente quando a sua vida terminou. Talvez não pudesse ser de outra forma. Depois do desaparecimento do trabalho de uma vida, o que poderia sobrar, afinal? Talvez apenas o vazio impreenchível, mas não necessariamente a morte.

Na introdução, van Stranten admitiu ter dado conta “de que os livros perdidos têm algo que os outros não possuem: deixam-nos a nós, não leitores, a possibilidade de imaginá-los, de contá-los de reinventá-los”. E não foram poucas as vezes que os livros perdidos inspiraram outros, como aconteceu com O Messias, de Bruno Schulz, cuja história também foi contada neste volume. “E, se por um lado continuam a escapar-nos, a afastarem-se na medida do quanto mais procuramos agarrá-los, por outro, ganham nova vida dentro de nós e, no fim, como o tempo proustiano, podemos dizer que os encontrámos.” Talvez, pelo menos na literatura, haja vida depois da morte.

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