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Opinião. O medo e a culpa: as estratégias manipuladoras da opinião pública nas migrações

Opinião. O medo e a culpa: as estratégias manipuladoras da opinião pública nas migrações

Combinar, de forma humanista e serena os imperativos humanitários com as regras da democracia política é o que tem faltado aos políticos europeus. Urge fazê-lo.

1. Qualquer observador atento do debate público europeu sobre as migrações em massa já se apercebeu das representações manipuladoras que dominam os media. Paradoxalmente, há um objectivo partilhado pelos dois grupos que mais polarizam e radicalizam o debate e se confrontam como inimigos. Um quer encerrar as fronteiras a qualquer fluxo, seja de refugiados ou de migrantes económicos; o outro quer mantê-las abertas a todos os que vêm do exterior, sejam também refugiados ou migrantes económicos, igualizando ambos os casos. Com a sua retórica estridente, impedem uma abordagem ponderada ao problema, equilibrando os ideais humanitários com as múltiplas consequências dos fluxos migratórios de massas numa comunidade política soberana e democrática. Impedem, desde logo, que os casos dos refugiados (os que fogem das guerras e das perseguições, sejam elas políticas, religiosas ou étnicas) e dos migrantes económicos (aqueles que procuram uma vida melhor na Europa devido à pobreza e miséria), sejam adequadamente tratados, tendo em conta as especificidades de cada um. Ambos, à sua maneira, procuram confundir a opinião pública com um turbilhão de imagens e relatos centrados em facetas parciais, ou seja, usando imagens e relatos selectivos, os quais obscurecem, deliberadamente, a complexidade do problema. Assim, cria-se um ambiente favorável a medidas tomadas ao sabor das emoções.

2. Este ambiente confuso e permanentemente emotivo serve, como já notado, perfeitamente os fins políticos de ambos os grupos — que para uns é “todos fora” e para outros é “todos dentro”. Na realidade, ambos sabem que, em condições normais, não têm o apoio da grande maioria da população, a qual não se revê em tais posições extremas. E que se não criarem a ideia de um permanente estado de crise — num caso securitária, noutro humanitária —, não conseguem projectar as suas agendas nas decisões políticas. Neste momento, a batalha da manipulação das emoções está a pender, visivelmente, mais para o lado que pretendem fechar as fronteiras externas da União Europeia, e de uma forma bem notória em Itália. Estamos agora numa espécie de anticlímax da batalha das emoções de 2015. Nessa altura, oscilou para uma abertura mais ou menos irrestrita aos fluxos de refugiados/migrantes económicos na Alemanha. Na batalha para conquistar/instrumentalizar a opinião pública, foram criados, deliberadamente, estereótipos sobre os refugiados/migrantes, os quais facilitam a prossecução da agenda política junto da opinião pública e governos. Esses estereótipos são construídos recorrendo a dois sentimentos poderosos: o medo e culpa. É necessário desconstruir, previamente, essas estratégias manipuladoras para chegarmos a uma abordagem equilibrada — um humanismo politicamente realista, como explicarei no final.

3. A primeira estratégia de manipulação da opinião pública recorre aos sentimentos de insegurança de medo (objectivo: “todos fora”). Reaviva preconceitos do passado europeu de hegemonia no mundo, de superioridade ou menosprezo face a outros povos. Tenta criar um quadro mental de permanente de estado de emergência securitário na opinião pública. O seu uso, para mobilizar a população com uma determinada finalidade, é um clássico da política. Em qualquer comunidade humana, os sentimentos colectivos de medo, de receio e de insegurança são poderosos. O migrante/refugiado é assim representado como trazendo fundamentalmente males para a Europa, que, supostamente, não existiam antes, ou não eram um problema de relevo. Com este, aumentam, assim, a criminalidade e o terrorismo (ver “Violence Erupts in Sweden as Ethnic Groups Clash in Race Riots” in Sputnik, 25/06/2015). Não é alguém que quer ganhar a sua vida e viver pacificamente, mas vem atraído pela prosperidade europeia, quer apenas aproveitar-se dela. Vem com vontade de espalhar a sua cultura e religião (sobretudo o Islão) e dominar, não de integrar-se e respeitar os valores da sociedade de acolhimento. (Ver “Intelligence expert warns thousands of ‘Muslim soldiers’ are ready to ‘ATTACK’ Europe in Daily Express, 5/10/2016). É uma sobrecarga para o Estado-social com as suas famílias numerosas a seu cargo, as quais não contribuem para a sustentabilidade de um sistema já sujeito a dificuldades. (Ver Hans-Werner Sinn, “Europe’s welfare states wake up to the danger of immigration in Market Watch”, 27/01/2016). Traz conflitos com as populações locais e degrada culturalmente a sociedade. (Ver “‘I’ve Become a Racist’: Migrant Wave Unleashes Danish Tensions Over Identity” in NYT 5/09/2016). Esta estratégia tem particular ressonância em todos aqueles predispostos a acreditar que o mal está (quase sempre) fora do seu grupo nacional/cultural (e também naqueles que no seu grupo “se recusam a ver esse perigo”).

4. A segunda estratégia de manipulação da opinião pública recorre aos sentimentos de responsabilidade moral e de expiação da culpa (objectivo: “todos dentro”). Apoia-se num preconceito de simpatia pelo não-europeu/não-cristão, idealizado como vítima e oprimido. Tenta criar na opinião pública um quadro mental de “emergência humanitária” permanente. Explora o sentimento de culpa pós-colonial instalado a partir da segunda metade do século XX. Incute a ideia de que quase todos os males do mundo, especialmente no Médio Oriente, Sul do Mediterrâneo e África são responsabilidade dos europeus/ocidentais (ver “It's 34,361 and rising: how the List tallies Europe's migrant bodycount” in Guardian). Joga com os contrastes, riqueza/pobreza, entre o Norte e o Sul do Mediterrâneo e com o sentimento de culpa incutido pelo Cristianismo, agora metamorfoseado num humanitarismo secular radical. Os migrantes/refugiados são “heróis” contemporâneos que repetem a Odisseia de Homero da Antiguidade Clássica. (Ver “Los Ulises del siglo XXI” in El País, 17/06/2018). Assim, salvar os refugiados é salvar uma Europa sem heróis, corrompida pelos “pecados mortais” do materialismo e do populismo. (Ver George Soros, “Saving Refugees to Save Europe” in Project Syndicate, 12/09/2016). Nos migrantes/refugiados está a solução para os problemas económicos e demográficos da Europa, rejuvenescendo-a, garantindo a sustentabilidade do Estado-social e fornecendo a mão-de-obra que o mercado de trabalho necessita. (Ver “Immigration Is Good for Economic Growth. If Europe Gets It Right, Refugees Can Be Too” in HuffPost, 15/09/2015). A estratégia tem particular ressonância em todos aqueles predispostos a acreditar que o mal está (quase sempre) dentro do seu grupo nacional/cultural (e também naqueles que “não vêem o mundo altruisticamente como eu”).

5. A actuação das Organizações Não Governamentais (ONG) na tragédia migratória do Mediterrâneo mostra como se pode radicalizar um problema, pelo lado da culpa, ou pelo lado do medo. As ONG têm o nobre ideal de socorrer e resgatar migrantes e refugiados do naufrágio e outras calamidades. Indiscutivelmente, é louvável a sua actividade. Salvam vidas humanas e devem, por isso, ser respeitadas. Ao mesmo tempo, não se pode deixar de olhar para o todo do problema, nas múltiplas implicações. Essas travessias do Mediterrâneo não são espontâneas, nem feitas de forma isolada, por indivíduos ou famílias. Na grande maioria são casos de migrações organizadas e/ou exploradas por redes criminosas (ver o Joint Europol-INTERPOL Report, “Migrant smuggling networks”, Maio de 2016). As redes ilegais e de traficantes — na sua total ausência de escrúpulos —, e obviamente conhecendo bem os mecanismos humanitários europeus, contam já com essa actuação dos barcos das ONG e de outros meios de apoio aos migrantes/refugiados. Esperam que sejam estas a levar a “bom porto” aqueles que exploraram e dos quais receberam centenas ou milhares de euros por um lucrativo transporte. Usualmente, ao primeiro problema na viagem/travessia, abandonam-nos à sua sorte deliberadamente no Mediterrâneo, ou noutro local qualquer. (Ver NGO rescues off Libya encourage traffickers, says EU borders chief, in Guardian, 27/02/2017).

6. A questão aqui é a das múltiplas consequências — incluindo as políticas —, de uma nobre acção humana (salvar migrantes de morrerem afogados, desidratados, ou em condições precárias pela fome). É, em si mesma, uma espécie de imperativo ético categórico, que não tem de ter em conta outras considerações? Mas será que no mundo real, com o impacto que estes casos têm numa comunidade política, podemos abstrair-nos de todas as consequências, ainda que totalmente indesejadas, das acções das ONG — as quais, neste caso, de alguma forma, facilitam também a tarefa das redes ilegais de envio de migrantes para a Europa? Podemos ter duas soluções radicais para este problema: uma explorando o medo e a insegurança dos cidadãos; a outra absolutizando o ideal humanitário e explorando sentimentos de culpa dos europeus. A primeira leva a acabar com a actuação das ONG no Mediterrâneo considerando-a ilegal. (Ver “Ong Lifeline salva 224 migranti: ‘Se arrivano in Italia, arrestiamo l’equipaggio’” in Corrière dela Sera, 21/06/2018). Estas são denegridas como “táxis” dos traficantes de migrantes (a solução de Matteo Salvini, o Ministro do Interior de Itália). A segunda, a transformar a acção num bem absoluto humanitário, que não cede a quaisquer outras considerações políticas e ignora o mal-estar que se acumula nas sociedades de acolhimento, desestabilizando as instituições democráticas e o tecido social. (Ver “No one is illegal - for a world without borders”). Ambas devem ser rejeitadas.

7. Impõe-se um humanismo politicamente realista. Necessita de se afastar da dicotomia vilões/heróis, que domina o debate sobre as migrações em massa e instrumentaliza as emoções da opinião pública. Os migrantes são seres humanos que procuram uma vida melhor, ou escapar à guerra e perseguições, quando são efectivamente refugiados. São seres humanos, como nós, que merecem respeito enquanto tal. Não devem ser nem demonizados, nem idolatrados. Não são heróis — certamente que há migrantes que fazem actos heróicos e generosos (ver “Mamoudou Gassama, le jeune Malien qui a sauvé un enfant, a été régularisé” in Le Monde, 29/05/2018); mas também não são vilões — certamente que há actos de maldade e atrocidades cometidos por estes (ver “Failed Afghan asylum seeker is arrested in Germany for killing his girlfriend because she refused to convert to Islam” in Daily Mail, 15/03/2018). A questão é que nem o caso Ahmad G — o jovem afegão que assassinou a namorada alemã que se recusou a converter ao Islão, num acto hediondo de grande crueldade —, nem o caso de Mamoudou Gassama — o jovem do Mali que, num acto de enorme coragem e generosidade, salvou uma criança francesa —, podem ser tomados como exemplos do todo. Olhar para o problema sobre esse simplismo redutor só favorece os grupos que instrumentalizam as emoções para baralhar a opinião pública. O mercado de trabalho e a segurança social são outro bom exemplo desse simplismo. Se, em certos casos, os fluxos migratórios podem trazer contributos positivos pela sua adequação a essas necessidades, noutros casos o efeito poderá ser negativo. Combinar, de forma humanista e serena os imperativos humanitários com as regras da democracia política, as quais implicam consentimento dos governados quanto à dimensão e tipo de acolhimento de refugiados/migrantes, é o que tem faltado aos políticos europeus. Urge fazê-lo.

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