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Rock in Rio Lisboa. Haim e Bonga: dois sinónimos para verdade

Rock in Rio Lisboa. Haim e Bonga: dois sinónimos para verdade

O oitavo Rock in Rio Lisboa arrancou com os Muse enquanto cabeças de cartaz e a atraírem uma multidão para o concerto de encerramento de sábado. O final da tarde ficou a cargo de duas actuações menos concorridas mas magníficas: das californianas Haim e do angolano Bonga.

Houve de tudo em anos anteriores. Houve a espantosa lição de como o rock pode ser uma força de revolução nas três horas com que Bruce Springsteen nos convenceu de que a centelha de mudança no mundo, para o tornar um lugar socialmente mais justo, pode existir tanto numa canção como em cada espectador – uma verdade inspiradora, de mangas arregaçadas, suor em bica e palavras carregadas de implicações; houve a calamitosa actuação de uma Amy Winehouse tão perdida em palco que não seriam necessários dotes sobrenaturais para ver ali um prenúncio do seu salto sem retorno para uma decadência letal, para a qual o equilíbrio era um desafio de proporções ciclópicas e ir além de balbuciar uns versos em cada canção o desafio de uma vida; houve também nomes cimeiros da pop, como Britney Spears, a apresentarem espectáculos tão artificiais que ficava a dúvida do quanto havia de verdade naquilo que víamos e, sobretudo, ouvíamos.

Juntemos os extremos: a verdade e o artifício. É factual que a dimensão e contexto do Rock in Rio convidam a uma espectacularidade pouco habitual noutros palcos. Basta pensar no cenário de confetti, fitas coloridas e balões gigantes que superpovoavam o ar durante Mercy, o tema final da apresentação dos Muse (antes do encore) enquanto cabeças de cartaz da primeira noite desta edição. O aparato (e espalhafato) cénico mostrar-se-ia totalmente condizente com a natureza épica e excessiva do trio britânico capitaneado por Matt Bellamy. Daí que, por comparação, a dispensa de cenografia ou de maravilhamento pela tecnologia das Haim e de Bonga tenham soado a um tão encantador bálsamo de verdade.

No caso de Danielle, Este e Alana Haim, as três irmãs californianas apresentaram em palco a esmagadora prova da fábrica de canções perfeitas que têm vindo a construir desde 2012 (tal como o haviam feito em 2014, no Primavera Sound). E num mundo pop em que muitas vezes a cirúrgica produção de estúdio equivale depois a uma flagrante demonstração em palco do grau de fabricação por detrás de cada álbum, é inspirador confirmar que nada há de postiço na sonoridade que as Haim foram buscar aos Fleetwood Mac dos anos 70 e actualizaram com uma panóplia de referências que vai das Bangles e de Prince a George Michael e Shania Twain.

Enquanto o movimento de rotação do planeta pop se mostra cada vez mais permeável ao uso maciço das ferramentas tecnológicas, as Haim parecem quase um erro do sistema. São uma anomalia assente na formação clássica do rock, uma banda anacrónica em que (quase) tudo aquilo que vemos é tocado ao vivo – a excepção terá sido um bloco de cordas pré-gravadas, com as três a assumirem o grosso da instrumentação e Danielle Haim a confirmar que é não apenas uma cantora soberba como uma guitarrista (debaixo da sombra de Prince) de belíssima safra –, com um catálogo melódico imaculado e canções que se ouvem mascaradas com enganador ar de nascidas da facilidade.

Passando de forma generosa pelos seus dois álbuns – Days Are Gone e Something to Tell You –, as Haim encadeiam Falling, Little of Your Love, Ready for You, Want You Back, Nothing’s Wrong, Forever, The Wire ou Right Now reforçando, tema após tema, seja ele mais country, mais r&b ou rock, o quanto são hoje das mais infalíveis e milagrosas escritoras de canções, qualquer uma das melodias a soar a um shot das melhores recordações de cada Verão passado.

Lições de sedução

Num Rock in Rio que oferece a cada nova edição uma mais extensa programação paralela à música – para lá das milhentas acções de promoção dos patrocinadores, que este ano parecem ter nos pequenos sofás insufláveis de uma operadora de telemóveis a grande vencedora –, é fácil esbarrar-se num Pop District em que o público se faz fotografar ao lado de personagens anónimas de Star Wars ou junto de sósias de Marilyn Monroe e Freddie Mercury. Mas também se conclui que há espaços como o Digital Stage, pensado para agregar uma amálgama de propostas (de concertos a espectáculos de comédia) escolhidas pelo rasto de sucesso no YouTube, mas que, nalguns momentos, apenas se parece às habituais reportagens televisivas dos festivais de Verão, enchidas a despropósito com ideias tão peregrinas quanto pedir a membros do público que se beijem.

Coisa deslavada quando pouco depois se assiste ao concerto magnífico de Bonga. E aquilo a que se assiste é todo um curso avançado e informal sobre sedução. Nos mais diversos sentidos. Bonga seduz a todo o instante a plateia, fala com o público como se fosse o filho de um amigo que encontrou num bar e explica-lhe como é que um homem deve convidar uma mulher para dançar, para logo em seguida detalhar a técnica apropriada para que a dança continue a galgar os degraus dessa sedução. Tudo isto nos intervalos de um reportório que se festeja a si próprio, juntando temas certeiros como Currumba, Kaombo é que pica, Galinha kassafa, Lágrima no canto do olho ou Mariquinha, interpretados com uma ginga que é impossível de recusar.

Bonga actua na Rock Street, este ano com uma programação dedicada em exclusivo à música africana – antes do cantor angolano houve Kimi Djabaté e Tabanka Djaz – e fá-lo num momento em que as reedições de Angola 72 e Angola 74 lhe ofereceram uma nova vaga de interesse e um público diferente que o foi conhecendo através de programas de Júlio Isidro (que estava na assistência e Bonga não demorou a identificar). Às tantas, o cantor diz-se “psicólogo”. “Consigo ver na cara das pessoas – por isso me aldrabam pouco”, explica. E é também isso que faz connosco. Não há aldrabices em palco – vemos um homem com um reportório e uma banda admiráveis, e um modo de sedução que não consegue desligar.

Dos jogos de vídeo aos Muse

Numa noite em que terão passado pelo Parque da Bela Vista 71 mil pessoas, não faltou quem se dedicasse a atravessar o recinto em slide, a fazer escalada ou até a aplicar o seu tempo dentro de um Game Ring em que imperam os jogos de vídeo e que dispõe mesmo de uma bancada para assistir a momentos tão impressionantes quanto umas Slime Wars – que consistem em duelos à moda do velho faroeste, com disparadores virtuais, mas em que o perdedor tem direito a um muito real banho de slime. Sim, há uma bancada e dois animadores para isto, e miúdos que vestem fatos brancos onde podem ser atingidos por estes “disparos”.

Há também fatos brancos na trupe de bailarinos que acompanha Diogo Piçarra em palco. Com ritmos mais musculados ou electrónicas mais insinuadas, o cantor português parece abordar todo o seu reportório como se fosse uma balada amorosa. Piçarra é um pinga-amor musical que apela para que todos se divirtam porque, e cita a sua própria canção (200), “a vida passa a 200”. Um espectáculo empenhado e competente que furou o seu público no momento em que homenageou Zé Pedro com uma versão de O homem do leme.

No Music Valley, no extremo oposto do Palco Mundo (principal), espreitamos o funk oleado de Da Chick, que tanto evoca James Brown como os Dee-Lite, e que perante a difícil tarefa de chamar público para junto de si enquanto muitos gastavam largos minutos nas filas para o jantar, havia de dizer “Não é a Ivete, mas é o melhor que pode arranjar”. Foram, aliás, várias as alusões a Ivete Sangalo, campeã de actuações no Rock in Rio Lisboa, vindas de uma cantora a que falta encontrar uma linguagem mais característica – é tudo muito bem feito e interpretado, mas há uma identidade ainda por resolver (a sua excelente participação no espectáculo Dinamite faz acreditar que não andará longe de atingir esse patamar).

Já aos Muse, no concerto que juntou a maior multidão na primeira noite, pouco falta nesse particular. Desde que arrancam com Thought contagion até à despedida com Knights of Cydonia, aquilo a que se assiste é um rock muitas vezes aparentado de metal –  não faltam riffs de óbvio parentesco com Black Sabbath, Led Zeppelin ou até Metallica –, sempre a forçar o épico e o progressivo, muitas vezes a raiar uns Radiohead, outras a rasar os Queen ou até os cânticos de estádio de futebol. Nasceram para tocar nestes cenários, em que a ambição da sua música de trejeitos futuristas encontra multidões à medida da sua megalomania.

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