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Eça é que é Eça

Eça é que é Eça

Estava eu ontem muito bem na salinha de estar, já refastelada no sofá com os gatos ao colo e a descascar ervilhas quando ouvi dizer no telejornal uma notícia que me deixou desvastada: então não é que diz que vão deixar de obrigar os miúdos a ler Os Maias na escola?

Desvastada é pouco, é fiquei foi pra morrer. Os Maias, senhores, Os Maias!

Não conheço, nunca li, não sei do que trata, mas acho muito mal esta moda nova de a gente facilitarmos muito o ensino. "Ai que as crianças estudam muito", "ai que têm muitos trabalhos de casa", "ai que obrigam a ler muita coisa!" Pois é isso mesmo que faz parte de ser estudante, e um país só anda prá frente se a gente prepararmos os nossos jovens. Ou não é?

No meu tempo, a gente saíamos da quarta classe a saber mais do que eles hoje saem das universidades. Ah pois é!

Qual é o médico da Caixa, assim miúdo para quarenta anos, que sabe de cor o nome das serras de Portugal, dos afluentes do Douro, do Tejo e do Sado, das estções e apeadeiros da linha do Tua, os indicativos regionais dos telefones da zona de Lamego, os meses do ano em que o feijão pega de estaca e quantos quilos de sardinha se vendem todos os dias na lota de Leixões? Nenhum. Hoje é tudo mais à base da internet. Eles já nem sabem pensar, o raio dos miúdos.

A gente, aos nove anos, já os meus irmãos trabalhavam e não era pouco. E as minhas irmãs mais novas mais eu já sabíamos tratar de uma casa, apanhar lenha e fazer um ensopado do que houvesse. Agora é só as consolas e os computadores. Ora se isto é progresso, vou ali já venho. É natural que depois não estejam preparados para a vida.

E estes é que são os nossos políticos de amanhã. Como é que se pode governar um país quando nem se sabe escrever o nosso número de telefone em numeração romana?

Os meus filhos, graças a Deus, ainda aprenderam na escola a fazer um cabide de parede em metal, uma gaiola de grilos em madeira, uma toalha de chá em macramé, uma lanterna com uma lâmpada do tamanho da cabeça de um dedo, uma almofada para alfinetes em ponto-cruz e um bicho em barro que não se percebe muito bem o que é, mas que eu pus em cima do frigorífico a fazer de conta que é um pinguim. Agora os meus netos?  Eu tenho pra mim que nem sabem a diferença entre uma couve e uma alface.

Bem sei que o mundo mudou, é verdade. Mas acho que não é a adaptar as coisas que lhes ensinamos ao mundo novo que a gente os preparamos para ele. Digo eu.

Se a gente não obrigarmos os miúdos a ler livros de setecentas páginas, que parece que é o que Os Maias tem, como é que eles não futuro havão de gostar de ler?

É verdade que eu tenho uma sobrinha que é filha da minha irmã mais nova a que casou com aquele meu cunhado que tem um stander de automóveis em segunda-mão, quando não é terceira e quarta, e que estão muito bem graças a Deus e por acaso aquilo até já é dinheiro de família que o pai dele tinha pra cima de três traineiras e era quem abastecia de choco aquaise todos os restaurantes de Setúbal, que é uma terra onde levam muito em gosto comer aquilo frito com batata e um molho que parece maionese só que não é, é daquelas coisas que a gente tentamos fazer igual em casa mas que sai sempre mal. Não sei se já tinha falado desta irmã, tenho ideia que sim, mas se não prontos, agora também já falei.

Ora a minha sobrinha é professora de Português, que ela tirou línguas e literaturas modernas, o que lhe assenta que nem uma luva que se há coisa que ela é, é moderna. Não só usa assim aqueles brincos que são, faz de conta, umas penas e o cabelo mais assim à base do apanhado atrás com um elástico como até vota no Bloco de Esquerda. Aliás, ela é tão moderna que quando tinha uns dezassete, vá dezoito anos, pregou um grande susto à minha irmã, e fugiu mais uma estrangeira que andava naquela escola de circo ali ao Castelo e abalaram as duas no comboio do interraile ou prá Suíça ou prá Suécia, isso agora já não tenho presente, só sei dizer que aquilo foi um bico de obra que a outra depois não a queria deixar vir embora, que já se sabe como são essas mulheres. Mas prontos, lá assentou e agora até já é casada e tem dois gaiatos e dá aulas numa C + S, parece-me que é Vitor Menésio ou assim, que acho que era um fadista, daqueles dos antigos, não é destas agora modernas, que ainda não são nomes de escolas por via de ainda estarem vivas, graças a Deus.

Bom: explicou-me a minha sobrinha que afinal diz que Os Maias não se vai deixar de ensinar. O que é que agora, para além de Os Maias, os professores podem escolher assim outros livros do Camilo Castelo Branco, não tem mesmo de ser só esse. Ela lá me deu uma data de nomes, mas o único que apanhei foi O Crime do Padre Américo, que eu confesso que nunca li, mas vi o filme e mais o seriado e até parece que tenho ideia de ter acompanhado qualquer coisa na televisão na altura. O que é que isto agora é tanto julgamento que a gente não damos conta de tudo.

No ver dela, é uma coisa boa os professores poderem escolher outros livros do mesmo autor, assim umas coisas mais divertidas, diz ela, ou que despertem nos miúdos mais o gosto pela leitura, que depois diz ela que leem por eles as coisas que agora lhes enfiam por a garganta abaixo. Foi mesmo assim que ela falou. Que grande disparate, afinal, andou a minha sobrinha a estudar tanto ano para dizer estas coisas...

A escola não é lugar para experiências, que isso até dá cabo da cabeça dos miúdos. É bom a gente ensinarmos aos filhos o mesmo que os pais aprenderam, e os avós, que senão depois uma pessoa até fica sujeita a não ter assunto para falar ao jantar.

Eu, por exemplos, desde que aprendi, não há nada que mais goste do que é ler.

Porque a vida sem a gente ler é um deserto. Não há nada mais triste que uma pessoa pegar num folheto do Continente, já depois de pagar as compras, e ver que acabámos de mandar quinze euros de descontos para o galheiro.

A gente devemos ler, sempre. Essa é que é Essa.

Com licença.  

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