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Como se avalia um país? “As discussões são confidenciais”

Como se avalia um país? “As discussões são confidenciais”

No lapso de um mês e meio, dois relatórios internacionais que avaliavam Portugal geraram discussão. Para onde olha quem nos avalia? E com quem fala? Falámos com um dos autores.

Entre visitas ao país, pesquisa de notícias de jornais e relatórios oficiais, conversas com representantes do Governo, reuniões com organizações não-governamentais, muito se passa antes que se conheça os resultados das avaliações que são feitas regularmente pela Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI, na sigla inglesa), do Conselho da Europa. No total, demora cerca de um ano, estima Wolfram Bechtel, advogado e membro da comissão que avaliou recentemente a situação em Portugal. Este ano, o relatório sobre o país, publicado a 2 de Outubro, tinha 49 páginas e 107 constatações e recomendações. E suscitou polémica. A vários níveis.

Desde logo, a ECRI aborda a questão do ensino da História em Portugal. Frisa que ele “deveria englobar o papel que Portugal desempenhou no desenvolvimento e, mais tarde, na abolição da escravatura, assim como a discriminação e a violência cometidas contra os povos indígenas nas ex-colónias”. Mais: devia abordar “a história e o contributo dos afrodescendentes, assim como dos ciganos, para a sociedade portuguesa”. E as autoridades nacionais “deveriam melhorar os manuais escolares seguindo estas linhas de orientação”. A ECRI não revela quem são as organizações da sociedade civil por si ouvidas no país em avaliação — “garantimos-lhes que as nossas discussões são confidenciais”, diz Wolfram Bechtel ao PÚBLICO.

E leram os manuais? Falaram com professores? O presidente da Associação de Professores de História (APH) diz que não foram contactados por ninguém da ECRI. “Deviam tentar fazer a análise dos manuais mais vendidos”, defende o professor. Se tivessem feito essa consulta, continua Miguel Monteiro de Barros, veriam que “alguns manuais não são muito correctos a esse nível, mas a sua quota de mercado há-de ser 2 ou 3%”. É “quase irrelevante”.

E se tivessem sido contactados, o que diria a APH? “Acho que há uma parte da questão que se coloca de forma errada, porque muitos professores não usam o manual como instrumento principal.” Quanto aos programas “são mais ou menos neutros, deixando algumas destas questões um pouco em aberto”. Nesse sentido, a “APH esteve a trabalhar com o Ministério da Educação para elaboração das aprendizagens essenciais, a partir dos programas”. Miguel Monteiro de Barros sublinha a “preocupação, desde Outubro de 2016, em introduzir estas questões da forma mais correcta possível”.

"Não há uma metodologia à prova de bala"

Os relatórios elaborados pelos organismos internacionais, como a OCDE ou o Conselho da Europa, são feitos por pessoas “muito competentes”, defende Fernando d’Oliveira Neves, antigo embaixador de Portugal e representante do Governo a nível internacional em diversos cargos. Não significa, porém, que “não deixe de haver algum tipo de preconceito” até porque “tudo o que é feito por seres humanos reflecte o que eles são”. No geral, pode ter-se “considerável confiança” nestes conteúdos, acredita.

Sobre o caso concreto dos relatórios que analisam as competências do país ao nível da educação, Domingos Fernandes, professor no Instituto da Educação e ex-secretário de Estado da Administração Educativa, defende que lhes estão associados metodologias que “têm credibilidade”. Um exemplo disso é o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA, na sigla inglesa). Contudo, “não há metodologias à prova de bala”, alerta. “Há sempre outra forma de fazer as coisas. Estas questões são complexas e precisam de um olhar cauteloso e crítico.” Os estudos têm vantagens e desvantagens. Por um lado, diz, dão-nos um “ponto de situação sobre o curso que estamos a dar ao sistema educativo”. Mas há limites: “Não faço relação de causa-efeito entre os estudos internacionais e políticas internas.” Quanto aos potenciais malefícios, avisa que pode haver tendência para “tratar os resultados como um campeonato de futebol” e tomar medidas só para ficar bem na fotografia. “Não podemos entrar por aí.”

Marta Araújo, investigadora no Núcleo de Estudos sobre Democracia, Cidadania e Direito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e autora de vários trabalhos que avaliam a forma como a História é relatada nos nossos manuais, não pensa da mesma forma. “Como é que se pode ensinar a escravatura e nunca se mencionar como um pensamento racial esteve associado à escravatura”, questiona.

A ECRI diz que não viu os manuais. “Não temos a capacidade nem o tempo para olhar para os livros”, faz saber Wolfram Bechtel. “As autoridades portuguesas talvez sejam as melhores para fazer essa avaliação e olhar para os livros de História e identificar pontos onde as melhorias podem ser feitas”, sugere. “Nós chegamos às nossas recomendações ao ouvir o que dizem a sociedade civil, os investigadores, as outras organizações internacionais e as autoridades.”

De resto, o que a ECRI propõe não é novo — tanto esta entidade como a ONU já suscitaram a questão do ensino da História em Portugal noutros relatórios. O PÚBLICO questionou o Ministério da Educação para saber se ia tomar medidas em relação às recomendações internacionais, mas não obteve resposta. Contudo, nesta quarta-feira, numa audição na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, convocada pelo Bloco de Esquerda para o ouvir o ministro da Administração Interna sobre o relatório do Conselho da Europa, Eduardo Cabrita foi categórico: “Não há necessidade de mudar os manuais.”

Racismo na polícia

Além do ensino da História, a ECRI também apontou o dedo à Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI) por, afirma, tolerar o racismo e não fazer um seguimento adequado das denúncias. Apesar das acusações de violência racista cometida por agentes de polícia, “nenhuma autoridade reuniu sistematicamente estas acusações e procedeu a um inquérito eficaz para determinar se são ou não verdadeiras”, lê-se no relatório. “Isto levou ao medo e falta de confiança na polícia, particularmente entre as pessoas de origem africana.”

Esta tomada de posição levou as autoridades portuguesas a pedirem a publicação de um “Ponto de vista do Governo”, num apêndice ao documento. Aí, a PSP e a IGAI refutam a maioria das conclusões que lhes dizem respeito, em particular a acusação de que toleram o racismo. A IGAI insurge-se contra a mencionada necessidade de um organismo que investigue alegados casos de racismo e violência da polícia, e apresenta-se como esse “órgão independente”. A Direcção Nacional da PSP fez saber que muitas das respostas que enviou à ECRI quando o país estava a ser avaliado foram mesmo ignoradas.

Chegamos às nossas recomendações ao ouvir o que dizem a sociedade civil, os investigadores, as autoridades Wolfram Bechtel, ECRI

Wolfram Bechtel relativiza: “Os comentários [negativos] são só de duas organizações governamentais. A ECRI falou com muitas mais.” Além disso, “cobrir o assunto do racismo e intolerância nestas páginas exige foco”. E se é facto que é uma “selecção difícil de satisfazer toda a gente”, também é responsabilidade da comissão escolher “os assuntos em que se quer focar”. Quem também se queixou foi Duarte Marques. Supostas declarações racistas do deputado do PSD eram citadas numa primeira versão do relatório, tornando-o exemplo deste tipo de discurso entre políticos. O documento já foi corrigido pela ECRI já depois da primeira versão ter sido divulgada.

OCDE debaixo de fogo

O trabalho apresentado pela ECRI não é o primeiro relatório internacional a ser polémico nos últimos tempos. Há cerca de um mês o mais recente Education at a Glance (que é feito anualmente pela OCDE desde 2000) caiu que nem uma bomba. Os sindicatos apontaram erros nos número disponibilizados sobre salários dos professores e prometeram invadir as caixas de e-mail da organização com reclamações.

“Com a polémica que existiu nem era preciso ir ao anexo técnico”, comenta ao PÚBLICO Nuno Rodrigues, director de Serviços de Estatísticas da Educação na Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência e responsável por fornecer à OCDE os dados relativos a Portugal. Bastaria ler o título do gráfico, continua, porque os valores apresentados para os salários dos professores correspondem à paridade do poder de compra (PPS) e, por isso, não são o rendimento real. A OCDE (e outros organismos) utiliza este método para poder comparar países.

João Dias da Silva, da Federação Nacional da Educação (FNE), admite que as questões inicialmente levantadas pelos sindicatos se prendiam com a interpretação errada dos dados, que não tiveram em conta que os números eram apresentados em PPS. Além disso, o facto de as pessoas não se reverem individualmente nos números, que são uma representação do universo dos professores, também levantou problemas. Mas persistem dúvidas sobre outros dados, nomeadamente o tempo de trabalho, os salários e a carreira docente que aparecem no relatório e que o responsável da FNE faz saber que já foram colocadas à OCDE.

Dias depois de se saber o conteúdo desta avaliação, o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues dizia ao PÚBLICO que o documento “não é uma bomba”.

“Em Portugal, o Education at a Glance é alimentado com o inquérito UOE (produzido para a UNESCO, OCDE e Eurostat)” e outras fontes como o INE e o Instituto de Gestão Financeira, explica Nuno Rodrigues. “Depois, dependendo do ano em que está a ser realizado há estudos internacionais que podem ser utilizados”, como os do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (também da OCDE).

“A nossa preocupação é a independência. A equipa não comenta os dados. Há outras pessoas que têm de o fazer. Nós temos de dar aos utilizadores, sejam eles quais forem, a informação”, declara Rodrigues.

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