observador.ptobservador.pt - 25 mai. 10:47

Best, George Best, o melhor de todos

Best, George Best, o melhor de todos

Começa esta sexta e acaba domingo o primeiro festival de cinema sobre futebol em Lisboa: chama-se Offside, apresenta 16 filmes e encerra com este sobre o irlandês-maravilha.

R2-D2 e C-3PO? Bud Spencer e Terence Hill? JVP e Paulinho Santos? Nada disso, a melhor dupla deste fim-de-semana é futebol e cinema. Ao vivo e a cores, num cinema perto de si. Em Lisboa, só em Lisboa. É o primeiro festival de cinema sobre futebol na capital. Começa hoje às 2130 com “Até L�� Abaixo”, acaba domingo às 1845 com “George Best, All by Himself”.

Best, George Best. Um dos maiores fenómenos de sempre, seguramente o mais pitoresco, cheio de rock n’roll na alma. Os seus dribles, dentro e fora do relvado, perduram na história como os mais audazes, os mais arriscados, os mais sensacionais, os mais atrevidos. Os mais. A palavra mais está constantemente associada a Best. Porque ele dá mais espectáculo que qualquer outro. Se fosse convidado pelo realizador John Huston para entrar no filme “Fuga para a Vitória” (1981), Best marcaria o 4-4 dos aliados e defenderia, claro está, o penálti dos nazis no último minuto. Qual Pelé, qual Stallone, qual quê, Best só há um e mais nenhum. Aliás, não é por acaso que os norte-irlandeses usam e abusam da piada Maradona good, Pelé better, George Best.

Best é mesmo o melhor. Para os norte-irlandeses e não só. Basta recordar o episódio do quinto Beatle, alcunha dada pela imprensa portuguesa na ressaca de um impensável 5-1 do Manchester United na Luz. Estamos em Março 1966, é a segunda mão dos quartos-de-final da Taça dos Campeões. Na primeira, em Old Trafford, o Benfica só perde por 3-2, golos de José Augusto e José Torres, este último a festejar de maneira deveras curiosa, a correr da baliza até ao meio-campo com os braços levantados e a bola entre as mãos. Pelo meio, Herd, Law e Foulkes ditam a lei do factor casa. Em desvantagem por um golo, é legítimo o sonho de virar a eliminatória. Os adeptos acorrem em massa, como é habitual (naquela altura, os jogos em território nacional nem são transmitidos pela RTP, apenas os do estrangeiro), e enchem a Luz, ávidos de ver mais um recital dos encarnados. E assim é – o problema é que o United veste-se de encarnado e o Benfica de branco.

O início do jogo é perturbador para o Benfica. Aos seis minutos, livre para o United, cabeceamento de Best e 1-0. Aos 11′, o guarda-redes inglês repõe a bola para o meio-campo, onde Best domina com classe e finaliza com categoria, 2-0,após ultrapassar três adversários num abrir e fechar de olhos. Daí para a frente, Best é um espectáculo só, capaz de calar o inferno da Luz, da acção mais insignificante, como um simples lançamento lateral, à mais trabalhada, como os sucessivos dribles na marca de penálti. Ao intervalo, os jornalistas entram no balenário das duas equipas e constatam significativas diferenças nos métodos: os ingleses bebem cerveja destemperada com sumo de laranja e gin, os portugueses sumos e chá. Com álcool no corpo, Best continua à solta. Na segunda parte, alarga o seu reportório através de corridas, fintas e remates, dois deles defendidos in extremis por Costa Pereira e evitar um resultado mais desnivelado. Diz o Diário de Lisboa: “Ganhou quem teve o Best. Foi ele, foi o beatle. Foi o garoto de 19 anos de cara de menina e farta cabeleira. O fantasma que atarantou a defesa do Benfica, imitando o macaquinho à solta dentro de uma loja de vidros, sem dó nem piedade. E como corria o simpático guedelhudo. Passava por Germano e Coluna a dizerlhes olá como se fosse uma bala da carabina. Incansável. Progidioso. Formidável.” Os anos passam e Best ainda se lembra dessa noite, logicamente. “Foi o clique da minha carreira, o jogo que me revelou para toda a Europa. E os jornais portugueses chamaram-me quinto Beatle, alcunha que colou até sempre.”

[o trailer de “George Best: All By Himself”:]

Saltamos quatro anos e já estamos em Fevereiro 1970, dia de um inesquecível Northampton-Manchester United para a Taça de Inglaterra. O curioso é que Best nem está para jogar nessa tarde, à conta de um arrufo no dérbi vs City para a Taça da Liga, em Dezembro. É daquelas coisas, é ou não é penálti? Best reclama insistentemente, o árbitro manda seguir. Desagradado com a falta de atenção, Best agarra num pedaço de lama do pseudo-relvado de Old Trafford e atira-lhe ao peito, além de vociferar uns quantos palavrões pelo meio. Vale a intervenção de Tony Book, capitão do City (é importante este nome, já vai perceber o porquê), e a situação fica por ali. Acontece que a federação não perdoa a má educação e suspende Best por seis semanas.

Nesse período, o extremo só vai aos treinos. Quanto vai. É o Best bipolar: ora se aplica de uma forma nunca vista, ora falha miseravelmente só porque sim, só porque gosta da noite, só porque devora champanhe, só porque coiso-e-tal com as mulheres. Imagine-se, a sua companhia de então para essas actividades extra-curriculares é o actor Michael Caine, curiosamente uma das figuras do “Fuga para a Vitória”. No final de Janeiro, a sua vida desportiva está por um fio. Best admite-o sem rodeios à comunicação social, após um treino. “Estou cansado desta vida”. Sim, desta vida sem bola nem competição. Sem dribles nem lama. Sem aplausos nem dramas. “Tenho de começar a jogar, senão perco-me.” Atento, o treinador Wilf McGuiness convoca-o para a deslocação a Northampton. No balneário, dá-lhe a camisola número 11. Best promete uma recompensa alto e bom som. “Rapazes, seis semanas sem jogar igual a seis golos.” O pessoal ri-se e continua a equipar-se. Quando entra no Country Ground (agora apenas e só um campo para jogos de críquete), uma multidão de oito mil pessoas dedicam-lhe uns cânticos cómico-provocadores: George Best Superstar/Walks like a girl/And he wears a bra (George Best Superstar/Anda como uma menina/E usa um soutien).

Mal soa o apito para o início do jogo, Best exibe-se a grande altura e cumpre o prometido: um, dois, três, quatro, cinco, seis. Seis golos. É uma exibição deslumbrante, do mais artístico que há. Dos seis golos, três com o pé direito, dois com o esquerdo e um de cabeça. Na baliza, quem? Kim Book, irmão mais novo de Tony, o tal capitão do City. Ele há coincidências. A caminho do autocarro para a viagem de regresso a Manchester, o plantel do Northampton apanha Best no corredor e oferece-lhe a bola do jogo, devidamente autografada pelos vencidos, todos eles orgulhosos em presenciar um fenómeno raro. O defesa-direito Roy Fairfax, encarregue de marcar Best, até profere a lendária frase captada pelos jornalistas. “O mais perto que consegui ficar perto dele foi quando lhe apertei a mão no final.”

Passam-se seis anos e Best lá se aguenta. Já tem 30 anos e a idade pesa, sobretudo para alguém cujo apetite por noite, champanhe e mulheres (não necessariamente por essa ordem) continua na mó de cima. Muito bem, estamos em Outubro 1976 e é dia de Holanda-Irlanda do Norte para o apuramento do Mundial-78. Em Roterdão, só se fala de Cruijff, então com 29 anos, figura maior do Barcelona e já eleito três vezes o melhor jogador da Europa (1971, 1973, 1974). É um tempo em que o futebol ainda não goza deste estatuto insensato de prime donne nem de seguranças para impedir o que quer que fosse. È tudo à la lagardère. Por isso mesmo, os jornalistas seguem com a equipa no mesmo autocarro, do hotel para o estádio. É aí que o inglês Bill Elliot, do Daily Express, se senta ao lado de Best. “Já acompanhava o Best no dia a dia do Manchester United e ele ofuscava nomes como Bobby Charlton e Denis Law. Era um personagem sem igual. Percebi imediatamente isso no primeiro contacto, quando lhe pedi o número de telefone de casa. Todos os outros jogadores do plantel deram-me um, o Best deu-me 19. O da casa da mãe biológica, o da casa da mulher que cuidava dele em Manchester, que ele considerava uma espécie de mãe, os dos bares onde costumava ir, os dos melhores amigos e alguns, poucos, de mulheres.”

É ele, Bill Elliot, o contemplado no lugar ao lado de Best no autocarro para a banheira de Roterdão. “Cruijff estava no auge. Best não. Perguntei-lhe o que achava do holandês e ele respondeu-me ‘outstanding’ [fora de série]. ‘Melhor que tu?’,arrisquei. Ele olhou para mim e deu uma gargalhada. ‘Estás a brincar comigo, não estás? Eu digo-te o que vou fazer ao Cruijff esta noite. Vou fintá-lo na primeira oportunidade que tiver’, e ambos nos rimos. Um par de horas depois, os jogadores norte-irlandeses foram anunciados um a um. Pat Jennings, o guarda-redes, foi o primeiro a sair do túnel para o relvado. Best foi o último. O megafone soltou ‘e agora o número11, Geeeeeorgie [grande pausa] Best’. E ele lá apareceu, acompanhado por uma loura espampanante, com uma rosa na mão. Era impossível não dar espectáculo, por isso Georgie aproximou-se dela, tirou-lhe delicadamente a rosa, beijou-lhe a mão como um cavalheiro e correu para o meio do campo com o braço bem levantado. E o público, mais animado que nunca, aplaudiu.”

E agora? “Aos cinco minutos, Best recebeu a bola no lado esquerdo. Em vez de a cabecear para iniciar um ataque pelo seu extremo, dominou-a com o peito e foi para dentro. Fintou três holandeses até chegar a Cruijff, no lado oposto do campo, o direito. À frente de Johan, mexeu os ombros duas vezes para um lado e para o outro, como se fosse fintar, e, enquanto isso, colocou-lhe a bola entre as pernas, recolhendo-a de seguida, com o punho semi-erguido. Só alguns jornalistas entenderam aquilo. Eu era um deles.” Cruijff não leva a mal o atrevimento de Best. “Lembro-me desse lance, sim: dentro do campo, ele era um louco são; fora dele, um bom rapaz. No Verão desse ano [1976], passámos as férias no mesmo sítio, em Marbelha. Aliás, esse Verão e muitos outros. E depois ainda nos encontrámos nos EUA.”

Olha que bem, EUA. Vem mesmo a calhar, porque a última história de Best é em San Jose, nos Earthquakes, em 1980. Conta António Simões, o Magriço do golo de cabeça ao Brasil em Old Trafford. “O treinador principal era o Bill Foulkes, velha glória do Manchester United. Eu era o seu assistente dele. Na equipa, duas figuras: o George Best e o Vítor Baptista.” Uischhhhhh. “O Best esteve lá a época toda, o Vítor só uma semana ou duas. O Vítor exigiu à direcção um Corvette, um carro que não estava contemplado no contrato que acabara de assinar, mas ele viu o Corvette e desejou-o à força. Começou logo ali um problema, porque o clube não estava muito interessado nisso. A verdade é que o Vítor acabou por ficar com o carro.” E? “Nem houve tempo para haver confusão porque o Vítor rapidamente apanhou o avião para Portugal. Não se conseguiu adaptar e dava sinais de um comportamento estranho que não o ajudou nada. Joguei com ele no Benfica e lembro-me de ter dividido o quarto com ele, a pedido do Fernando Neves, do departamento de futebol. Aceitei, claro, até porque era o capitão de equipa, mas não era nada fácil. O Vítor tinha a tendência para algum desequilíbrio no seu reino. Nunca foi má pessoa nem deselegante, mas vivia no seu mundo sem se preocupar com os outros. Levei-o para os EUA para tentar ajudá-lo mas não deu.”

Sobra Best. “O Vítor era uma peça, lá isso era. Agora, não fazia cócegas ao Best” Como? “Bem, Best era imparável em tudo. Nem lhe conto. A quantidade de vezes que ficávamos de boca aberta e de queixo no chão com os seus truques. Ele vulgarizava qualquer um com um simples toque na bola. Só era preciso que aparecesse nos treinos”. A odiseeia continua, pelos vistos. “O Best fazia coisas em campo absolutamente geniais, e até nos treinos, mas portava-se de uma maneira pouco profissional fora dos relvado. Certa vez, jogámos longe de casa e marcámos uma hora para nos encontrarmos a caminho do aeroporto. O Best não apareceu. Nós telefonámos, telefonámos, telefonámos e nada. Fomos para o aeroporto. Última tentativa em matéria de ligações. Atende a mulher dele, que também não sabe dele. Era maluco, muito mais que o Vítor. Claro que tivemos de ir jogar sem ele, e atenção que ele tinha jogado no Manchester United com o nosso treinador [Bill Foulkes], mas não havia maneira de o meter na ordem. Ele vivia muito da sua vida social. Era um estilo muito próprio e vincado. Já ninguém levava a mal.”

Ficamo-nos por aqui: Best é tão bom que ninguém leva a mal. Como o filme de domingo, no Museu do Desporto, para o fecho do primeiro festival de cinema sobre futebol em Lisboa.

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