www.publico.ptnarciso.machado@gmail.com - 18 set. 06:50

Processo de canonização de D. Afonso Henriques na historiografia portuguesa

Processo de canonização de D. Afonso Henriques na historiografia portuguesa

Os historiadores, quando tratam das lendas relacionadas com os “milagres” atribuídos a D. Afonso Henriques, costumam citar, sem grandes comentários, um livro que o padre José Pinto Pereira, nascido em Guimarães, publicou, em 1728, em Roma, e a que c

hamou Apparatus Historicus de Argumentis Sanctitatis Regis Alfonsi Henrici (Preparação Histórica da Santidade do Rei Afonso Henriques), onde apresenta dez argumentos para comprovar a santidade do Rei Fundador. Considerando que o tema era desconhecido da grande maioria dos portugueses, tomei a iniciativa de elaborar um pequeno estudo sobre a questão, que veio a ser publicado em março de 2014 e depois, em 2017, reproduzido no livro A Saga da Santidade de D. Afonso Henriques - edição da Fundação Lusíada. 

A obra do padre José Pinto Pereira – Aparato Histórico – é desconhecida não só do grande público, mas até de muitos historiadores. O livro de José Pinto Pereira foi entregue ao Papa Bento XIII e ao nosso rei D. João V, com o objectivo de obter os seus apoios e activar, de novo, os trabalhos para a canonização e promoção do culto a D. Afonso Henriques, um vez que essa tentativa já havia sido feita pelos monges de Santa Cruz de Coimbra. Até à publicação do vol. I da História de Portugal de Alexandre Herculano, em 1846, a maioria da historiografia considerava o milagre de Ourique como facto verdadeiro, defendendo que a constância da tradição reforçava substancialmente essa opinião. A questão da veracidade ou não do milagre de Ourique deu origem a uma acesa polémica que opôs, durante vários anos, Herculano ao clero e a alguns intelectuais da época. Herculano demonstrou que a investigação histórica, como ciência que é, deveria utilizar o método científico, o que exigia determinadas qualidades.

Alexandre Herculano, chamando “fábula à lenda”, contestou a historicidade da aparição de Cristo antes da batalha de Ourique com o fundamento de que “A Vida de S. Teotónio”, escrita no séc. XII por um frade crúzio, contemporâneo da época de D. Afonso Henriques, ao narrar a batalha de Ourique, embora se refira aos cinco Reis Mouros, não regista nenhuma aparição. E a Crónica Geral de Espanha de 1344, do Conde D. Pedro, também não. Por isso é que os autores modernos afirmam que a aparição de Cristo em Ourique é um “acontecimento” que surgiu por razões políticas de nacionalismo.

Todos sabemos que a história portuguesa está escrita com numerosas inexactidões, o que muitas vezes acontece pelo facto do erro, uma vez lançado por autor com alguma audiência, passar de livro em livro, de voz em voz, tornando-se, a partir de certa altura, muito difícil de rectificar.  

Fazer história não é aceitar como verídico todo o rol de informações, nomeadamente o produto de imaginações delirantes. A Idade Média constitui, nesse aspecto, um alfobre de informações deste género. Assim, do outro lado do espelho da história está o imaginário prodigioso português. No inventário das maravilhas religiosas, o leitor encontrará essa outra face da história, recheada de acontecimentos, onde muitas vezes, não é fácil descobrir a verdade da lenda ou a ficção da realidade. Das grandes “maravilhas” nos dão conta não só os mais antigos anais régios, mas também os cronistas das ordens religiosas. Por exemplo, a Monarquia Lusitana, iniciada por Frei Bernardo de Brito (1596) e continuada por outros cronistas da Ordem de Cister, é o lugar onde se depositam os contributos maiores para o perfil virtuoso e heróico de D. Afonso Henriques. É um compêndio de exaltação nacionalista que mergulha na narrativa bíblica desde Noé, com o seu filho Tubal a iniciar o seu périplo pelas nossas costas e a colocar a primeira pedra em Setúbal.

Na galeria dos prodígios da fundação está D. Afonso Henriques, como miraculado, quando tendo vindo ao mundo, tolhido de pés, foi curado por intercepção de N.ª Senhora. A narrativa literária do corpo incorrupto, encontrado na abertura do monumento funerário, em Santa Cruz de Coimbra, é outra parte lógica do maravilhoso associado ao lendário da Fundação.

Assim, as lendas miraculosas explicam a razão pela qual os cónegos de Santa Cruz de Coimbra e Alcobaça, cujos mosteiros D. Afonso Henriques ajudou a fundar, iniciaram o processo de canonização do rei, chegando a enviar a Roma alguns religiosos que mais empenho tinham posto nas suas iniciativas. O padre José Pinto Pereira, com o seu livro, pretendeu ser o continuador desse movimento, mas sem êxito.

Como se vê, ao longo da história, foram várias as tentativas para levar por diante a canonização do Rei Fundador, algumas delas com o apoio real, mas em nenhuma delas foi obtido deferimento na Cúria Romana.

Registe-se o facto singular de, não obstante a inacção de Roma nesta matéria, terem sido exaltadas as virtudes guerreiras, unidas às virtudes geralmente atribuídas a um santo, condição bastante para que os monges de Santa Cruz de Coimbra, apoiados pelos monges de Alcobaça, o tivesses qualificado de bem-aventurado, indo ao ponde de lhe compor uma comemoração formada por uma antífona, um versículo e uma oração, “como se a igreja o houvera catalogado na lista dos santificados”, factos que frei António Brandão assinala no final da III parte da Monarquia Lusitana.

Os textos da antífona (canto alternado de dois coros) e da oração, escritos em latim e a seguir traduzidos, são os seguintes:

Antífona

"Invencível Rei Afonso, corajoso (estrenuo) combatente, defensor santíssimo do nosso Reino, amparado desde criança na fé, pela Beata Virgem, Mãe de Deus, nossa Senhora,  por cujo predição e patrocínio recebeste a saúde dos ossos das pernas; e, quando chegaste à madura idade,  pelas armas da Fé, premunido com o capacete da Esperança e inflamado pelo zelo da Caridade, combateste contra cinco reis mouros e o imperador Miramolim, com insígnias presenteadas, mas com um pequeno exército e, na noite anterior, viste Cristo, nosso Senhor, pregado na Cruz (pela calada da noite) e submeteste a Lusitânia ao jugo da fé e sublimaste o nome do Reino, nós te rogamos, intercede por nós junto de Deus, com as tuas preces para que sejamos puros de espírito, o nosso Reino seja florescentíssimo e protegido de toda a calamidade.

Versículo - Ora por nós, teus servos, invencível Rei Afonso.

Resposta - Para que sejamos dignos das promessas de Cristo"

Oração

"Ó Deus, honra de todos, que concedes liberalidades abundantemente, junto de quem  está o sumo poder dos Homens e dos Reinos e que  entregaste o trono da Lusitânia ao Beatíssimo Rei Afonso e distinguiste neste Mundo com grandes benefícios: concedei, vos pedimos, que, pelos seus méritos, este nosso Reino, os Reis, os Príncipes gozem sempre da tranquilidade e da desejada paz e nós, teus suplicantes, pelos frutos de todas as virtudes sigamos o  exemplo de vida  do mesmo Rei Afonso para que mereçamos também fazer parte, igualmente, da glória.

Por nosso Senhor Jesus Cristo, teu Filho, que contigo vive e reina na unidade do Espírito Santo, Deus, por todos os séculos dos séculos. Amém."

Pretende-se lançar a discussão sobre o tema e levar ao conhecimento público esta outra face de D. Afonso Henriques – beato, herói e santo - tal qual é apresentada ao longo da história.

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