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Chá, história e um castelo de algodão

Chá, história e um castelo de algodão

Uma paragem num café que se transforma num jogo a várias mãos. Um passeio pela antiguidade que termina num castelo de algodão de outro mundo. Uma viagem pela hospitalidade turca.

Entre cigarros e um confortável türk çayi, o famoso chá turco, Cengiz e Ali trocam piadas perante a assistência. No meio da mesa, um tabuleiro, algo solene. Tavla, dizem-nos, um gamão com regras um pouco diferentes. É dia de jogo, como são todos, no pequeno café Maykil Çay Ocagi, em Kemer, centro turístico à beira-mar, a 40 quilómetros de Antália, o epicentro por excelência da Riviera Turca. A esplanada está composta, mas aqui, em vez dos típicos torneios de sueca lusos, os homens concentram-se nos tabuleiros de madeira. “Ali kaput. Me good”, graceja Cengiz, bigode aprumado e sorriso maroto, apropriando-se de vocábulos quase universais para vencer as barreiras linguísticas com a audiência estrangeira que por ali (en)calhou.

Está 3 a 1, Ali encolhe os ombros e gargalha, enquanto vê o adversário lançar os dados. Entretanto, já somos nós que temos chá nas mãos, de maçã, verde eléctrico. Entretanto, já estamos à mesa e fazemos parte do jogo, que Cengiz vai explicando, como pode. Tentamos aprender. E, em troca, lá vamos tendo respostas. Nasceu em Ancara, vive por aqui há 30 anos. Tem uma loja ali perto, está a fazer uma pausa no trabalho. Se já fomos ao mercado? Sim, fomos, dar o gosto ao regateio (recomenda-se paciência). À segunda há o dos frescos, às terças o que tem tudo, uma grande feira a piscar o olho ao turista, com roupas e malas com grandes marcas à vista. E muitos turkish delights, frutos secos, 1001 chás (há sempre que provar antes da compra), café turco (com borras, claro), especiarias, tapetes, artesanato — foi lá que Gül, olhos azuis cristalinos e mãos de ónix, parou de trabalhar a pedra para distribuir pela assistência pequenos nazar boncugu, os amuletos dos olhos azuis, que agora trazemos no bolso for good luck.

PÚBLICO - Foto Cengiz e Ali jogam Tavla no café Maykil Çay Ocagi Sérgio Azenha

Perdemos o jogo de vista e Cengiz fecha, de repente, o tabuleiro. Acabou, 4 a 1, amanhã há mais. Ali puxa de um cigarro, levanta-se e regressa pouco depois, com saquinhos de papel que agora vão de mão em mão. Lá dentro, simit, as deliciosas argolas de pão com sementes de sésamo, que, entre risos, distribui pelos recém-chegados. Termina-se o chá, Maykil, o dono do café, não diz o preço, e Cengiz convida-nos a visitar a sua loja. Como recusar? Pelo meio, paragem no sapateiro, Amed, que nos apresenta a sua arte. Faz sentido, percebemos depois. Chegados ao destino, encontramos uma sapataria, onde a esposa de Cengiz tem, por acaso, carnudas uvas de Antália. “Very good”, oferece o marido, e salta para trás do balcão para atender clientela que chegou. Lá nos despedimos do anfitrião um pouco a medo, de mãos vazias e o cliché do coração cheio. Deixou-nos mais um abraço e uma mensagem: good luck.

Vinte e quatro horas antes, Huzur Yirmibesoglu, arqueólogo feito guia turístico, já nos preparava para o que viríamos a sentir na pele. “A Turquia é muito diversa e tem muitas pessoas diferentes de imensos grupos étnicos”, descreve, “mas o ponto em comum é sempre a hospitalidade”. Quando tal não acontece, é uma “degeneração”, não é a “representação” real “da cultura, do país, das pessoas”. “Because you don’t do it for today, you do it for tomorrow.” Ou, em português corrente, cada um colhe o que semeia.

Estamos num território que, diz o turco, nascido em Istambul há 56 anos, a viver em Antália há 30, é a “base da civilização de hoje”: a península da Anatólia. E, como se já não desconfiássemos, desfia provas. Porque por aqui é possível visitar o que muitos dizem ser a cidade mais antiga do mundo: Çatalhöyük, com origens que remontam a 7500 anos a.C. ­— tem, portanto, quase dez mil anos de história, coroados Património Mundial pela UNESCO em 2012 (há 18 locais para ver só na Turquia). Porque por aqui está a verdadeira Filadélfia, hoje Alasehir, estabelecida em 189 a.C pelo rei Eumenes II de Pérgamo, que a baptizou Philadelphos em honra do seu irmão — significa “aquele que ama o seu irmão” — e que é referida na Bíblia. Porque por aqui nasceram e morreram imensas civilizações — e deixaram vestígios. E eis que chegámos a Denizli, mais precisamente a Hierápolis, e a história deste mundo entra-nos pelos olhos adentro; e, descalços, aterrámos em Pamukkale e julgámo-nos noutro mundo.

Entre este mundo e o outro

De um lado, ruínas de uma cidade que aqui foi fundada em 190 a.C pelo mesmo rei, Eumenes II. Do outro, uma curiosa formação rochosa com socalcos com piscinas termais que mais parece neve, gelo, um glaciar inteiro. Ambas património da UNESCO, acessíveis num só bilhete a 50 liras (cerca de oito euros).

PÚBLICO - Foto Hierápolis desempenhou um papel de destaque na antiguidade Sérgio Azenha

Sigamos Huzur, que já serpenteia pelo passado helénico, romano e bizantino. Homem esguio, de rabo-de-cavalo, coração do rock (Pink Floyd, AC/DC, Led Zeppelin) e um farto bigode por baixo do longo e característico nariz. São, percebemos depois, orgulhosos símbolos da sua etnia — a esse propósito, conta uma piada: “Todos os laz têm um bigode. Porque temos sempre de sublinhar as coisas importantes.”

Em Hierápolis, onde se pisam pedras com 1400 anos que denunciam as marcas da passagem das carruagens, jaz um dos maiores e mais bem preservados cemitérios da Europa. Até agora, foram descobertos 1300 túmulos, mas as escavações continuam — em 2011, os arqueólogos anunciaram ter encontrado o de São Filipe, apóstolo de Jesus (não foi o único a andar pela área) a poucos metros das ruínas da igreja dedicada ao seu martírio. Estamos numa “cidade sagrada”, como dizem que o nome indica, outrora conhecida como “cidade dos templos”. Se começou por ser um centro balnear e terapêutico, aproveitando a riqueza das águas termais que por ali passam, depressa se tornou também num lugar espiritual e religioso que, considera Huzur, terá desempenhado um papel de destaque na antiguidade. Prova disso foi a rapidez com que, a mando do imperador Nero, a cidade foi reconstruída em 60 d.C., depois de um violento terramoto. Aliás, por se situar na linha de uma falha tectónica, Hierápolis foi, ao longo de toda a sua história, vítima de sismos, entre os quais um no século XIV, que a votou ao abandono. Por aqui, há ainda para ver, entre outras relíquias, um teatro tipicamente romano, com 50 fileiras de degraus e capacidade para entre 12 a 15 mil pessoas, as monumentais fontes Nymphaeum, o complexo de banhos, a latrina, a Ágora, uma das mais largas alguma vez descobertas, com pórticos em mármore e a basílica ao fundo, e o Ploutonion, templo construído em honra de Plutão, por cima de uma gruta de onde saía dióxido de carbono, devido à actividade geológica subterrânea, que os locais consideravam ser um sinal divino do submundo. Claro que, tratando-se de uma cidade que brotou das águas termais, também é possível nadar por cima de ruínas, entre estradas, colunas e capitéis que pertenciam ao Templo de Apolo ali ao lado. E a 36 ºC. Por mais 50 liras, pode-se experimentar a pitoresca e cristalina Antique Pool, também conhecida como a piscina de Cleópatra, pois, diz o mito romântico, chegou acolher a famosa rainha.

PÚBLICO - Foto E que tal nadar a 36ºC? Sérgio Azenha

As águas quentes, ricas em cálcio, magnésio e bicarbonato, são uma das atracções da zona, por onde pululam hotéis com spa e banhos termais — atenção que em época alta chega a haver lotação esgotada. E são elas as grandes responsáveis por esculpirem aquilo que é Pamukkale, local que à chegada nos faz esfregar os olhos para nos sabermos neste mundo.

Há milhares de anos que a água quente que corre por entre estas rochas deixa sedimentos de carbonato de cálcio, que, com o tempo, cristaliza e se transforma em travertino. Existem outras paisagens naturais semelhantes no mundo, mas nenhuma inspirou a criação de uma cidade como Hierápolis, com ruínas prontas a ser tacteadas nos dias de hoje. Chamam-lhe castelo de algodão, epíteto que lhe assenta, achámos nós, ainda antes de ouvirmos a explicação pela voz do guia. Pamuk significa algodão, o típico cultivo da zona, a alvura da paisagem; kale é castelo, são as ruínas que nos observam, aquelas de onde viemos.

PÚBLICO - Foto Em Hierápolis, é possivel ver um teatro romano com capacidade para 12 a 15 mil pessoas Sérgio Azenha

Este longo manto alvo estende-se hoje por centenas de metros de comprimento e, diz quem sabe — Huzur, mais uma vez —, cresce em média três milímetros por ano. A água azul leitosa corre de terraço em terraço e pode ser um exercício divertido descobrir quais são as piscinas quentes e as frias. Sempre descalços e com cuidado para não se escorregar. Recomenda-se também atenção para não participar, inadvertidamente, nalguma sessão de fotos mais atrevida ou numa selfie mais influente — é um local popular, que atrai mais de dois milhões de visitantes por ano, por isso os madrugadores são recompensados. Nalguns locais, o branco é tão branco que quase dá frio... mas estão quase 30 graus. É neve? É o espaço? É um sonho? Ou é magia? É tudo. É a Turquia a dar-nos as boas-vindas.

A Fugas viajou a convite do Club Med e da Turkish Airlines

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