www.publico.ptpublico@publico.pt - 18 set. 06:34

Inconstitucionalidade do sistema eleitoral?

Inconstitucionalidade do sistema eleitoral?

Nuno Garoupa não se fica pela crítica – justa – do sistema atual. Vai mais longe e defende a sua inconstitucionalidade. Aqui, porém, já não o posso acompanhar.

Em dois artigos aqui publicados, Nuno Garoupa veio denunciar a desproporcionalidade do sistema eleitoral português, evidenciada na discrepância entre a percentagem global de votos de cada um dos partidos e o número de deputados eleitos em sucessivas eleições legislativas. Os dados apresentados falam por si e permitem consubstanciar, obviamente, uma crítica certeira ao sistema eleitoral vigente e defender a urgência da sua reforma.

Sabemos, aliás, que os partidos fogem da reforma eleitoral “como o diabo foge da cruz”, apegados que estão ao status quo. Até os pequenos partidos com assento parlamentar, que à direita e à esquerda poderiam beneficiar com essa reforma, evitam o tema, não vá a caixa de Pandora abrir-se e a situação ficar fora de controlo. Mais vale um pássaro na mão do que dois a voar. E nunca se sabe se os dois grandes do “centrão” não se vão juntar, com os seus dois terços dos deputados, para esmagar na secretaria – ou seja, nas páginas do Diário da República – o que nunca conseguiram esmagar nas urnas. O dilema dos pequenos partidos é o do tiro a sair pela culatra: apontar a mira ao reforço da proporcionalidade e sair-lhes, em nome da governabilidade, uma redução ainda maior dessa mesma proporcionalidade.

Sucede que Nuno Garoupa não se fica pela crítica – justa – do sistema atual. Vai mais longe e defende a sua inconstitucionalidade, por violação da proporcionalidade imposta pelo n.º 1 do artigo 149.º da Lei Fundamental. Aqui, porém, já não o posso acompanhar. Por quatro razões – nas quais não incluo sequer o facto de tratar a proporcionalidade como uma regra (quando é um princípio jurídico) e de não reconhecer que há uma diferença entre a proporcionalidade matemática e a proporcionalidade normativa, que é aquela que encontramos na generalidade dos sistemas eleitorais com essa designação.

Em primeiro lugar, a redução da proporcionalidade global do nosso sistema tem duas causas: o método de Hondt – que é fixado pela própria Constituição – e a divisão do Continente em 18 círculos eleitorais de dimensão bastante desigual, correspondentes aos 18 distritos. Círculos muito grandes, como Lisboa, Porto ou Braga. Círculos muito pequenos, como Beja, Évora ou Portalegre. Simplesmente, esta configuração distrital dos círculos é anterior à própria Constituição, que se limitou, nesse ponto, a avalizar o sistema que elegeu a própria Assembleia Constituinte em 1975. O sentido prescritivo do n.º 1 do artigo 149.º é mais negativo do que positivo. Rejeita o sistema maioritário – até por oposição ao velho modelo de eleição da Assembleia Nacional durante o Estado Novo –, sem contudo obrigar o legislador a reformar o sistema utilizado em 1975.

A segunda razão prende-se com a revisão constitucional de 1997, que reduziu o número de deputados de 240/250 para 180/230, sabendo-se naturalmente que, mesmo ficando o número legal de parlamentares pelo limite máximo dos 230, isso teria efeitos negativos no índice de proporcionalidade do sistema (artigo 148.º). E, registe-se, essa redução foi efetuada ao mesmo tempo que se abriu a porta a uma reforma do sistema eleitoral que, todavia, não foi imposta. Em sede de revisão, os partidos não chegaram a acordo sobre um novo modelo de sistema eleitoral, nem sequer sobre se devia ou não ser feita uma reforma do sistema vigente. Em particular, admitiu-se um círculo nacional de compensação, mas a sua criação ficou em aberto. Foi tudo remetido para posterior decisão do legislador ordinário, deliberando por maioria qualificada, e assim continua até hoje.

Em terceiro lugar, a Constituição valoriza a estabilidade governativa, que, naturalmente, sai prejudicada por uma proporcionalidade absoluta ou matemática. Essa valorização extrai-se de uma interpretação sistemática das regras relativas à responsabilidade do governo perante a Assembleia da República, que protegem a formação e a subsistência de governos de maioria relativa (e até minoritários). A desnecessidade de aprovação do programa do Governo – que pode ser votado, mas não precisa de o ser – é apenas a nota mais evidente dessa valorização da estabilidade governativa.

Finalmente, importa sublinhar que o artigo 149.º da Lei Fundamental não prevê apenas uma proporcionalidade, mas sim duas: num primeiro momento, proporcionalidade na fixação prévia do número de deputados a eleger por cada círculo; num segundo momento, proporcionalidade na conversão dos votos em mandatos, operação que se faz círculo a círculo, para garantir a representatividade das diferentes parcelas do território. E, neste ponto, a única novidade dos últimos anos é a tendência de redução do peso dos círculos eleitorais já originalmente mais pequenos, por via da deslocação geográfica dos eleitores do interior para o litoral. Ainda assim, a menor proporcionalidade interna dos círculos mais pequenos acaba por ser compensada pela maior proporcionalidade interna dos círculos maiores, já que estes continuam a crescer em população e deputados.

Tudo visto e ponderado, apesar de antigo, o sistema não está assim tão bloqueado, já que tem vindo a permitir a entrada no Parlamento de novos partidos: o PSN, em 91, o BE, em 99, e o PAN, nas últimas eleições. Nem a sua matriz proporcional pode ser posta em causa pelo compromisso que encerra relativamente à estabilidade governativa e à representatividade territorial do Parlamento.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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