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Na terra dos filhos do vento também se semeiam fotografias e livros

Na terra dos filhos do vento também se semeiam fotografias e livros

É afamada pelos cavalos velozes, pelas terras férteis e pela festa rija no São Martinho. Mas a Golegã tem muito mais para descobrir ao longo do ano.

Das mãos do senhor Guerreiro saem notas de trompete. Depois de uns fados sussurrados ao balcão, dá mais um golo na água-pé, clareia a garganta e lança-se num conto popular. “Dentro de uma corrida de toiros, depois das cortesias feitas, os artistas tudo recolhe. Passado um momento, há um bandarilheiro que sai com um ferro na mão para dar ao cavaleiro.” Para “todos os toques que pertencem à corrida”, saem-lhe do volteio dos dedos sons semelhantes aos da corneta, do trompete e até um paso doble para gáudio dos poucos que resistem na taberna à hora do jantar.

Com os anos vincados em torno do sorriso fácil, Guerreiro ainda se lembra dos tempos em que a feira na Golegã se repartia em dois momentos. Na primeira semana, acorriam ao arneiro do Largo do Marquês de Pombal todos os criadores de animais da região. O cavalo já ocupava lugar de destaque, com as principais coudelarias nacionais a virem à vila apresentar os mais belos exemplares lusitanos. Mas nas franjas tudo se vendia: porcos, galinhas, ovelhas, bovinos. Na semana seguinte, enchia-se o terreiro com bancas de samarras, mantas, botas, boinas e tudo o que mais fosse necessário para enfrentar o Inverno que se avizinhava. “Chamávamos-lhe a remonta”, contava, momentos antes, Fernando Ribeiro à entrada da loja de capotes, jaquetas e blusões. “Fazíamos aquilo em barracas nossas”, recorda. “Depois tínhamos de desmontar e voltar a montar tudo noutro sítio, onde era a feira mensal. Estávamos cá todo o mês.”

Actualmente, concentram-se em dez dias três feiras num evento só: a Feira de São Martinho, instituída em 1571, a Feira Nacional do Cavalo, criada em 1972, e a Feira Internacional do Cavalo Lusitano, lançada em 1999. O resultado é uma festa rija, onde cavalos, peões, charretes e bicicletas convivem em pé de igualdade pelas ruas num trote omnipresente. E em que cada rés-do-chão, garagem, armazém ou terreno abandonado se transforma em loja, taberna, bar, restaurante, discoteca. “Nem consigo fazer uma estimativa. Estamos a falar de mais de 200%”, compara Luís Godinho, apontando os lugares que costumam estar vazios ao longo de todo o ano. O espaço onde Fernando Ribeiro expõe agora os casacos tradicionais que confecciona na Venda do Pinheiro é um deles. Há 51 anos que não falha uma feira, mas assim que esta termina segue para outras paragens. O mesmo acontece com quase tudo o resto. “Em qualquer lado próximo da feira se aproveita para fazer negócio. Nestes dias, fazem o dobro ou o triplo do dinheiro que fariam se [o espaço] estivesse alugado todo o ano.”

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Luís Godinho, 30 anos, filho da terra onde escolheu ficar, guia-nos pelas artérias principais do centro histórico, numa das noites mais calmas do certame que terminou no domingo passado. “A Golegã está na moda”, defende, para dizer que há cerca de 15 anos se tornou cool vir à feira ribatejana. As estimativas apontam para meio milhão de visitantes, com enchentes aos fins-de-semana. E isso reflecte-se nos preços praticados durante os dias da feira, nas casas entretanto adquiridas por cavaleiros e empresários para terem alojamento durante o período do evento e no número de negócios que acorre à vila. “Este é o único bar [temporário] que é de uma pessoa aqui da Golegã, dono do restaurante Rédea Curta”, aponta Luís, técnico de gestão na Santa Casa da Misericórdia da Golegã.

Um pouco por todo o lado, anuncia-se a venda de água-pé, apenas autorizada durante os dias da feira. Há até quem ainda mantenha produções caseiras e abra a adega aos amigos enquanto a prosa descer pelas cubas de inox. Outrora feita com as lavagens dos lagares onde se pisavam as uvas, a água-pé é hoje produzida com doses separadas de água e vinho novo, que devem entrar uma única vez na cuba para que as borras criem a “mãe” no fundo e a “flor” (ou véu) por cima, vão-nos contando entre um golo e outro. Só assim fica o líquido com este sabor leve, límpido, e gás a fervilhar no copo, sem outros aditivos.

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No bar FM, no entanto, é a cerveja que tem mais saída e o abafado a maior fama. “É feito e engarrafado pela adega cooperativa em exclusividade para o bar e estamos agora a tentar tratar dos licenciamentos para registar a marca”, conta José Madeira, irmão do proprietário. “Só estou aqui de férias, a ajudá-lo.” Fundado pelos avós de José em 1953, o FM é talvez o bar mais antigo da Golegã e um dos poucos que mantém a porta aberta durante o ano inteiro. Traje típico, castiço, não lhe faltam o Zé Povinho, os touros e os cavalos na decoração. A localização privilegiada – num dos cruzamentos principais, de frente para o arneiro – torna-o paragem obrigatória. É um formigueiro incessante de entra-e-sai-e-fica-à-porta a ver a feira passar.

É ali que decorrem as provas principais, ao centro do largo, com as casetas das coudelarias em redor e os cavaleiros, vestidos a preceito, a passear ao longo da manga. Desfilam os marialvas, as amazonas, as charretes e as carroças. Param as famílias, os aficionados, muitos estrangeiros, os miúdos que só vêm para a feira dos bares e os cavalos que estacionam por momentos porque quem vem na sela já não tem mãos a medir para tanto copo. Todos partilham o mesmo novelo de ruas. E ainda resistem dois bares onde os cavalos também entram. A festa, dizíamos, é rija. E a noite tem fama de acabar já o sol rasga o horizonte ao som dos cascos no alcatrão. Este ano, no entanto, a câmara municipal proibiu, pela primeira vez, a circulação de cavalos no recinto entre as 2h e as 7h. O objectivo, afirma o autarca José Veiga Maltez, é “preservar essa verdade da feira sem deixá-la ser desvirtuada por uma invasão de modismos passageiros ou de atitudes que, às vezes, podem ser um pouco excessivas”. Houve manifestações contra e a favor e a discussão era tema de muitas conversas. A maioria dos goleganenses que fomos ouvindo parecia ser a favor das regras, acusando os cavaleiros forasteiros pela maioria dos desacatos de outros anos.

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A feira é querida pela população. Pela tradição, pela agitação, pelos negócios. Mas a maioria “não tem muita ligação ao cavalo”. Só quem tinha “o pai campino ou cavaleiro é que depois seguia a pisada”, conta Luís. “Eu, por exemplo, nunca andei a cavalo”, confessa. “Gosto dos animais, mas não ligo. E não sou caso único, acho eu.” Actualmente, todas as escolas do ensino básico do concelho têm aulas de equitação entre o leque de actividades de enriquecimento curricular oferecidas para começar “a incutir isto a esta geração”. Mas no tempo de Luís não havia. E ele sempre preferiu os desportos colectivos, confessa. Ou ir dar mergulhos ao Tejo. “Roubávamos as bicicletas às mães e aos pais e fazíamos essas trafulhices, íamos muitas vezes tomar banho ao rio, na altura em que se podia mergulhar à vontade. Agora é a poluição que vemos constantemente na zona de Abrantes.”

Os filhos do vento

A relação da Golegã à criação de cavalos é, contudo, muito antiga. Diziam os romanos que os potros nascidos na região eram “filhos do vento”, porque “andavam muito rápido e eram muito fortes”, recorda o guia municipal António Condeço. Durante as últimas invasões francesas, conta, as tropas de Napoleão passaram pela Golegã com o intuito de tomar os cavalos da região para fortalecer o efectivo antes do ataque a Lisboa. Mas “os ingleses tinham mandado recolhê-los” e, como represália, parte da vila foi destruída. José Veiga Maltez, autarca da Golegã, proprietário da Quinta do Salvador e presidente da Associação Nacional do Turismo Equestre, acrescenta outras características à raça lusitana: “É um cavalo dócil, nobre e generoso”, com “boa cabeça e facilidade de aprendizagem”.

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Os aluviões periódicos do rio Tejo nesta zona de planície tornam os solos extremamente férteis, atraindo, ao longo dos séculos, grandes proprietários, que aqui estabeleceram quintas agrícolas com criação de equídeos e de gado bovino. Na altura das cheias, aponta Luís Miguel Carvalhal, o prado onde agora pastam, plácidos, alguns cavalos costuma ficar “todo alagado”. Mais tarde, mostra-nos fotografias: um espelho de água longo, onde apenas as copas nuas das árvores emergem para denunciar o trajecto do rio Almonda, um afluente do Tejo. “Para além da reposição de partículas, é o melhor insecticida de solo que temos, porque todos os produtos que se possam utilizar acabam por ser lavados, as pragas e doenças reduzem bastante e, depois, como ribatejano, isto faz parte do nosso ADN. Ano sem cheia não é muito bom.”

Estamos na Quinta da Brôa, cuja Coudelaria Veiga é uma das mais importantes na criação do Puro-Sangue Lusitano. Segundo o engenheiro agrónomo da quinta, “cerca de 70% dos cavalos desta raça existentes no mundo inteiro vêm de cavalos aqui da casa”. “Se formos ver a genealogia vamos encontrar, mais atrás ou mais à frente, um cavalo MV.” Propriedade da família Veiga desde 1831, foi Manuel Tavares Veiga quem iniciou na quinta a purificação da raça, no início do século XX, realizando os estudos morfológicos e de funcionalidade que ainda hoje são seguidos, em parte, pela coudelaria. “Foi ele quem, no fundo, profissionalizou mais a questão do cavalo, porque antes era visto como um meio de locomoção ou de força de tracção e passou a ser um hobby, utilizado em actividades completamente diferentes daquelas que tinha até então.”

Aberta a visitas guiadas, é possível vir conhecer as histórias da quinta e da família, ficar alojado numa das antigas casas dos trabalhadores, espreitar a casa dos carros (onde estão expostas as antigas atrelagens utilizadas pela família), o novo picadeiro, o velho lagar de azeite, as cavalariças e os prados onde correm livres quase todos os cavalos da quinta. “No total, são uns 70 cavalos, tudo a campo. Só os que estão a ser ensinados é que recolhem à cavalariça.” A “muda dos potros”, como lhe chamavam, decorria precisamente por alturas do São Martinho. Aos três anos de idade, os cavalos deixavam os pastos no início do Outono para virem ser apresentados a possíveis compradores e iniciarem, depois, o processo de ensino. “Hoje as coisas mudaram e já não há tanta apetência pelo potrinho, gostam mais de um cavalo já feito”, comparava, momentos antes, José Veiga Maltez. Mas a ligação da comercialização dos equídeos à feira de São Martinho manteve-se até aos dias de hoje.

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Há muito que a Golegã se apresenta como a “capital do cavalo” e esse pergaminho espelha-se um pouco por toda a vila. Não faltam alusões ao tema em muitos dos restaurantes, lojas e unidades de alojamento. Junto ao arneiro da feira, fica o complexo hípico da Lusitanus, com picadeiros cobertos, boxes e um programa de estágios de equitação, onde se situa a sede da Associação Nacional do Turismo Equestre. E à saída do miolo urbano está localizado o Centro de Alto Rendimento Hippos. Ao longo do ano, decorrem na Golegã várias competições desportivas ligadas às diferentes disciplinas de equitação e há mais dois eventos destinados ao grande público: a ExpoÉgua, em Maio, e o Olé Golegã, em Setembro.

Na 3 Pereira, loja de peças de artesanato pintadas à mão, localizada bem no centro da vila, pinta-se “qualquer motivo, qualquer tamanho, qualquer cor”. Mas, como Cesaltina “costuma dizer”: “Tudo o que tiver um cavalo, vende-se”. Mantém uma prateleira com louças às florzinhas, mas são os cavalos que mais saem. Só o focinho desenhado num azulejo, de corpo inteiro ou de perfil, com um cavaleiro de chapéu ou o São Martinho sobre a cela, mais uma colecção com os ferros de todas as coudelarias. “Temos de trabalhar sempre para o cavalo porque quem entra aqui vem à procura disso.”

Da fotografia à máquina de escrever

Concelho pequeno, com o passo ensaiado é fácil conjugar o mundo do cavalo e das coudelarias com longos passeios junto aos rios e campos agrícolas e uma visita a alguns museus da Golegã. Passe pela Igreja Matriz, edificada no século XVI, com um pórtico ao estilo manuelino desenhado por Diogo Boitaca, o arquitecto responsável pela construção do Mosteiro dos Jerónimos. E continue caminho até à Casa-Estúdio Carlos Relvas, reaberta no início de Outubro, após mais de um ano de obras de reabilitação.

Abastado proprietário agrícola e fidalgo da Casa Real, nascido na Golegã em 1838, Carlos Relvas cedo “vai apaixonar-se por uma nova arte, uma nova ciência que estava a aparecer: a fotografia”. Sobre os escombros de um primeiro estúdio, mais modesto, vai erguer o edifício que agora temos à nossa frente, “com todas as tecnologias e meios mais avançados da época para a arte da fotografia”. Nenhum pormenor foi deixado ao acaso e a “invenção” foi premiada com a Medalha de Ouro, atribuída pela Sociedade Francesa de Fotografia na Grande Exposição Internacional de 1889, em Paris (a mesma em que foi inaugurada a Torre Eiffel).

“Houve um lorde inglês que visitou a casa na altura e disse que era o estúdio de fotografia mais maravilhoso que já tinha visto, mas que ficava perdido algures no meio de Portugal, numa terra que ninguém sabia onde era”, conta António Condeço. Ainda estamos cá fora, atentos à decoração exterior. Sobre a porta principal, os bustos de Niépce, inventor da fotografia, e de Daguerre, autor da primeira patente para um processo fotográfico, o daguerreótipo. Acolá, um anjo sobre um globo rodeia-se de todos os materiais fotográficos da época: a “caixa” fotográfica, os pratos, os líquidos, as lâminas de vidro. “Parece que está a dizer: Bem-vindos ao templo da fotografia.”

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O interior divide-se por dois pisos: no rés-do-chão ficavam os laboratórios e a sala de visitas, e no primeiro andar o escritório e o estúdio propriamente dito, fechado por paredes de ferro e vidro e dezenas de cortinas. “Todos os panos são cabulados, permitindo ao fotógrafo colocar a luz do dia em qualquer parte da sala”, indica o guia. Muitas peças estão actualmente numa exposição dedicada a Carlos Relvas no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, em Lisboa, mas é possível ver algumas câmaras, aparelhos de esteroscopia, os móveis utilizados para a composição dos retratos e o “antepassado do Photoshop”, repleto dos pincéis com que “tapavam borbulhas e cicatrizes, escureciam cabelos e engrossavam bigodes”.

Ao longo das salas, estão ainda expostas diversos prémios e muitas imagens feitas pelo “photographe amateur” Carlos Relvas, considerado um dos pioneiros da fotografia nacional. Ao longo dos anos, retratou tanto reis como mendigos, fez fotografia de paisagem, natureza morta e cenas da vida quotidiana do Portugal de Oitocentos, num espólio que conta com mais de 12 mil imagens. Além da fotografia, “era também muito conhecido pelas touradas”, refere António Condeço já no final da visita. No outro lado da estrada, onde hoje se ergue o Hotel Lusitano, ficava a antiga praça de touros particular de Carlos Relvas. Segundo a tradição oral, “este túnel passaria por baixo da estrada e daria directamente para a arena”.

No Equuspolis, cuja fachada segue o perfil de dois cavalos, procura-se contar a relação histórica da Golegã ao lusitano e aos touros e, no andar superior, expõe-se todo o espólio de esculturas, desenhos e pinturas doado por Martins Correia. Mas o museu, de luzes apagadas quando chegamos e sem a instalação em 3D numa das salas porque na recepção não sabiam pô-la a funcionar, parece já ter conhecido melhores dias. Já no edifício da biblioteca, se gostar de máquinas de escrever, o espólio do museu municipal a elas dedicado vale uma visita. O acervo pertence ao coleccionador Artur Azinhais, do concelho vizinho da Barquinha, e integra cerca de 380 máquinas de escrever antigas, todas mecânicas.

Durante a visita guiada, Lurdes Guerreiro vai apontando os modelos de destaque. Como a Valentine, da Olivetti, a primeira máquina de plástico lançada no mercado, em 1969, vermelha por ter saído no Dia dos Namorados. Ou as Corona e as Groma, utilizadas pelos soldados alemães durante a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, respectivamente. “Não temos nenhum exemplar com essa tecla, mas as Groma ficaram conhecidas por terem na tecla «três» o símbolo das secretas alemãs. Muitas foram destruídas depois da guerra e as que não foram tiveram de levar a tecla alterada.”

Ao longo das vitrines, desfilam modelos coloridos para as crianças, máquinas de índice, dos anos 1890, de ponteiro, como as Mignon, de 1905, exemplares da única marca portuguessa, Messa, encerrada em 1985. “A mais antiga que temos no museu é esta Remington, de 1895”, aponta Lurdes. Além das máquinas, a exposição integra posters antigos, postais e muitos acessórios, como uma colecção de fitas e correctores. No final, se tiver saudades ou quiser saber como era, existem exemplares disponíveis para poder “bater à máquina”. “Tive um senhor que se sentou ali, era bancário, e disse: 'Não vou escrever, vou só fazer o barulho das teclas para matar saudades'.”

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