observador.ptVicente Ferreira da Silva - 18 set. 00:07

Senciência e direitos

Senciência e direitos

Em vez de perderem tempo a equipararem os animais aos homens, seria muito mais útil equacionar medidas de educação para a responsabilidade acrescida que os homens possuem relativamente aos animais.

A convivência em sociedade é de tal forma complexa que originou a criação de diversos mecanismos. Um desses instrumentos são os deveres e os direitos, elaborados para regular a relação social humana. E a complexidade do relacionamento humano é de tal ordem que a sua evolução já desenvolveu cinco dimensões. Independentemente do grau considerado, cidadania é o conjunto dos deveres e dos direitos pelo que nenhum homem tem direitos sem ter deveres.

Um dos debates que está a emergir na sociedade é a relação entre os homens e os animais. Naturalmente, relaciona-se (e bem) com o tratamento dado aos animais. Neste âmbito, há quem defenda que os animais são titulares de direitos. Mas que tipo de direitos? E tendo direitos, quais são os seus deveres?

Para todos efeitos, os animais não se relacionam como os homens. Nem no modo, nem no tipo, nem, principalmente, na convivência. Assim sendo, terão os animais direito à propriedade, à liberdade de expressão, à liberdade de religião, à participação política, à educação, à autodeterminação, à informação e à democracia? É muito fácil fazer considerações na terceira pessoa, como, por exemplo, os animais são todos iguais. Mas, considerar-se-ão os animais iguais? Se um homem cometer um homicídio, é julgado e condenado pelos seus pares. Que sucederá se um animal matar outro animal? Será este «animalída» desconsiderado e condenado pelos restantes animais?

Para além das falências inerentes a esta posição, extrapolar as regras de convivência humana para o contexto relacional dos animais traduz uma dupla desconsideração. Não somente para os animais como igualmente para nós. Aliás, tal atitude não é apenas arrogante. É nociva. Atribuir uma característica humana a algo que não o é não só diminui a sua dignidade como também constrange a sua condição.

O argumento da senciência está na base deste debate. Pessoalmente, não tenho qualquer dúvida que os animais são sencientes. Porém, estaremos a falar do mesmo nível de senciência? Não estaremos a ser novamente arrogantes ao equiparar níveis de senciência? Creio que a questão não será tanto a capacidade de sentir e sim uma faculdade de autoconsciência.

A utilização do fundamento da senciência por parte dos defensores dos animais, incluindo o PAN (Pessoas-Animais-Natureza), é interessante. Por que razão é válido para os animais e não é para as plantas? Já foi amplamente demonstrado que as plantas podem ver, ouvir, cheirar e tocar, mesmo sem os órgãos usualmente associados a estes sentidos. E que para além disso, possuem outros sentidos exclusivos à sua forma e condição. Os estudos mais recentes na área da neurobiologia vegetal, desenvolvidos, entre outros, por Stefano Mancuso, revelam que as plantas processam informação, dormem, recordam e que comunicam umas com as outras. Por outras palavras, as plantas são inteligentes e conscientes. Convenientemente, os defensores dos animais pouco dizem sobre esta realidade. Não é difícil perceber porquê.

O comportamento dos defensores dos animais merece mais duas observações. Primeiro, são contra o derramar do sangue dos touros. E muito bem! Contudo, festejam o sangue dos toureiros, que insultam alegremente. Esta postura é inexplicável e incoerente. É vergonhoso ver pessoas a congratular-se com as mortes dos toureiros. Como se uma morte fosse motivo de alegria ou de compensação? Não aceitam o sangue dos animais, mas toleram o sangue dos homens. Não sei como há quem se admire por o homem ser um animal sanguinário? Segundo, a inevitabilidade da escolha. Já tive a oportunidade de questionar alguns destacados membros do PAN. Perante alimentar os meus filhos ou os meus animais de estimação não há escolha possível. Para mim, é claro. Para eles não sei. Nunca verbalizaram a resposta.

Voltando ao tema em reflexão, não questiono qualquer direito natural dos animais. Pergunto-me é se os deveres e os direitos humanos serão aplicáveis a outras realidades? Não sendo os animais homens, humanizar o animal não é a resposta. Animalizar o animal é que o será. Transpondo o pressuposto para as nossas circunstâncias, teremos de humanizar o humano em vez de animalizar o humano. O que é urgente e necessário é humanizar os homens. Incluindo os defensores dos animais!

Em vez de perderem tempo a seguir este tipo de caminho – a equiparação dos homens aos animais ou vice-versa – seria muito mais útil equacionar medidas de educação para a responsabilidade acrescida que os homens possuem relativamente aos animais, particularmente quanto aos de estimação, e elaborar algo como o «Estatuto da Animália»que expresse o regime de excepção devido aos animais. Não como titulares de direitos, mas como recipientes das responsabilidades que lhes é devida.

Os direitos implicam responsabilidade e responsabilização. Não podem ser os animais a assumi-la.

Post Scriptum. Nos últimos três anos foram registados 742 ataques de cães na via pública [2016 – 258; 2017 – 253; 2018 (até 4 de setembro) – 231]. Com o fim do abate pelos canis, prevê-se que o número de cães vadios nas ruas aumente consideravelmente.

Politólogo, Professor convidado EEG/UMinho

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