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Julgamento de Vela tirou “da escuridão” o roubo de bebés em Espanha

Julgamento de Vela tirou “da escuridão” o roubo de bebés em Espanha

“Está demonstrado que roubava crianças – com todas as palavras”, diz Mari Cruz, a quem levaram o filho. Inés Madrigal, retirada aos pais, ficou surpreendida com a sentença do médico responsável por isso, em liberdade por alegada prescrição do crime.

Uma sentença que é ao mesmo tempo um “balde de água fria” e uma “notícia muito boa”. É assim que Inés Madrigal, ilegalmente retirada dos pais em 1959 e, até agora, a única a conseguir levar ao banco dos réus um responsável pelo esquema de roubo de bebés que imperou em Espanha durante mais de 60 anos, classifica a sentença do ginecologista Eduardo Vela. O médico que a entregou aos pais adoptivos foi considerado culpado de três crimes mas acabou absolvido devido à prescrição dos delitos.

Foi há quase 50 anos que Eduardo Vela, à época director da clínica de San Ramón em Madrid, entregou Madrigal, que tinha acabado de nascer, a um casal que não podia ter filhos. Este foi apenas um caso de entre dezenas de milhares de entregas ilegais de bebés que começaram por volta de 1938, já depois da subida ao poder do "generalíssimo" Francisco Franco, e que se estendeu para lá da ditadura, até pelo menos 1996.

O caso de Madrigal foi o único que chegou aos tribunais. Vela foi acusado dos crimes de adopção ilegal, detenção ilegal e falsificação de documentos. Na semana passada chegou o veredicto: o médico, hoje com 85 anos, é culpado de todos os crimes mas não cumprirá pena.

“Fiquei muito surpreendida com a sentença”, admite Inés Madrigal ao PÚBLICO. “A Audiência Provincial de Madrid [tribunal superior que exerce a sua jurisdição na capital espanhola] esteve sempre a favor da não prescrição. O advogado de Eduardo Vela falou na prescriçãoem várias ocasiões.  Todos os recursos que interpôs no tribunal de Madrid que falavam na prescrição voltaram para trás”, acrescenta.

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Por isso, diz, a decisão judicial foi “um balde de água fria”. “Mas provaram o que para mim era o mais difícil de provar: a adopção ilegal, detenção ilegal e falsificação de documentos. Por isso, é a primeira sentença a nível europeu que diz que em Espanha se roubaram bebés”, afirma. Apesar da absolvição, esta é, por isso, “uma notícia muito boa”.

“A parte mais difícil está feita. A parte da prescrição pode-se rebater sem nenhum problema”, continua. Outro factor que dá “muita segurança” a Inés Madrigal é o facto de a procuradoria de Madrid já ter anunciado que irá recorrer da sentença ao Supremo Tribunal.

No fundo, “estamos perante uma boa notícia, mas o tribunal quis largar a batata quente das suas mãos para que o Supremo se pronuncie sobre a prescrição”.

Culpado mas absolvido

Só em 1987, quando atingiu a maioridade, é que Madrigal soube, através da mãe adoptiva, Inés Pérez, que era adoptada. No entanto, continuou sem fazer ideia que tinha sido uma das vítimas do esquema. Só em 2010 é que Madrigal começou a desconfiar quando leu no jornal El País um artigo sobre Vela e a clínica de San Ramón, o epicentro desta rede.

Quando confirmou que tinha sido ilegalmente adoptada, Madrigal acabou por denunciar a própria mãe adoptiva para agilizar o processo, em 2011. Pérez, que morreu em 2016 com 93 anos, foi ouvida pela Justiça e identificou Vela como o médico que lhe entregou o bebé como um “presente”.

Tudo isto permitiu que o caso chegasse aos tribunais. O único de entre, estima-se, mais de 2000 denúncias, com a grande maioria arquivada por falta de provas.

Se, no início, e durante a vigência do franquismo, a rede de roubo de bebés se fez para estancar a “praga” do marxismo - através da qual as mulheres republicanas presas ficavam sem os filhos que eram entregues a instituições católicas e a famílias próximas ao regime -, depois, já após a morte de Franco e da transição para a democracia, esta rede transformou-se num negócio. Os alvos já não eram comunistas mas sim mães solteiras e sem condições financeiras. Tudo isto era feito, em muitos casos, mediante  abusos e pressão sobre as mães ou, simplesmente, através da simulação da morte dos recém-nascidos.

O “juiz-estrela” Baltasar Garzón, que ganhou fama por, entre outras coisas, tentar levar os crimes do franquismo à Justiça, calculou que, entre 1938 e 1996, cerca de 30 mil crianças tenham sido irregularmente separadas dos seus pais. O número certo é incalculável.

Desde o final dos anos 1980 e ao longo das duas últimas décadas, foram sendo feitas investigações jornalísticas que lançaram alguma luz sobre esta rede. O caso de Madrigal e o julgamento de Vela trouxeram o tema para o centro do debate público.

O médico chegou ao tribunal acusado de três crimes e o Ministério Público espanhol pedia onze anos de prisão. Vela foi negando sempre as acusações, alegando falta de memória na maioria das perguntas e garantindo que “assinava documentos sem os ler”, quando confrontado, por exemplo, com a certidão de nascimento de Madrigal.

O tribunal concluiu que Vela exercia “um controlo total e disposição sobre os partos que ali [na clínica de San Ramón] aconteciam”. E que a entrega de Madrigal foi feita “fora dos canais legais”, não existindo provas de que os seus pais biológicos “tenham tido sequer conhecimento” ou que “tenham dado o seu consentimento”.

Além disso, o tribunal deu como provado que Vela assinou com “o seu punho e letra” um parto que “jamais teve lugar” e que declarou a mãe adoptiva de Madrigal como mãe biológica.

“A dor de uma mãe prescreve?"

Assim, na sentença de 60 páginas, os crimes de adopção ilegal, detenção ilegal e falsificação de documentos são dados como provados. Mas o tribunal decidiu absolver o médico por prescrição, abrindo agora uma discussão jurídica.

Mari Cruz é presidente da associação SOS Bebes Robados de Madrid e esta rede de adopções tirou-lhe o filho em 1980, num hospital da capital espanhola. Diz que “é muito importante que este senhor seja culpado”.

“Está demonstrado que roubava crianças – com todas as palavras”, explica Cruz ao PÚBLICO, admitindo, porém, que o facto de “o terem deixado solto, incomoda”. “Estamos um pouco desoladas porque queríamos que este senhor fosse condenado. Mas pelo menos foi reconhecido que estamos a dizer a verdade”, acrescenta.

Sobre a prescrição não tem dúvidas: “A dor de uma mãe prescreve? Creio que não. A dor de uma mãe nunca prescreve”. Por isso, defende, a discussão sobre a decisão do tribunal “de jurídico não tem nada”.

Neste caso estiveram em julgamento três crimes considerados como um só, pois uns serviram de meio para outros. Por isso, para a prescrição, o que conta é o delito mais grave, a detenção ilegal. Para este crime, que prevê uma pena de prisão até aos oito anos, o prazo de prescrição é de dez anos, segundo o Código Penal espanhol.

"Só penso em ajudar as milhares de vítimas”

A grande questão agora em debate é o dia a partir do qual se começaram a contar estes dez anos. Para o tribunal, o prazo começou na altura em que a queixosa atingiu a maioridade.

No caso de Madrigal, em 1987 (assim, o crime prescreveu em 1997). A detenção ilegal é considerada, à luz do Direito, um crime permanente, que não termina na altura da detenção do seu executante. É uma acção que se estende ao longo do tempo, com ou sem a presença do prevaricador. Por isso, é necessário encontrar o momento em que se dá por terminada a detenção ilegal, ou, dito por outras palavras, a privação da liberdade. O tribunal entendeu que esse momento aconteceu quando Madrigal fez 18 anos e ficou com plena capacidade de acção e independência em relação aos pais ou tutores.

A reforçar a tese do tribunal está o facto de Madrigal ter sabido que era adoptada precisamente quanto atingiu a maioridade. Mas, como sublinha a acusação, não foi esse o momento em que tomou conhecimento de que a sua adopção tinha sido ilegal. Isso só aconteceu décadas depois.

Denunciar o que se ignora

O  jurista e ex-procurador contra a corrupção espanhol Carlos Castresana escreve no jornal online infoLibre que “carece de razoabilidade considerar que a prescrição de delito pudesse ser calculada desde que aquela que foi subtraída atingiu a maioridade, porque a partir dessa data poderia ter exercido a acção contra a pessoa responsável" pelo crime. “Não é verdade: para denunciar que tinha sido tirada da sua família ao nascer, Inés tinha de ser maior de idade e precisava, além disso, de saber que tinha sido roubada. Como poderia ela ter denunciado algo que ignorava?”

Madrigal aponta ainda outro factor para contestar a prescrição: “Eu sou da opinião que estamos perante crimes contra a humanidade. Porque isto fez-se sistematicamente por todo o território espanhol durante mais de 60 anos. Isso em Espanha gera medo. Porque a seguir olhamos para a ditadura, e olha-se um pouco de lado aqui em Espanha para este tema da ditadura.”

Este argumento é também usado por Castresana, afirmando que a sentença de Vela “está muito trabalhada, mas infelizmente erra o tiro ao considerar que o delito está prescrito”. “Mais uma vez, os juízes espanhóis desconhecem – não aplicam – o Direito Internacional. A sentença assegura que a imprescritibilidade e a categoria de crimes contra a humanidade não podem ser reconhecidos retroactivamente no Direito espanhol”, continua, explicando que “o delito do doutor Vela era, quando foi cometido, e é hoje, um crime internacional imprescritível”.

Apesar de toda a discussão, que promete continuar, Madrigal admite que a culpabilidade de Vela é um “reconhecimento que parecia impossível”. “O mundo todo sabe que em Espanha se roubaram crianças”, diz. Agora, isso “pôde-se mostrar e sair da escuridão”.

Nos pais biológicos Madrigal já não pensa; a esperança em encontrá-los já se desvaneceu. “O único que pode dizer [quem são os pais biológicos] ou que tem nos seus arquivos é Eduardo Vela. E ele não o vai fazer. Penso que está morta, a minha mãe biológica”, diz. “Actualmente já não penso em encontrar a minha mãe. Só penso em ajudar todos os milhares de vítimas.”

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