expresso.sapo.ptexpresso.sapo.pt - 15 out. 05:24

‘Geringonça’ cozinhou quatro Orçamentos na Sala das Bolachas

‘Geringonça’ cozinhou quatro Orçamentos na Sala das Bolachas

Houve reuniões às duas da manhã, sanduíches a servir de jantar e um desfile de ministros. Tudo na mesma sala

A sessão parlamentar de quinta-feira tinha encerrado. O secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, acabado de regressar de Arouca, entrou (atrasado) para mais uma ronda de negociações com Os Verdes. Eis senão quando a assessora do grupo parlamentar do PCP convoca os jornalistas que ainda restavam na Assembleia para uma declaração do líder parlamentar. A surpresa foi tamanha que nem havia televisões para registar o momento. E foi pena. Era a primeira vez, em quatro anos de ‘geringonça’, que os comunistas anunciavam medidas orçamentais, antes de o documento estar fechado. O clima mudou. Desta vez, foi o PCP a clamar vitória antes de o jogo ter terminado. O Governo nem sequer foi consultado e o Bloco de Esquerda ficou de queixo caído.

Os papéis inverteram-se no quarto e último orçamento a aprovar pela ‘geringonça’. O Bloco, sempre acusado de não resistir ao protagonismo e de antecipar medidas ainda em negociação, foi agora apanhado “completamente de surpresa” pelos anúncios feitos por João Oliveira. O líder parlamentar comunista deu por fechados dossiês, como o aumento extraordinário das pensões em janeiro, o reforço do abono de família, a conclusão do processo das reformas antecipadas em janeiro de 2020 e até a redução da fatura de eletricidade. Trunfos reclamados pelo Bloco e que o partido “continua a negociar”. “A quatro dias do fim do prazo é impensável fazer estes anúncios”, diz fonte da direção do BE.

“Foi sede de ir ao pote. Anunciaram medidas que ainda não são nada”, dizem os bloquistas, que foram para este OE com uma atitude “muito cautelosa sobre as medidas que não estavam consolidadas”, garantem.

As críticas do Bloco ao PCP não deixam de ser irónicas, se pensarmos no episódio do ‘imposto Mortágua’ ou no anúncio da ‘taxa Robles’. Mais: ainda na passada semana, a notícia, atribuída ao BE, de que os salários da Função Pública subiriam um mínimo de 10 euros, irritou comunistas e Governo, que viu a proposta ser conhecida e atribuída às Finanças antes mesmo de a delegação do Bloco entrar na reunião de negociações. Falou-se em “nova bloquice” e quebra de confiança.

O pivô no olho do furacão

A rivalidade entre BE e PCP sobra para Pedro Nuno Santos. Como os dois partidos não falam entre si sobre as negociações em curso, são muitas vezes informados pela comunicação social dos pretensos avanços e recuos. E exigem satisfações ao secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, que tem de lidar ainda com os ‘nãos’ de Mário Centeno, as reservas de Vieira da Silva e as pressões do próprio grupo parlamentar do PS. Pináculo desta turbulência: numa sexta-feira, é avisado pelo BE (via SMS) que o partido vai anunciar a ‘taxa Robles’ no Expresso; durante o fim de semana, Catarina Martins admite que a medida está praticamente fechada; na segunda-feira seguinte, Carlos César, primeiro, António Costa, depois, sugerem que a taxa é absurda e que nunca foi equacionada, fragilizando politicamente os bloquistas. Seria Pedro Nuno Santos a lidar com o incidente diplomático e a resolver a crise da única forma possível: seguindo em frente.

Em tese, estes episódios de rutura total não deviam acontecer. É para isso que serve o trabalho prévio que é feito. Numa fase prematura das negociações, Pedro Nuno Santos recebe todas as reivindicações dos parceiros de esquerda e estuda-as com o seu núcleo duro, onde se destacam Marina Gonçalves e Hugo Mendes, chefe de gabinete e adjunto do secretário de Estado, respetivamente. Há depois um trabalho com os ministérios: Pedro Nuno Santos recebe o feedback técnico e volta à mesa de negociações para começar a partir pedra à esquerda. Ao longo das negociações, os adjuntos do secretário Estado vão mantendo reuniões paralelas com os ministérios-chave, num fluxo contínuo de comunicação. Sempre que BE, PCP ou PEV o pedem, os ministros vão até à Assembleia.

E António Costa? Além das reuniões formais com os líderes da ‘geringonça’, no arranque das negociações do OE, Pedro Nuno Santos vai mantendo o primeiro-ministro informado, sempre que as propostas ganham algum nível de maturação. Esse report é feito sobretudo nas reuniões semanais de coordenação, que juntam à mesma mesa António Costa e ministros do seu núcleo político — Siza Vieira, Mário Centeno, Vieira da Silva, Augusto Santos Silva e Eduardo Cabrita. Em caso de impasse, há encontros entre os líderes partidários e o primeiro-ministro, mas que foram raros e (quase) sempre mantidos secretos. Seja como for, é o secretário de Estado que fica na linha da frente com os diferentes comprimentos de onda dos parceiros à esquerda. Muitas vezes, à base de sanduíches e noites de sono perdidas.

Reunite aguda

Nem Governo nem os grupos parlamentares têm uma conta feita sobre o número exato de reuniões necessárias para fechar um Orçamento. Mas são muitas. Paulo Sá, o deputado comunista que este ano, juntamente com o recém-chegado deputado Duarte Alves (que substituiu Miguel Tiago), tem a missão de assistir a todas as reuniões (gerais e sectoriais), arrisca dizer que “na primeira fase, antes da discussão na especialidade” serão precisos à volta de 30 encontros para chegar a um acordo.

As reuniões são todas numa das salas anexas ao gabinete de Pedro Nuno Santos e decorrem “normalmente depois do plenário”. Ou mesmo a “horas impróprias”, como da vez em que, por motivos de agenda, a reunião com o Governo teve de começar às 2h30 da manhã. “O ministro estava em comissão, não havia outra hipótese”, diz João Oliveira. Foi mesmo assim.

A resistência à fome e ao cansaço podem ser um teste aos negociadores. Mas, na verdade, só os comunistas parecem fazer derrapar os horários. Do lado dos Verdes ou do Bloco de Esquerda não há registo de reuniões que se prolonguem pela noite dentro. “Há alturas em que acabamos mais tarde, mas nunca depois das onze da noite”, diz Mariana Mortágua. Dulce Arrojado, assessora de imprensa dos Verdes, mas que integra a equipa de negociadores, também regista o mesmo horário de trabalho. “As reuniões são intensas, mas nunca fora de horas”.

Os encontros podem até colidir com os períodos de almoço, jantar ou lanche, mas isso não os trava. Mariana Mortágua, tal como João Oliveira, lembram-se de “uma ou outra vez em que foram trazidas sanduíches” para acalmar os estômagos. Mas o mais frequente são “as bolachas, chá e café” que, como diz Dulce Arrojado, “simpaticamente nos são trazidas”.

A alcunha de “sala das bolachas” surgiu depois de dias de negociações naquele mesmo local, com o mesmo décor e a mesma ementa. E tudo somado, foram várias semanas, senão meses, passados naquele gabinete para fechar quatro orçamentos. Uma reunião “normal” dura “pelo menos hora e meia” para os Verdes, e “duas horas” para o Bloco. No PCP “varia muito”, diz João Oliveira. “Há reuniões de meia hora e outras mais longas, que chegam às quatro ou cinco horas”.

As equipas são todas mobilizadas. No PCP, além dos deputados e dos assessores do grupo parlamentar, há dirigentes que vêm da Soeiro para acompanhar os trabalhos. Dos mais ‘assíduos’ contam-se Jorge Cordeiro, Vasco Cardoso ou Jorge Pires, todos da cúpula do partido. São mais de três dezenas. As contas do Bloco vão para os mesmo valores, com os 19 deputados, assessores e especialistas chamados a trabalhar nas propostas orçamentais. Os Verdes, com apenas dois deputados, recrutam mais quatro dirigentes nacionais e a assessora de imprensa para a tarefa.

Entre grupos parlamentares não há contactos, mas todos garantem que o ambiente negocial é “cordial” com o Governo. No entanto, para o Bloco, as coisas mudaram este ano. “Houve uma enorme dureza e intransigência do Governo quase até ao fim”, diz Mariana Mortágua. As negociações “arrastavam-se e não passavam da cepa torta, ao mesmo tempo que o Governo vinha publicamente dizer que não havia margem e apoucar as nossas propostas”. Há duas semanas, e na reta final, o cenário mudou. “Quando o Governo percebeu que esta estratégia de altivez não resultava”. E o Orçamento ganhou luz verde para avançar.

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