www.jn.ptjn.pt - 13 nov. 16:31

Drake e os portugueses

Drake e os portugueses

Francis Drake, tanto por força da própria ação como da mitologia que ele fez questão de construir em seu redor, é um nome que facilmente ocorre quando pensamos em piratas e corsários do século XVI. Neste artigo, o historiador Amândio Jorge Morais Barros aborda o modo como ele se cruzou, ao longo dos anos, com os navegadores portugueses e como era temido no litoral do nosso país. Desmontando grande parte da lenda, mas enriquecendo a narrativa com factos pouco conhecidos.

O "pirata herege"

Numa carta escrita a Simão Ruiz, banqueiro castelhano de Medina del Campo, sobre negócios que ambos tinham, um mercador português chamado Domingos Lopes Vitória soltava o seguinte desabafo: "Quererá Deus destruir este herege, com que os cristãos se atrevam a navegar".

O herege era Francis Drake. Personagem central da história da pirataria que alimentou o imaginário de inúmeras gerações de gentes fascinadas pelo mar. E o desabafo do mercador português justificava-se pela ameaça que o pirata inglês colocava à navegação portuguesa, bloqueando-lhe os portos e intercetando-a nas rotas mais frequentadas e que prometiam melhores presas: os navios que regressavam da Índia e os que vinham do Brasil. Além das embarcações portuguesas, procurava a todo o custo capturar a frota do tesouro das Índias de Castela sabendo que esses navios faziam escala nos Açores.

Corria o ano de 1589. O momento não era propriamente estável para a marinha ibérica, que se encontrava bastante desgastada depois do fracasso daquela que ficou conhecida pela designação Armada Invencível, ocorrido no ano anterior no Canal da Mancha.

A história de Drake com os portugueses era bem mais antiga. E é essa história que tentarei aqui resumir. Compilando alguns factos conhecidos e completando-os com alguns dados menos divulgados desse relacionamento e da forma como os portos nacionais viveram esses acontecimentos.

A lenda de Drake

Drake fez-se lenda, como se sabe. Foi várias vezes corsário, e muitas mais vezes pirata, atacando sem carta de marca e chegando a capturar navios britânicos fretados por mercadores de outras nações. Tornou-se favorito da Rainha Isabel I, embora ela tivesse vários. Com outros capitães ingleses, igualmente corsários e igualmente piratas, teve papel decisivo no estabelecimento dos fundamentos do império britânico, desafiando o poderio naval de portugueses e castelhanos, na Europa e no Ultramar. Os navios que comandou - especialmente o "Golden Hind" e o "Revenge", de que ainda falarei - tornaram-se um pesadelo para os mercantes ibéricos, assaltando-os em variados pontos do Atlântico, oceano da sua preferência, apesar da viagem de circum-navegação que constituiu uma das coroas de glória da sua carreira de navegante. Alegadamente, Filipe II colocou a sua cabeça a prémio oferecendo a fabulosa recompensa de 20 mil ducados a quem o capturasse. Ninguém o conseguiu fazer, mas o seu percurso não esteve isento de percalços e deceções, como veremos.

A carreira de Drake foi tudo menos um acaso; o pirata tinha consciência dos feitos que realizava, até porque conhecia os feitos dos portugueses e castelhanos que o precederam na exploração dos mares. E quis ser como eles, ou maior do que eles, participando, direta e ativamente, na construção da sua própria reputação, chegando a comprar os favores de cronistas e escritores que narraram os feitos na royal navy da dinastia Tudor.

Por tudo isto, e tal como acima escrevi, Francis Drake tornou-se uma lenda. E sabemos como é difícil estudar uma lenda. Os historiadores não gostam delas; sobretudo não gostam de discursos retocados. E aquele que narra a vida de Drake foi muito retocado. Por isso, e a começar nos ingleses, tentam há muito desmistificar as partes mais fantasiosas desta vida de aventuras e sucessos imaculada, sem desventuras e fracassos, colocando a figura deste homem do mar no seu lugar devido. Avaliando friamente o seu papel como comandante de navio e empresário marítimo que tinha sócios a quem devia prestar contas; pesando a sua influência e interpretando os seus atos no mar e em terra; percebendo a sua valia bem como a sua ambição; enfim, estudando-o como um homem com méritos e defeitos, como afinal são todos os homens de todos os tempos.

O pirata de Devon

Drake nasceu em Crowndale, Tavistock, Devon, zona do Sudoeste de Inglaterra conhecida pela produção de estanho. Veio a este mundo no seio de uma família de posses medianas, entre fevereiro e março de 1540, e deixaria este mesmo mundo em 27 de janeiro de 1596. em Portobelo, Panamá, vitimado por disenteria, pouco depois de um assalto fracassado a San Juan de Porto Rico.

Da sua juventude fica-nos uma nota importante para a nossa história. Foi em Plymouth, que era o mais importante porto de Devon, que Drake fez a sua aprendizagem marítima. E não podia ter tido melhor mestre: o não menos célebre John Hawkins, de quem era primo em segundo grau, e que foi o primeiro aventureiro inglês a interferir no tráfico de escravos no Atlântico, interferindo várias vezes no monopólio português. Plymouth tornou-se a "sua" cidade - governou-a em 1581 e 1593 - e, diz a lenda, Drake estava a jogar bólingue (arcaico) no parque do Hoe quando foi dado o alarme da chegada da armada espanhola, fazendo questão de terminar o jogo antes de embarcar. Lendas...

Drake e a caravela portuguesa

A relação de Drake com os portugueses era inevitável. De resto, quem fizesse vida no mar no século XVI tinha de lidar com as frotas, os navios e os navegantes de Portugal, que se encontravam em todos os mares do mundo. Também com os castelhanos, porque no início da Época Moderna a Península Ibérica era o centro marítimo mais ativo do planeta, reunindo técnicos especializados, construindo navios em modernos estaleiros e gerindo rotas intercontinentais. A Lisboa e a Sevilha, e em geral aos portos da Península, chegavam navios carregados com as mais cobiçadas riquezas do tempo: marfins, diamantes, especiarias ouro e prata das Índias. E os rivais - franceses, ingleses e neerlandeses - tentavam tudo, desde a via diplomática ao saque, puro e simples, para se apoderarem de uma parte delas e desafiar a hegemonia de Portugal e Castela.

Drake seguiu esta última via. E na sequência de uma das mais lucrativas expedições de Hawkins a África e às Américas a negociar escravos, conseguiu obter o seu primeiro comando de navio.

Poderá ter sido uma embarcação portuguesa, possivelmente uma caravela, apresada em Cabo Verde; tal como os Açores, este arquipélago era também ponto de encontro da navegação internacional deste período, e nele Drake escreverá capítulos importantes da história da sua vida.

O episódio conta-se com rapidez. No verão de 1564, segundo as fontes portuguesas, John Hawkins preparava-se para largar de Plymouth com uma armada composta por oito a dez navios, numa operação que tem sido interpretada como um grande esforço destinado a abrir os portos das Índias de Castela aos traficantes de escravos ingleses. Três embarcações eram de grande porte e duas delas, a nau "Jesus de Lübeck", navio almirante, de 400 toneladas, e a "Minion", de 300, pertenciam à rainha, que assumia assim a sua parte na sociedade. Parece que havia portugueses a bordo destas embarcações, colaborando nos preparativos. Sabe-se que fugiram pouco antes da partida da armada sob o pretexto de que eram maltratados pelo comandante. Mais provavelmente seriam espiões, embora os processos de colaboração entre rivais, como era o caso, ocorressem com muita frequência. Um desses espiões enviou relatório detalhado ao embaixador português em Londres, que sem demora o remeteu para Lisboa. Que nos portos e nas cidades, os mercadores, os mareantes e os agentes diplomáticos eram, sem excepções, espiões.

Drake chegou junto dos navios pouco antes da fuga dos portugueses. Mas não era ainda notado, nem temido. Por isso não é individualizado, limitando-se os espiões a falar apenas dos "capitães" ingleses que iriam na companhia de Hawkins. Não tardaria a acontecer o contrário; a falar-se só dele e das suas muitas proezas, mesmo quando não eram da sua autoria.

Com bastante atraso, a armada finalmente partiu à ventura. Depois de algumas atribulações na escala das Canárias - onde tanto conseguiram trocar algumas mercadorias por mantimentos, como provocar zaragatas e, inclusive, bombardear uma igreja - os ingleses seguiram para Cabo Verde. A partir daqui os relatos não são propriamente coerentes dependendo, segundo creio, da época em que foram escritos ou retocados. Segundo uns (escritos antes de 1580 quando não era conveniente desagradar a Portugal e violar a 'velha aliança'), na paragem do Cabo Branco depararam-se com três caravelas portuguesas sem quaisquer marinheiros a bordo, encontrando-se as tripulações refugiadas na fortaleza por terem sido atacadas por franceses. Outros testemunhos (talvez compostos depois de 1580, quando Portugal e Castela estavam unidos sob a mesma Coroa) dizem que Hawkins capturou portugueses e franceses em Cabo Verde. Seja como for, o comandante apropriou-se da melhor caravela, reforçando com ela a sua armada, como então era usual fazer-se.

Muitos anos depois, o marinheiro John Hortop, que participou nesta expedição, afirmou que, nesta ocasião, Drake converteu-se em comandante da caravela. Outros afirmam que Hawkins já entregara ao primo em Plymouth o comando de um dos navios mais pequenos, o "Judith"; e outros ainda dizem que Judith foi o nome com que os ingleses rebatizaram a caravela portuguesa. Dificilmente alguma vez se encontrarão provas sobre isto; mas o facto não é transcendental. A glória desta operação, e de outras idênticas que se lhe seguiram, coube a John Hawkins, e o papel de Drake foi secundário.

Mas nada que não se pudesse resolver; e assim, no processo de construção da sua reputação, a que já fiz referência, Drake escreveu em 1593 uma carta aberta à rainha, na qual considerava lamentável que o relato publicado por Hortop não reconhecesse o valor do seu contributo, nem nesta, nem nas restantes expedições em que participara. A carta que escreveu e as influências que moveu deram bons resultados. Na edição que mais tarde foi dada à estampa, pela pena do célebre John Hakluyt, Drake já nos surge como figura central nestas transações de aquisição de escravos na costa da Guiné e posterior venda em Santo Domingo, com a conivência das autoridades castelhanas. Curiosamente, e apesar do novo tom dado à narrativa, continuou a escrever-se que o primeiro navio por ele comandado foi a caravela portuguesa então apresada. Drake tinha cerca de 24 anos de idade.

A volta ao mundo e a "passagem de Drake"

As operações de resgate de escravos terminaram, no entanto, sem glória para os britânicos, em 1568. No porto de San Juan de Ulúa, Veracruz, Sul do México, uma flotilha castelhana emboscou a armada inglesa, combatendo-a duramente. Durante a refrega, o pirata inglês viu pela primeira vez serem utilizados, pelos castelhanos, os brulotes (navios incendiados que se largavam no meio da armada adversária), recurso de que ele próprio se valeria mais tarde contra a 'armada invencível'. A vitória sorriria à armada castelhana, que conseguiu apresar quatro navios, entre os quais o "Jesus de Lübeck", muito maltratado, e aprisionar (e matar) cerca de 500 atacantes. Drake e Hawkins (que se recolheu a bordo do "Minion") conseguiram escapar. A receita de quase quatro anos de assaltos e contrabando de escravos foi perdida. Mas os homens foram recebidos como heróis em Inglaterra. Diz-se que foi neste episódio que nasceu o ódio de Drake a Castela e ao seu rei Filipe II. Mas recorde o leitor que na maior parte destas narrativas a lenda domina. O que parece ser mais certo é que Drake se portou mal, desamparando os companheiros e fugindo sem eles. "O 'Judith' - escreveria mais tarde John Hawkins - abandonou-nos no meio de tanta desgraça".

O próximo episódio relevante da relação de Drake com Portugal tardaria nove anos. Nove anos durante os quais o seu prestígio como comandante de navio foi reforçado graças às presas que trazia do Atlântico e aos lucros que proporcionava aos investidores ingleses que financiavam as suas viagens. Nove anos em que aumentaram as rivalidades na Europa, em especial entre a monarquia castelhana e a Coroa inglesa, traduzidas em confrontos navais, pirataria, assaltos a portos e fortalezas, e tentativas de criação de colónias no ultramar que até então era de posse exclusiva de Castela e de Portugal.

Perceba o leitor que durante muitos anos recebemos a ideia de que os problemas de Portugal com a Inglaterra só começaram após a União Dinástica, em 1580. Diziam-nos que todos os inimigos de 'Espanha' passaram a ser nossos inimigos, e que todas as desgraças que ocorreram no mar eram causadas por esta união. Não é verdade! Quem estuda a documentação dos portos sabe que os assaltos ingleses (mais os franceses e, em seguida, os neerlandeses) foram constantes ao longo do século XVI (acabámos de ver Hawkings a apresar navios portugueses nos anos 1560) e hoje em dia tenta-se, mesmo, perceber, se sem a união das duas coroas Portugal conseguiria resistir a estas agressões. Adiante!

Nove anos depois de ter fugido de Portobelo, Drake cumpria uma missão que tinha, desta vez, apoio total da rainha Isabel I, firmado em acordo secreto que mais tarde veio a público: repetir a viagem de Fernão de Magalhães circum-navegando o mundo e atacando a navegação castelhana no Pacífico. Drake recebeu dinheiro de diversos investidores que financiaram os custos da expedição e zarpou de Plymouth em 13 de dezembro de 1577 com cinco navios, capitaneando o "Pelican", que reaptizou "Golden Hind" (Corça Dourada) em plena viagem (20 de Agosto de 1578).

A primeira escala da viagem foi feita em Cabo Verde. Quis o acaso que Drake encontrasse aí fundeado o navio de um português: Nuno da Silva, morador em Gaia e armador do Porto. E é justo que se recorde este nome, pois Silva foi decisivo no sucesso da viagem do navegador inglês.

Nuno da Silva começou a sua carreira náutica como piloto de um navio ao serviço de um armador portuense, depois mestre e piloto de outro e, pouco a pouco, transformou-se no principal proprietário de uma nau, a "Santa Maria", com a qual estava em Cabo Verde, em trânsito para o Brasil, carreira que fazia regularmente. Apesar das suspeitas que as autoridades castelhanas mais tarde revelariam quando o interrogaram, não é possível afirmar que o mareante português tivesse qualquer acordo com Drake, prometendo guiá-lo pelo Estreito de Magalhães.

De resto, a viagem não era usual, e entre Magalhães e Drake apenas se conhece a travessia de García Jofre de Loaísa que, no entanto, foi muito espaçada (1525-1536) e apenas cumprida na totalidade por Andrés de Urdaneta, que regressou à Europa num navio português, pela Rota do Cabo. Fosse como fosse, Nuno da Silva era piloto conhecido, e tido como competente, e a sua actuação durante a viagem de Drake assim o parece comprovar. O embaixador/espião castelhano em Londres, Bernardino de Mendoza, escreveu a Filipe II dizendo-lhe: "O Draques afirma que se não fosse por um dos pilotos portugueses ao qual tomou um navio, que roubou e meteu ao fundo mais tarde, na costa do Brasil, nunca teria conseguido fazer a viagem". Assim acontecera. O navio foi integrado na armada, recebendo a designação inglesa "Mary", e quando já estava descomposto por causa de sucessivas tempestades foi a pique na costa sul do Brasil.

Drake acabaria por libertar Nuno da Silva em Abril de 1579, na baía de Guatalco, e o português alcançaria a cidade do México 34 dias depois, começando desde logo a ser interrogado pela Inquisição espanhola. Estará muitos anos sem regressar ao Reino. Poderá ter sido aliciado pelos portugueses que apoiavam o Prior do Crato para integrar a sua causa, o que me parece difícil de provar. Os castelhanos também aconselharam Filipe II a utilizar os seus serviços, considerando-o um excelente piloto e mestre de navio de quem se poderia retirar muito proveito. Voltei a encontrá-lo de regresso a Portugal, a Gaia, em 1595, onde constituiu avultado dote para o casamento da filha, Francisca da Silva, com um mestre da cidade do Porto.

Quanto a Drake, seguiu caminho, como se sabe. Atacou navios e possessões castelhanas e capturou uma presa fabulosa: o galeão "Nuestra Señora de la Concepción", o célebre "Cacafuego", com parte do tesouro das Índias a bordo. Quando regressou a Inglaterra, em 1580, Drake era o corsário mais rico do mundo e era o primeiro capitão a dar a volta ao mundo numa única viagem. Dos cinco navios que levara restava um. O "Golden Hind".

Os cometas, Drake e as desventuras de Portugal

"Muito oufana com as riquezas que Drake trouxera do Peru, - como então se escreveu - a Rainha Isabel mandara fazer muitas festas ao Draques". Nestas festas estava presente um português de prestígio: D. António, Prior do Crato, pretendente ao trono português.

Quando Drake e Nuno da Silva chegaram à Europa, o mapa geopolítico alterara-se profundamente. D. Sebastião morrera no Norte de África, deixando a Coroa à mercê de Filipe II, uma vez que o breve reinado do Cardeal D. Henrique não resolvera a questão da sucessão, isto é, não conseguira anular as legítimas pretensões que o rei de Castela tinha ao trono de Portugal. Deste modo, em 1580 Portugal e Castela uniam os seus destinos e assim ficariam durante 60 anos.

Num texto notável escrito nas primeiras décadas do século XVII, e de teor anticastelhano, Pêro Rodrigues Soares afirmava que com a união dos reinos parecia "que tínhamos um Rei grande e muito poderoso, que todos o haviam de temer e que não havia mais de haver ladrões no mar". Enganaram-se todos os que pensaram assim. Porque, e diz-nos o mesmo Soares, "a partir daí não houve porto que não fosse saqueado, nem nau que fosse roubada...".

Drake estava na linha da frente destes assaltos. E naquele tempo já tinha construído um nome e uma reputação. E era temido. De tal forma, que até os fenómenos naturais mais assustadores como que anunciavam a sua vinda.

Supersticiosos, os homens do século XVI tinham medo daquilo que em geral não conseguiam explicar. Os cometas contavam-se nessa categoria: Como este: "Aos doze de Setembro de 1583, às dez horas da noite apareceu no céu outro sinal de lume muito vermelho como o que tinha aparecido o ano atrás, que durou até à noite e no cabo lançou muitos e grandes raios que davam muita claridade [...] e cada mês e cada ano apareciam sinais espantosos, assim nesta cidade de Lisboa como em muitas partes do Reino, os quais sempre significavam desventuras grandes". Ou este: "Ao derradeiro de Fevereiro de 1586, as duas horas depois da meia-noite, apareceu na torre de Belém um grande sinal de fogo no céu [...] visto de todos e no dia dantes choveu nesta cidade tanta infinda pedra que ruas e telhados e campos estavam cheios em montes muito grandes; e aos 12 de Março às 9 da noite chovendo e fazendo grande escuro, apareceu uma bola de fogo sobre o castelo expedindo de si grandes raios direitos ao mar com grande claridade que se enxergava tudo e tornavam a voltar ao castelo. E não se espante quem isto ler haver tantos sinais no céu, que muito mais se espantaria das coisas que depois deles pelo tempo em diante sucederam".

Sucedeu o confronto aberto. O embargo dos navios britânicos ancorados no Tejo, decretado por Filipe I de Portugal, e a represália inglesa, que principiou em Baiona, na Galiza, alarmou a cidade do Porto e fez acender fachos e fogueiras nas praias para avisar da chegada de inimigos. De Baiona os ingleses passaram ao largo do Porto, travaram escaramuças no mar com lanchas que os portugueses tinham a proteger a barra do Douro e baixaram a Lisboa, bloqueando a entrada do Tejo, tomando quantos navios e embarcações a vinham demandar. "E o general de todas estas armadas, escrevia Rodrigues Soares, era um capitão afamado e o mais nomeado por seu nome que outro houve no mundo a que chamavam o Draques".

De Lisboa, Francis Drake seguiu para as Índias de Castela. Depois de saquear Santo Domingo, levou de um só golpe todas as galés que estavam ancoradas em Cartagena das Índias e recebeu avultada compensação dos moradores da cidade em troca da promessa de não saquear igrejas, navios e casas principais. Diz-se que cobrou 150 mil cruzados.

Isto decidiu Filipe. Em 1588, como é geralmente sabido, reuniu-se uma das maiores armadas da história naval europeia, essencialmente castelhana e portuguesa, que zarpou para Inglaterra com o objetivo de a conquistar. Não vou aqui debruçar-me sobre este tema, que foi, é e será debatido e discutido, deixando apenas a ideia que a vitória inglesa se deveu, essencialmente, a adversas condições meteorológicas que desorganizaram o assalto ibérico dirigido pelo duque de Medina Sidónia e facilitaram a defesa britânica que, inegavelmente, conseguiu controlar a batalha, ou melhor, os diversos recontros que ocorreram no Canal, evitando a invasão. Drake, que foi o segundo no comando após Charles Howard, já não estava nas boas graças da rainha, que, em parte, lhe atribuía a responsabilidade pela animosidade de Filipe de Espanha. Contudo, o pirata ainda teve papel de relevo neste episódio e no que se lhe seguiria.

Desde logo, atrasando a partida da armada com o raide a Cádiz e à costa portuguesa, destacando-se o assombroso assalto a Sagres, destruindo a torre do castelo e saqueando o pequeno convento que existia no cabo de São Vicente, e suscitando obras de modernização das defesas costeiras portuguesas. Porém, e mais um facto que desagradou à rainha e ao comando britânico, em vez de permanecer no Cabo de São Vicente e intercetar a navegação andaluza que se dirigia a Lisboa a apoiar o apresto da armada, resolveu partir para os Açores em busca de presas.

Em seguida, participando nos combates com a Armada, com o "Revenge". Também de modo muito discutível, gerindo mais uma agenda própria do que os interesses da defesa do seu reino, optando, por exemplo, por capturar o galeão "Nossa Senhora do Rosário", que carregava o dinheiro para pagar às tropas (uma fortuna colossal avaliada em cerca de 50 mil ducados) em vez de cumprir as ordens que tinha, que eram as de guiar a frota, e, acima de tudo, o seu papel neste episódio parece ter sido, mais uma vez, exagerado e propagandeado graças ao dinheiro que pagou aos cronistas. Harry Kelsey, autor de uma completa biografia do pirata, escreve que "a informação de que na atualidade dispomos põe de manifesto que Howard, Frobisher e Hawkins lutaram com grande galhardia, mas muito pouco se diz das façanhas do pirata de Devon. Na realidade, nem sequer sabemos se Drake foi, efetivamente, vice-almirante a não ser que insistiu com Ubaldino [Petruccio Ubaldino, que escreveu o Comentário sobre a "empresa de Inglaterra", logo após o acontecimento] que escrevesse o dito título no seu manuscrito sobre a Armada. Para a marinha espanhola e em especial para o monarca espanhol, Drake era a cabeça da marinha de Inglaterra; no entanto, para os capitães de navio ingleses companheiros do corsário, Drake era outra coisa".

A Contra-Armada ou o fim do sonho do pirata

Com o fim do sonho de conquista ibérica da Inglaterra, abriu-se o último capítulo da relação de Drake com Portugal, e o início da sua decadência. Avaliados os efeitos da Armada, percebeu-se que os recursos navais dos reinos ibéricos estavam muito desgastados. E que era a altura certa para desferir o golpe final nas aspirações de Filipe II, atacando-o no seu próprio terreno. Drake, pese embora a contestação, continuava a ter algum favor da rainha. E por isso foi-lhe confiada a tarefa de organizar aquela que ficou conhecida como a Contra-Armada, ou a Invencível Inglesa, ou ainda a expedição Drake-Norris tendo em conta a partilha do comando desta força naval entre o velho corsário e John Norris, ou Norreys, como também aparece nas fontes.

Neste processo, aquele que até aí desempenhara um papel secundário torna-se, a partir de então, figura central desta trama: D. António, Prior do Crato, pretendente à Coroa portuguesa, havia alguns anos exilado na corte inglesa. Tornou-se íntimo de Drake e contou com o seu apoio para retornar a Portugal, desejo que era do agrado de Isabel I. Note-se que este apoio britânico era tudo menos desinteressado. Havia como que um contrato-promessa entre o Prior do Crato e a Rainha Isabel I, e o auxílio ao pretendente seria prestado ao longo de vários anos, contra pagamento pesado. Drake e Isabel souberam explorar a fragilidade do candidato português e a sua própria ambição; dedicaram-lhe muita atenção e prometeram-lhe o que ele mais queria: o trono. Em troca, D. António garantia-lhes - e aos mercadores ingleses - facilidades nos negócios, acesso aos mercados portugueses e portos do Brasil e livre-trânsito nos Açores sem paralelo, abrindo-lhes o caminho para o que sempre haviam desejado: capturar as frotas das Índias de Castela. Em consequência, quando começaram a chegar os relatórios dos espiões detalhando a azáfama nos portos e descrevendo os navios reunidos, tocou o alarme em toda a costa portuguesa, principalmente nas vizinhanças de Lisboa, onde se esperava o desembarque.

Não se costuma dar muita atenção a esta armada. No entanto, em número de navios, homens do mar e tropas de assalto não ficava muito atrás da dita Armada Invencível. Senão vejamos: seria constituída por seis galeões régios, 60 mercantes armados ingleses e outros tantos fluyts holandeses e zelandeses, acompanhados de 20 pinaças e outros navios de apoio. Trazia quatro mil marinheiros e 1500 nobres e uma força expedicionária de cerca de 24 mil soldados. O seu fracasso também teve paralelo no fracasso da Invencível. Todos os centros portuários ibéricos ameaçados e atacados conseguiram resistir com maiores ou menores perdas, caso de Vigo ou da Corunha. No Porto, como vimos a abrir este texto, os mercadores temiam pela sorte dos navios que vinham do Brasil carregados de açúcar.

Quando a armada chegou junto da barra de Lisboa, houve pânico na cidade. Conta-se que os caminhos e os passos de barcas que levavam ao Barreiro e a Montijo estavam tão apinhados de gentes com os seus parcos haveres, que se chegava a lutar por uma carroça ou uma barca, cujos alugueres ascendiam a pequenas fortunas.

Os ingleses desembarcaram a 3 de Junho de 1589; entraram pelas portas da Trindade e de Santa Catarina e puseram a terra a ferro e fogo. Porém, o intento ficou por aqui. Por duas razões em particular. Primeiro, e talvez mais importante, porque o esperado apoio que a população de Lisboa daria ao Prior do Crato não aconteceu. De todo. Diz-se que Filipe I neutralizara os nobres do partido de D. António, evitando a formação de uma quinta-coluna, mas a verdade é que o povo tinha em mente o que acontecera às povoações que não haviam tomado voz pelo pretendente em 1580: saque e morte de vereadores. Segundo, porque a peste começou a aparecer entre a frota britânica, obrigando Drake a levantar ferro e a partir para onde pudesse cuidar dos doentes. Ainda se tentou um desembarque no Cabo de São Vicente e uma marcha até Lisboa por terra, mas o plano foi abandonado. Os navios voltaram a Inglaterra. Sem glória. Drake foi responsabilizado pelo fracasso da empresa, foi-lhe retirado o "Revenge" e ficou sem comandar qualquer embarcação até 1595.

Nesse ano, um já idoso, para o tempo, capitão pirata conseguia financiamento para aquela que viria a ser a sua última expedição. Curiosamente, refazia-se a velha sociedade com o primo, John Hawkins, que, aparentemente, ultrapassara as divergências que os separavam desde San Juan de Ulúa. Mas a expedição foi um somatório de fracassos sucessivos. Em primeiro lugar, não conseguiram capturar um galeão da frota do tesouro que estava a reparar em San Juan de Porto Rico; depois, foram incapazes de assaltar Nombre de Dios, no Panamá, para poderem roubar a frota do Peru; tentaram, depois, um último assalto a San Juan. Sem sucesso. Hawkins foi morto e os artilheiros do castelo El Morro conseguiram meter um tiro de canhão na cabina de Drake, mas milagrosamente ele sobreviveu. Parecia que a boa estrela, ou os poderes sobrenaturais que alguns adversários lhe atribuíam continuavam a protegê-lo. Mas não. Dias depois, no mar, o pirata da rainha morreria de disenteria. Foi sepultado no mar, onde ainda hoje descansa.

A sua figura continua a inspirar a literatura, o cinema e as artes. Na apresentação da animé japonesa One Piece diz-se que "houve um homem que conquistou tudo aquilo que o mundo tinha a oferecer, o lendário Rei dos Piratas, Gold Roger. Capturado e executado pelo Governo Mundial, suas últimas palavras lançaram legiões aos mares. - O meu tesouro? Se quiserem podem ficar com ele. Procurem-no! Ele contém tudo que este mundo pode oferecer!". Um dos líderes dessas legiões de aventureiros é X Drake. Foi almirante da marinha e tornou-se pirata. É descendente de Francis Drake.

NewsItem [
pubDate=2018-11-13 17:31:00.0
, url=https://www.jn.pt/artes/canal/historia/interior/drake-e-os-portugueses-10168256.html
, host=www.jn.pt
, wordCount=4630
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2018_11_13_59266352_drake-e-os-portugueses
, topics=[história, artes]
, sections=[vida]
, score=0.000000]