visao.sapo.ptRicardo Araújo Pereira - 24 mai. 07:55

A sedução do nojo

A sedução do nojo

No nosso complexo idioma, o nojo não é necessariamente mau. É frequente, por exemplo, determinada sobremesa ser tão boa que até mete nojo

João Fazenda

A extraordinária popularidade da palavra nojo no debate público português só tem duas explicações possíveis: ou Portugal está cada vez mais nojento ou os intervenientes no debate têm um vocabulário cada vez menos vasto. Inclino-me para a segunda hipótese. Portugal tem muitos defeitos, mas (mesmo sem estar na posse de dados do INE) parece-me que se tem mantido relativamente estável em termos de nojo – o que contrasta com a cada vez maior frequência com que se assinala a ocorrência de múltiplos nojos: a divulgação de certos vídeos é um nojo; determinado artigo de jornal é um nojo; esta opinião é um nojo; aquela gente mete nojo; essa pergunta é um completo nojo. A discussão decorre, pelos vistos, numa pocilga argumentativa e o objectivo é ser o primeiro a apontar o nojo da posição do adversário. A grande vantagem deste modelo é a rapidez. Não é preciso aperfeiçoar argumentos e debater: não se discute com o nojo. Há a nossa opinião e o resto é nojo. Quem decreta nojo encontra-se numa imbatível posição de superioridade moral: é, ao mesmo tempo, mais sensível e mais limpo do que o seu opositor, que é demasiado bruto e porco para perceber que está a ser nojento. Após sentenciado o nojo, não há discussão: aguarda-se que o nojento seja retirado da presença das pessoas asseadas.

Este vómito perpétuo tem o mérito de introduzir alguma energia num ambiente que costuma ser titubeante. Num país em que os factos são sempre alegados, é bom que o nojo seja comprovado. Podemos não ter a certeza de nada, mas sabemos 
que é nojento. Sempre conseguimos 
agarrar-nos a qualquer coisa.

O problema deste método é que, em 
português, a palavra nojo tem significados 
bastante diferentes. A expressão “uma pessoa nojenta” tanto pode designar uma pessoa que mete nojo como uma pessoa que se deixa enojar com facilidade. Ou seja, quando acusamos os outros de serem nojentos, estamos a ser nojentos. E fica difícil distinguir o nojento que inflige nojo do nojento que sofre nojo – o que acaba por ser nojento. Além do mais, estar sempre a bradar nojo parece mesmo coisa de mete-nojo. 
E há ainda uma questão adicional. No nosso complexo idioma, o nojo não é necessariamente mau. 
É frequente, por exemplo, determinada sobremesa ser tão boa que até mete nojo. Fica claro, por isso, que é preciso encontrar outra estratégia para diminuir preguiçosamente o adversário. Esta é um nojo.

(Crónica publicada na VISÃO 1315, de 17 de maio de 2018)

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