ionline.sapo.ptionline.sapo.pt - 18 nov. 08:09

O tempo da poesia e o Homo algoritmus

O tempo da poesia e o Homo algoritmus

Redes sociais sempre existiram, mensageiros, cartas, nossas relações pessoais, tudo isto sempre foram redes sociais. Mas as de hoje, estas feitas de algoritmos – e na cena política uma incansável fábrica de fake news – nos faz pensar no destino da linguagem

“(...) Não é isto a farsa mais digna de riso, se não fora tanto para chorar? Na comédia o rei veste como rei e fala como rei, o lacaio veste como lacaio e fala como lacaio, o rústico veste como rústico e fala como rústico, mas um pregador vestir como religioso e falar como... não o quero dizer por reverência ao lugar(...)”. Ao inaugurar aqui este espaço, iniciei, não por acaso, com um trecho de os Sermões, Volume I, de Padre Antônio Vieira, por serem as palavras que recentemente ecoaram longínquas e, ao mesmo tempo, tão próximas em minha memória no último dia 28 de outubro, quando deu-se o primeiro pronunciamento em rede nacional do novo presidente do Brasil, dono de um discurso de ódio, racista, misógino, homofóbico e elitista, que a maioria do povo brasileiro elegeu nesta onda neofascista que tomou conta do país.

E por que justamente estas palavras de Vieira me vieram naquele momento? Porque, tanto tempo depois de escritas elas emolduram o deprimente ritual de leitura do primeiro pronunciamento da presidência, que começa com um círculo de asseclas e bajuladores, de mãos dadas, olhos fechados, conduzidos em uma oração por um pastor evangélico cuja única devoção é o dinheiro, o que já fere o princípio laico do Estado, a colocar a bíblia na ordem do rito antes da Constituição. O pastor, típico representante do fundamentalismo religioso que cresce vertiginosamente no Brasil, proferiu uma oração em gratidão por sua magna malta estar ali recebendo da graça divina aquele momento de abocanhar o poder, a fazer de Deus o seu grande cabo eleitoral ou seu mais eficiente marqueteiro político. Um ato hipócrita com ares de uma seita religiosa prestes a saciar sua fome de ambição à custa dos crédulos. A grande parcela da população elegeu o novo presidente – cujo nome, ironicamente, começa com “bolso” – por ansiar o fim da corrupção, nada mais justo se não fosse o fato de, antes mesmo de tomar posse, este já seja denunciado por crime de caixa 2, dinheiro não contabilizado, utilizado para o impulsionamento de fakenews em redes de whatsapp. Acrescente-se um filho que aumentou seu patrimônio em 432% em quatro anos como deputado e um futuro ministro da economia envolvido em incontáveis fraudes financeiras. Um forte cheiro de podridão no reino da Dinamarca cuja bandeira, costurada por seus eleitores, é o combate à corrupção.  

Mas, pode se perguntar por que todas estas considerações sobre um assunto que, diretamente, não é ao que este espaço se propõe: a arte, a poesia. É que em um primeiro momento não pude furtar-me a isso porque tal fato, além de sua própria existência daninha, me leva a uma outra dimensão. Ver/ouvir a cena do primeiro pronunciamento absolutamente vago do nosso Führer –  antecipado de uma demagógica pregação de um pastor venal – proferido de forma mecânica de quem não sabe ao certo o  que está dizendo e numa pontuação que obviamente que não é a de quem lê e por isso mesmo lê como um boneco de ventríloquo, já que na realidade não é ele que está dizendo aquilo, pois, obviamente, foi escrito por outra pessoa, desprovê a linguagem e o idioma de todos os seus elementos que a vivificam e a animam, que a tornam um ser vivo e orgânico, que a elevam a um patamar de dignidade estética e semântica, pois como lembra e compara Octávio Paz em O arco e a lira “a pedra tornada em escada se rebaixa, transformada em escultura se eleva”. No caso da vergonhosa cena transmitida para todo o país, a linguagem foi como a pedra tornada escada, mas, além disso, uma escada que já começa no solo e desce vertiginosamente por um alçapão que, provavelmente, pode nos conduzir às profundezas mais malsãs. “Não é isto a farsa mais digna de riso, se não fora tanto para chorar?” ecoa Vieira. Mas também pode-se perguntar: – E daí, que importância tem isso para uma nação? Muita. Pois é descendo a este nível de linguagem, que, automaticamente, é incapaz ou inibidora da produção de pensamento, já que não possui as ferramentas necessárias para expressá-lo, é quando a sociedade se encontra vulneravelmente à mercê de um tirano ou de um demagogo ou frequentemente da conjunção dos dois. Quando a linguagem se rebaixa, a capacidade de reflexão se rebaixa junto com ela e o indivíduo baixa a cabeça, deixando de ser indivíduo com o pleno direito da escolha de seus caminhos, para juntar-se a uma manada guiada pelo som de um apito oficial.

O papel das redes sociais no quadro político atual reverbera o som deste apito ao qual grandes manadas seguem cegas, surdas e mudas rumo ao abatedouro. . As novas redes sociais com seu bombardeio massivo de informações superficiais, alimentadas por um incessante imediatismo, seriam um elemento danoso à arte – e à poesia como arte verbal –? Já que estas têm como uma de suas principais fontes o tempo, e que, portanto, só podem acontecer na duração e não no imediato, como da mesma forma a elaboração e a absorção do conhecimento. Penso na possibilidade do bombardeio incessante de imagens e signos das redes sociais criar uma reconfiguração de sinapses que passe a funcionar cada vez mais pelo estímulo da informação imediata e, consequentemente, sem atração pelo fenômeno da arte, da poesia, que necessitam do decorrer, da aparente continuidade, do fluir, do mergulho. A poesia como ato de imersão é uma antítese ao movimento permanentemente instantâneo das redes sociais. 

O que questiono aqui não é a utilidade das redes como ferramenta de divulgação, mas sua complexa sutileza de interferir organicamente em outra rede, a neuroquímica, de uma forma tal que o espaço/tempo, natural habitat da poesia, seja cada vez mais reduzido nos indivíduos. E este novo tipo de formatação mental que pode se configurar e se intensificar pelas gerações seguintes, avessas ao conhecimento, à arte, à poesia, traz a minha imaginação a face do Homo algoritmus, capaz de continuar reproduzindo neofascistas pelo mundo afora a serviço das finanças internacionais, como acontece hoje no Brasil. Golens sinistros criados e alimentados em escala intercontinental, com a providencial ajuda da mão ultradireita de Steve Bannon, o pai virtual adotivo do Homo algoritimus. Desde a instituição da escravidão, a sociedade brasileira é historicamente motivada pelo ódio ao pobre, algo que para ela é mais forte como expressão identitária do que a própria democracia, que ora está à beira de um colapso total. Para citar Pero Vaz Caminha, “nessa terra se plantando tudo dá”, inclusive os chamados homens de bem que se colocam ao lado de quem defende a tortura. Trumps, Dutertes, Bolsonaros. Maquiavel diz que o príncipe deve ser temido ou amado. No caso do príncipe das trevas brasileiro, o seu lema é temido e armado. A nós, pequenos Homo poeticus resta, ainda, manter aceso o sabor das palavras que se reúnem para lutar e festejar no espaço e no tempo duradouro de um poema.

Antônio Moura nasceu em Belém do Pará, em 1963. Poeta e tradutor, tem 10 livros publicados, sete no Brasil, quatro de poesia e três de tradução; e três no exterior, Inglaterra, México e Catalunha. Em 2008, "Rio Silêncio" foi premiado na Inglaterra no Prêmio John Dryden. Está também publicado em diversas revistas e antologias no Brasil e fora.

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