observador.ptMaria João Marques - 19 set. 07:44

Nunca se lembram de baixar impostos

Nunca se lembram de baixar impostos

Num país onde abusadores sexuais de crianças têm penas suspensas, há pessoas detidas por venderem bilhetes para o concerto dos U2 pelo preço que outros aceitam livremente comprar. É de loucos.

Como eu sempre digo, não há animal no mundo mais mortífero que um político com imaginação. E os políticos são seres surpreendentes. Podem ser mais cinzentos que o betão, entediantes na retórica, tão vistosos que se confundem com as paredes mais desmaiadas dos edifícios públicos que atravessam, com penteado e fato que nos fazem reviver os anos 90 do século passado, causadores de bocejos em todas as pessoas com quem troquem mais de duas frases – que ainda assim, garanto-vos, são uns génios fervilhantes de criatividade. Em se tratando de impostos (ou de regulamentações que atormentem a vida às populações), os olhos destas personagens brilham intensamente e o político mais amorfo de súbito transforma-se num criativo inexcedível. A originalidade vibrante para inventarem e criarem e sugerirem novos impostos é algo que nunca cessa de me surpreender nestas pessoas que usualmente, por comparação, tornam qualquer manga de alpaca num boémio cintilante.

Por isso não me espanta a fúria de criação de impostos ditos contra a especulação imobiliária. Por um lado, porque é sempre bom criar impostos contra algo que não existe. Pela minha parte, humildemente confesso que não sei o que é a especulação imobiliária. Ao contrário dos investimentos mobiliários, em que é possível através de compras e vendas massivas influenciar momentaneamente o preço de ações, moedas e por aí adiante, nunca vi pessoas ou empresas a comprarem por atacado imóveis e depois açambarcá-los vazios para fazerem subir os preços. Se a oferta é mais ou menos rígida (e é, exceto quando se permite mais construção numa certa zona, e nem sempre é possível), o preço dos imóveis é muito mais determinado pela procura do que pela oferta.

O que tem sucedido em Lisboa e Porto é um natural encarecimento das casas porque de repente os citadinos se lembraram que é cool morar nos centros das cidades (antes fugiam deles como Maomé do toucinho), há prédios ocupados com turismo e porque estamos a sair de uma crise económica forte e é mais que normal que os preços (que caíram bastante) agora subam. Há quem compre e venda pouco depois ganhando dinheiro? E daí? Não foi por isso que os preços aumentaram. Só se consegue vender o que alguém quer comprar.

Mas pronto, inventem-se impostos para satisfazer o ímpeto criativo na hora de taxar da classe política. Que o Bloco de Esquerda – na tentativa de fazer esquecer a sua defesa de Ricardo Robles, a pessoa que fez todo o contrário do que em tom moralista apregoava – proponha taxar mais quem ganha dinheiro com vendas de imobiliário, não espanta. Que o PSD – em moldes ainda misteriosos – lhe siga as pisadas é que era um tudo nada menos previsível.

Não me choca que queiram desonerar quem compra imobiliário numa lógica de investimento de médio/longo prazo, para rentabilizar com arrendamento temporário ou permanente. Afinal, por esse princípio, até 2010 as mais-valias das vendas de ações compradas há mais de um ano não eram taxadas. Se se quer promover a compra de imobiliário para investimento de longa duração, basta aplicar uma medida semelhante, com prazo a definir. Ou diminua-se o IMI dos proprietários ao fim de tantos anos de propriedade do imóvel. Porém, aumentar taxas de IRS sobre as mais-valias de quem compra e vende em pouco tempo é medida bloquista hipócrita retinta. Os partidos respeitáveis não seguem por aí.

Ah, mas isso diminuiria a receita fiscal, e não pode ser, afinal não estamos em estado de brincar às subidas do défice orçamental (verdade!), as finanças públicas são dos poucos pontos em que a governação da geringonça merece créditos e, por fim, nenhum partido tem qualquer ideia viável que leve a uma redução de despesa pública sem gerar ainda mais caos nos serviços públicos (do SNS aos transportes públicos) ou sem reduzir ordenados aos funcionários públicos ou prestações sociais.

Menos ainda querem discutir (e era bem preciso) a segurança social e a forma iníqua como uma geração (a parte dos atuais pensionistas usufruindo de regras benevolentes) captou para si rendimentos de terceiros, recebendo no total das pensões muito mais do que descontou na sua vida ativa.

Já que não há ideias para redução da despesa pública que permita reduzir impostos, pelo menos os partidos à direita deviam retomar (ou, em alguns casos, tomar) em força a defesa da privatização das empresas públicas. A RTP, a CGD, a TAP, as empresas de transportes públicos. E vender imobiliário público atualmente devoluto ou subutilizado (e, quantas vezes, em péssimo estado de conservação). Poderiam até condicionar a futura utilização para arrendamento de longa duração acessível, o que aumentaria a oferta de habitação e desceria as rendas. O valor obtido com a privatizações abater-se-ia na dívida pública, o que diminuiria a despesa com juros.

Mas nada disto é provável. Afinal a criatividade dos políticos portugueses esgota-se na capacidade de inventar impostos.

Nota a propósito de outras alegadas especulações. A ASAE deteve (repito: deteve) 24 pessoas por dita especulação na revenda de bilhetes para o concerto dos U2. Num país onde abusadores sexuais de crianças têm penas suspensas, há pessoas detidas por venderem bilhetes pelo preço que outros aceitam livremente comprar. É de loucos. A lei portuguesa impede-nos de comprarmos bilhetes a um preço que paga não termos tido o desconforto de acordar de madrugada ou dormir ao relento para conseguir comprar bilhetes, ou de nos termos decidido à última hora. Já paguei, lá fora, preços ditos (por cá) especulativos por espetáculos e fiquei sempre muito satisfeita.

Claro que esta aberração da especulação com bilhetes não vai ser retirada da lei. Há que dar trabalho aos inspetores da ASAE. Pelo que sugiro ideias mais rocambolescas. Há uns meses dei (não vendi, dei) a uma amiga dois bilhetes para um concerto na Gulbenkian a que não pude ir. O legislador português que pense contemplar estes casos nas leis anti-dumping.

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