observador.ptPaulo Tunhas - 19 jul. 07:24

O presente

O presente

Uma vez designados os agentes do Mal, definidos como os que põem as nossas crenças em questão, dispensamo-nos de analisar o que dizem e de avaliar a eventual razão que, num ponto ou noutro, possam ter

Pode, é claro, ter a ver com uma percepção pessoal das coisas, idiossincrática e mais ou menos passageira, sem grande correspondência com a realidade. É uma hipótese que não pode nunca ser completamente descartada. Mas, francamente, não me parece que seja isso. O que me parece mesmo é que as vozes que se ouvem à nossa volta, o que elas dizem, a maneira como o dizem, e a maneira de pensar que revelam, mostram, no seu conjunto, que vivemos tempos em que a saúde intelectual é um bem escasso e praticamente sem eco público. Em contrapartida, o triunfo do aproximativo, do alusivo, do falsamente significativo e do histrionismo das convicções encenadas tornou-se a moeda corrente do debate público.

Foi sempre assim? Parcialmente, talvez. Mas nunca com o grau de intensidade que hoje em dia se vê e que quase obriga, mal se liga a televisão, a desligá-la e a procurar refúgio em actividades mais salubres. As maneiras de pensar correntes, qualquer que seja o objecto em que incidam, transmitem imediatamente, e quase sem excepção, o odor enjoativo e malsão da estupidez, da inconsciência e da desonestidade e barram o caminho a qualquer uso, por precário que seja, da racionalidade  e da boa fé. Se não nos armarmos com um arsenal de prudências  de toda a espécie, o efeito arrisca-se a ser letal. Em parte por causa disto, apanhei-me no outro dia a fazer uma pequena lista de algumas maneiras de pensar que contribuem decisivamente para essa atmosfera. A lista, é claro, está longe de ser exaustiva e pode muito bem acontecer que os elementos que a constituem não tenham entre si qualquer relação interna muito forte, embora o meu sentimento seja exactamente o contrário: o de que eles formam um magma que retrata algo de essencial ao tempo presente. Seja assim ou não, ofereço alguns exemplos que ficam por uma descrição geral, sem grande preocupação de ilustrações concretas. Se os exemplos são bons e pertinentes, não custará a quem me ler encontrar factos que que lhes correspondam com maior ou menor acerto.

Comecemos pelo corrente uso imoderado das analogias históricas. É verdade que todo o pensamento, em qualquer domínio que seja, a começar pelos aspectos aparentemente mais insignificantes da nossa vida quotidiana, requer uma atenção simultânea às semelhanças e às diferenças. E é verdade também que os indivíduos, incluindo grandes espíritos das ciências, manifestam uma habilidade particular para uma atitude ou outra. Há um génio particular em detectar analogias entre fenómenos aparentemente díspares, tal como há uma virtude indisputável em descobrir o irredutivelmente singular em certos acontecimentos. A história é, naturalmente, um terreno de eleição para o exercício de um talento e de outro. O problema aparece quando uma qualquer das duas atitudes ganha uma preponderância absoluta sobre a outra ao ponto de não ser sequer necessário justificá-la. Ora, nos nossos dias é o uso imoderado das analogias que prevalece. A acreditar na sabedoria mediática, apoiada na doutrina partilhada por um vasto número de pensadores mais ou menos subtis, estaremos nos nossos dias a viver as condições singularmente trágicas dos anos trinta do século passado. Explora-se tudo o que possa exorbitar as semelhanças, elide-se sem hesitação aquilo que possa apontar para as diferenças. O resultado, como não poderia deixar de ser, é uma versão distorcida da realidade. Que ela resulte de má-fé ideológica ou de pura e simples preguiça de pensar, é indiferente. O que importa é que a maneira de pensar dominante funciona como um obstáculo poderoso ao exercício da nossa capacidade de pensar o mundo que nos rodeia.

Este delírio das analogias vem acompanhado, sem contradição alguma, de um desejo feroz de eliminar o passado considerado como criação de mundos singulares dotados de sistemas de crenças próprias e de sentidos específicos. Não se trata apenas de justificar a nossa distância por relação a esses mundos com base em critérios éticos ou políticos de justeza variável mas inteiramente legítimos. Trata-se mesmo de os procurar abolir, de os fazer entrar numa não-existência julgada necessária pela sua suposta incompatibilidade lógica com o presente, excepto nos casos em que o presente prolonga (por pouco tempo, espera-se) o seu arcaísmo. Que essa visão das coisas resulte de uma absoluta ignorância do que é a história e, mais profunda e gravemente, do que são as sociedades, não passa pela cabeça dos empreendedores do Bem. Como não lhes passa pela cabeça que tal atitude, na medida em que se recusa a aceitar a continuidade que estrutura a experiência humana (inclusive na sua capacidade para a criação do horror), anula as próprias condições necessárias para a existência de juízos morais e a possibilidade de pensar, sempre problematicamente, o progresso.

A versão mais caricata desta atitude exprime-se, como se sabe, no afã sempre renovado da criação de novas regras de etiqueta linguísticas. Como muita gente não deixou de o notar, o ridículo da coisa não nos deve cegar para a monstruosidade que por detrás dela se esconde. Não que o “processo da civilização” não passe em parte por aí. O problema todo está no furor ignorante que subjaz à sua realização, na intolerância e no fanatismo infantil da exigência de unanimidade que tal atitude implica.

Tudo isto tem a ver com a superficialidade. Tudo o que há de substantivo, mesmo o substantivo que as condições limitadas de cada sociedade nos permitem pensar, é posto entre parênteses. Fala-se como se um certo número de ideias gozassem de uma evidência indesmentível e de uma bondade acima de qualquer suspeita, esquecendo-se propositadamente ou, mais uma vez, por ignorância e radical falta de imaginação, os abismos sobre os quais elas se constroem. A crença é de tal modo uniforme que gera reflexos pavlovianos. Uma vez designados os agentes do Mal, definidos como aqueles que põem as nossas crenças em questão, dispensamo-nos de analisar o que eles dizem e de avaliar a eventual razão que, num ponto ou noutro, possam ter. O contágio da opinião é absoluto, qualquer dissenção, por mais parcial e pacata que seja, é sinal de um sórdido pacto com o demónio. Sem surpresa, este tipo de atitude traz consigo o benefício de esconder a fragilidade das nossas próprias crenças, e essa sua função não é despicienda. Viver em luta contra o demónio protege-nos de qualquer consciência dos nossos pecados próprios e dos nossos erros pessoais. E nunca foi impossível viver, por períodos de tempo relativamente extensos, mergulhado na irrealidade. Quanto às consequências, é outra coisa. Mas a vida na irrealidade tem a indiscutível virtude de nos desviar os olhos delas.

Poderia continuar com vários outros exemplos, mas não é necessário. É possível, quase certo, que sempre tenha sido assim e que nada disto represente uma singularidade do presente. Mas que no presente estas maneiras de pensar representam bem certas tonalidades características da nossa vida em comum parece-me dificilmente negável. E que elas só nos podem conduzir a dissabores futuros ainda menos.

NewsItem [
pubDate=2018-07-19 08:24:53.0
, url=https://observador.pt/opiniao/o-presente/
, host=observador.pt
, wordCount=1137
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2018_07_19_1820333422_o-presente
, topics=[opinião, crónica]
, sections=[opiniao]
, score=0.000000]