ionline.sapo.ptAlfredo Barroso - 17 set. 10:41

O golpe de Pinochet no Chile e a contra-revolução neoliberal

O golpe de Pinochet no Chile e a contra-revolução neoliberal

Como escreveu a jornalista canadiana Naomi Klein, o Chile marcou a génese da contra-revolução ultraliberal, nascida no terror

Passaram 17 anos sobre o criminoso e espectacular ataque às Twin Towers, em Nova Iorque, no dia 11 de Setembro de 2001. Mas não mereceu idêntico relevo a passagem de 45 anos sobre o ainda mais sangrento golpe de Estado militar ocorrido em 11 de Setembro de 1973, no Chile, chefiado pelo general Augusto Pinochet, com o apoio do presidente dos EUA Richard Nixon, do secretário de Estado Henry Kissinger, da CIA e, como é óbvio, das plutocracias norte-americana e chilena. E, no entanto, este golpe de Estado militar, que provocou imediatamente cerca de 30 mil vítimas e impôs uma ditadura que iria durar cerca de duas décadas – baseada no terror, na tortura e na morte de milhares de opositores, e no exílio de cerca de 200 mil chilenos –, deu igualmente origem à primeira experiência de aplicação, pela força bruta, da contra-revolução neoliberal.

“A contra-revolução neoliberal tem sido essencialmente antidemocrática” – afirmou Paul Krugman, Prémio Nobel da Economia. “De facto, nenhuma maioria de eleitores desejaria ver reduzida a cobertura social que protege a generalidade dos cidadãos numa sociedade democrática. De forma alguma. O único meio de forçar a mão ao povo é levá--lo a acreditar que não há alternativa”, explicam Bertrand Rothé e Gérard Mordillat num livro intitulado “Não Há Alternativa, Trinta Anos de Propaganda Económica”.      

Na sua obra matricial, “Capitalism and Freedom”, Milton Friedman explica-nos que, sendo a obtenção do lucro a essência de uma democracia neoliberal, todo o governo que ponha em prática políticas contrárias ao mercado comporta-se de forma antidemocrática – sendo irrelevante o apoio de que goze por parte de uma população esclarecida.

Foi esta visão absolutamente perversa da democracia que fez com que Milton Friedman e Friedrich Hayek apoiassem activamente o sangrento golpe de Estado militar do general Pinochet no Chile – que derrubou o governo de Unidade Popular do presidente Salvador Allende, democraticamente eleito –, dado que esse governo legítimo estava a interferir no controlo dos negócios da sociedade chilena, o que era intolerável para os plutocratas chilenos e norte-americanos com importantes interesses no país.

Friedrich Hayek foi mesmo ao ponto de declarar, em defesa do sinistro ditador Augusto Pinochet, o seguinte: “Pessoalmente, prefiro uma férrea ditadura liberal a um governo democrático completamente alheado do liberalismo.” Foi essa “ditadura liberal”, brutal e selvagem, que os Chicago boys de Milton Friedman ajudaram a sustentar durante 15 anos, ao transformarem o Chile de Pinochet no primeiro grande laboratório experimental das políticas preconizadas por Hayek e Friedman, de acordo com a “santíssima trindade” formulada na obra matricial de Friedman, “Capitalismo e Liberdade”: privatização, desregulamentação e redução das despesas sociais.

Como escreveu Naomi Klein no livro “The Shock Doctrine, The Rise of Disaster Capitalism”, o Chile marcou a génese da contra-revolução ultraliberal, nascida no terror, que pretendia ser “uma verdadeira revolução, um movimento radical rumo à liberalização total dos mercados”, como escreveu o Chicago boy chileno José Piñera, ministro do Trabalho e das Minas do governo de Augusto Pinochet.

O resultado do “tratamento de choque”, que o próprio Milton Friedman foi ao Chile aconselhar a Pinochet – uma “orgia automutiladora de reformas”, como salientaria a insuspeita revista “The Economist” – traduziu-se num brutal “empobrecimento” (noção que viria a ser tão cara a Passos Coelho, em Portugal) com o objectivo de empurrar o Chile até à “liberalização completa dos mercados”, causando enorme aumento do desemprego (que os Chicago boys diziam ser apenas “provisório”) e desmantelando o Estado social, no intuito de provocar o nascimento de uma “utopia capitalista pura”.

O ano crucial foi o de 1975, quando a inflação já atingira os 375% (mais do dobro do que durante o governo de Allende). O balanço era simplesmente aterrador. As despesas do Estado foram reduzidas, de uma só vez, em 27%. Saúde e educação foram os sectores mais duramente atingidos (uma das medidas mais emblemáticas foi a de acabar com o fornecimento de leite às escolas). A rede de escolas públicas foi substituída por escolas privadas, à la carte, às quais só se tinha acesso com “cheques de ensino”. Os serviços de saúde foram submetidos à regra do “utilizador pagador”. Os jardins-de-infância e os cemitérios foram vendidos ao sector privado. Mas a medida mais radical foi a privatização da segurança social. Além disso, mais de 500 bancos e empresas públicas também foram privatizados pelo preço da chuva. Inúmeras empresas locais foram destroçadas e, entre 1973 e 1983, o sector industrial perdeu 177 mil postos de trabalho. Cerca de metade da população chilena foi pura e simplesmente excluída da economia. A fraude, a corrupção e o compadrio escaparam a qualquer controlo. Pequenas e médias empresas públicas foram dizimadas. A riqueza passou do sector público para o sector privado, enquanto os passivos passaram do sector privado para o sector público. Aconselhado por Friedman e pela sua ignominiosa e corrupta quadrilha de Chicago boys, o ditador Pinochet mergulhou deliberadamente o Chile numa profunda recessão.

Claro que os únicos beneficiários das reformas ultraliberais executadas no Chile pelos Chicago boys locais – designadamente pelo seu chefe de fila, o ministro das Finanças Sergio de Castro (antigo discípulo de Milton Friedman em Chicago) – foram as grandes empresas norte-americanas e um grupo de financeiros oportunistas, a que os chilenos chamavam “piranhas” e que nunca se cansaram de ganhar, à custa de uma especulação desenfreada, milhões e milhões, partilhando-os com os Chicago boys estrangeiros e locais. O resultado das reformas ultraliberais só podia ser, como de facto foi, o de sugar a riqueza de baixo para cima e, à custa dos sucessivos choques, empurrar a classe média de cima para baixo, ou seja: para o desemprego e a despromoção social.

A lógica neoliberal do tratamento de choque (semelhante ao que a troika e o governo de Passos Coelho impuseram a Portugal entre 2011 e 2015) fez Naomi Klein evocar, no seu livro acima citado, o “parentesco” impressionante com a lógica dos psiquiatras que, nas décadas de 1940 e 1950, estavam convencidos de que bastaria provocar as crises de epilepsia para que o cérebro dos pacientes voltasse a funcionar “normalmente”. Para tanto, esses psiquiatras prescreviam o recurso massivo aos electrochoques – tal como os tratamentos de choque que Milton Friedman e, depois, a UE, o BCE e o FMI, ou seja, a troika (em Portugal com apoio do anterior governo de direita), receitaram e continuam a receitar aos países periféricos em sérias dificuldades. Como nessa altura descreveu a também insuspeita revista “Business Week”, o que se viu no Chile foi “um mundo digno do doutor Strangelove, onde a depressão foi provocada deliberadamente”.

As propostas de Friedman eram de tal maneira brutais e desumanas que um seu antigo discípulo, André Gunder Franck, escandalizado com todo o horror que testemunhou no Chile, escreveu que tais propostas “nunca teriam podido ser aplicadas sem os dois elementos--base em que se apoiavam: a força militar e o terror político”. Eu diria, sem constrangimentos ou papas na língua, que foram estes dois elementos-base que, por felicidade, faltaram em Portugal, entre 2011 e 2015, para criar um cenário tão aterrador, irracional e dantesco não só como o do Chile, mas também como o da Argentina, do Brasil e das outras ditaduras militares sul-americanas que, nesse mesmo período, foram igualmente “aconselhadas” pelos Chicago boys de Milton Friedman.

Falta ainda referir uma cena caricata e patética. Há poucos anos ficámos a saber que Friedrich Hayek, o “profeta” venerado pelo general Pinochet e por Margaret Thatcher, não aceitou visitar os EUA em 1973 – a convite do milionário norte-americano Charles Koch, um dos pilares do desmantelamento do Estado-providência – por ter medo de perder os seus direitos à segurança social no seu país, a Áustria. Hayek – que nos seus discursos e palestras proclamava que a segurança social era “essencialmente um absurdo” que urgia banir – explica com detalhe, na correspondência que trocou com Charles Koch, os benefícios sociais a que tinha direito e que não queria arriscar-se a perder. Para além da hipocrisia pessoal, o que aqui se manifesta é a hipocrisia de um discurso que consiste em fazer crer às pessoas que se pretende proteger a sua responsabilidade e a sua liberdade de escolha quando elas são despojadas dos seus direitos sociais e do seu dinheiro, que vai encher os bolsos da ínfima minoria dos mais ricos do planeta, nunca chegando a ter autêntica liberdade de escolha, por mais responsáveis que sejam.

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

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