blitz.sapo.ptblitz.sapo.pt - 24 mai. 17:08

BLITZ – “Se tivesse 20 anos agora, não tinha ido para Londres porque o Porto me teria dado o que desejava”. João Vieira e os X-Wife voltam a sorrir

BLITZ – “Se tivesse 20 anos agora, não tinha ido para Londres porque o Porto me teria dado o que desejava”. João Vieira e os X-Wife voltam a sorrir

Ninguém disse nada, mas eles sabiam: em 2012, dez anos depois do início e rodeados de fãs e amigos, os X-Wife não tinham mais para onde ir. Afastaram-se sem assumir o fim, mas com o sentido de “dever cumprido”. Em 2018, a banda do Porto lança um álbum que não sabia que ainda tinha dentro de si. João Vieira fala com a BLITZ sobre feitos, frustrações e um renovado entusiasmo do grupo que formou porque tinha mesmo de ser. E compara o Porto de hoje com o dos anos 90, uma “cidade-fantasma” onde não podia vestir-se de maneira diferente

10 de maio de 2012, Cais do Sodré, Lisboa. No palco do extinto TMN Ao Vivo, os X-Wife assinalam 10 anos ao serviço de um punk-funk-electro-rock que deixou marcas na cena alternativa da primeira década do século XXI da música em Portugal. Em desfile estão canções como ‘Rockin’ Rio’, ‘Ping Pong’, ‘On the Radio’ ou ‘Keep On Dancing’, documentos de quatro álbuns e um EP doseados em anos de intensa vida na estrada – em Portugal e não só. Os convidados são vários, o trio composto por João Vieira não esconde o entusiasmo, mas há um beco sem saída ao virar da esquina. Não se inicia um novo ciclo, nada acontece: a banda desaparece de cena, novos projetos com os seus elementos emergem (White Haus, Mirror People...), os X-Wife pareciam ter acabado sem aviso. Só que não. Esta é a história de um recomeço contada por João Vieira, o rapaz que 'fugiu' para Londres nos anos 90 para se vestir de maneira diferente e voltou para pôr o Porto a vestir-se (e a dançar), lá está, de maneira diferente: primeiro como o Club Kitten, que revolucionou a noite da cidade (e invadiu a capital em grande estilo), depois como 'frontman' dos X-Wife, a banda portuguesa que conviveu em tempo real com a cena dos LCD Soundsystem e Rapture.

O concerto de 10º aniversário foi uma espécie de fim não assumido? Sentiram que poderia não haver volta?
Sentimos que era tudo muito incerto. Não havia ali um fechar, mas não se sabia se iríamos continuar. Ao contrário do que fizeram os LCD Soundsystem, que resolveram anunciar o fim e depois voltaram, nós nunca anunciamos nada porque deixámos as coisas seguirem o seu rumo. O facto de o Rui [Maia, teclista] ter ido morar para Lisboa foi um fator muito importante para esta pausa grande. Nós, que éramos uma banda que ensaiava muito regularmente, deixámos de ensaiar e não sabíamos se conseguiríamos escrever música sem estarmos os três juntos. White Haus surge nesse seguimento: “eu não vou poder estar �� espera de X-Wife, isto pode nunca acontecer e eu quero continuar a fazer música”. Para ser honesto, é preciso haver vontade e entusiasmo de todos. Um projeto que durante dez anos ensaia semanalmente, dá trezentos e tal concertos e edita quatro discos sente que o dever foi cumprido e tem um bom legado. Ali começava uma nova etapa das nossas vidas: estamos em cidades diferentes e tanto eu como o Fernando [Sousa, baixista] fomos pais. Já não éramos aqueles miúdos da sala de ensaios com os X-Wife como prioridade – os X-Wife tornaram-se uma coisa mais das nossas vidas. Fomos para fora, fizemos três digressões na América… Fomos para Itália, Espanha, Inglaterra, França… Uma banda que tentou fazer o máximo possível. Neste momento, encaro a internacionalização de uma forma muito diferente do que encarava há quinze anos.

Já não acredita?
Há quinze anos éramos quinze anos mais novos e, quer-se queira quer não, isso conta. Uma internacionalização é um trabalho contínuo que demora anos a construir; não é uma coisa que se faz em meia dúzia de concertos. Tivemos um momento em 2004 com o “Feeding the Machine”: uma banda que tinha todas as hipóteses de furar, teve atenção do mercado lá fora, da blogosfera, das editoras, de músicos que a referenciaram. Nós fomos atrás disso. Não aconteceu ou aconteceu a uma escala mais pequena… Acabámos por vender discos em Nova Iorque e fizemos as nossas digressões, mas a uma escala muito pequena. Isto implica uma disponibilidade de todos, muito investimento, uma dedicação quase total que neste momento ninguém tem. Demora muito tempo e seria preciso estarmos todos disponíveis e com vontade de o fazer. Nós tivemos o furo do FIFA [‘Movin’ Up’, single lançado em 2015], que nos abriu público lá fora, o que se vê pelos Youtubes e pelos Spotifys...

Tem quase um milhão de audições no Spotify, é uma canção maior do que a banda…
A ‘Movin’ Up’ ultrapassa na escala toda a nossa discografia. As pessoas até podem conhecer a música, mas nem saber quem é a banda: esta lá uma data de playlists com uma data de músicas e as pessoas não sabem quem são os artistas. Sabem que gostam daquela música porque é a música do FIFA... São poucos os que criam depois alguma lealdade e querem investigar a discografia… Preferimos consolidar a banda em território nacional e gastar as energias disso do que estar com sonhos de internacionalização. Aquela coisa de ir tocar nos bares por aí fora já teve a sua época.

“Uma pessoa tem que ir buscar a todas: ao Spotify, ao iTunes, à Sociedade Portuguesa de Autores, aos concertos, ao merchandising, a meia dúzia de CDs que vende para o México...”

A década passada foi a última hipótese de uma banda rock se tornar grande…
Já na altura era difícil. Nós não éramos uma banda rock convencional. Tínhamos caixa de ritmos e sintetizadores, não era aquela coisa de baixo, guitarra, voz e bateria. Era um punk rock com influências de Suicide, da [editora de James Murphy] DFA, da cena de Nova Iorque… Na altura não nos apercebemos, mas anos mais tarde olho para trás e concluo que era algo mesmo diferente. A voz a rasgar, agressiva, as guitarras, os sintetizadores analógicos, aquela caixa de ritmos com um som muito específico. Com o tempo, tornámo-nos melhores como compositores mas perdemos um pouco a originalidade que tínhamos no primeiro disco. Mas isso era algo impossível de controlar, tínhamos de ir para algum lado…

Passaram seis anos e todos os elementos dos X-Wife estiveram noutras bandas e noutros projetos. Pega-se no ponto onde foi deixado ou sentem-se os reflexos dessas experiências, digamos, por fora?
Parece que o tempo não passou. O processo da sala de ensaio é igual: estamos ali os três a tocar. O processo de escrita é o mesmo: começa num riff de guitarra, de baixo, teclado, um beat – seja o que for. O que mudou realmente foi a pós-produção: pegar no esqueleto das canções, nas referências mais fortes – melodias de voz, uma linha de baixo ou teclado – e colorir tudo à volta. Aí é que entrámos numa etapa completamente diferente, os três muito mais confiantes e cientes de como se faz e produz um disco. No início, a nossa principal intenção era transmitir a energia dos ensaios e dos concertos – e nós queremos ter isso em disco, aquela coisa mais imediata –, mas desta vez fizemos de outra forma: trabalhar as canções ao pormenor e ao limite. A essência e o início sinto que é praticamente igual, não sentimos estranheza; o que conseguimos foi encontrar uma forma de trabalhar.

X-Wife em 2018: Fernando Sousa, Rui Maia e João Vieira

X-Wife em 2018: Fernando Sousa, Rui Maia e João Vieira

André Tentugal

Pensaram em ter o álbum mais cedo, mais próximo da edição desse single?
Pensei, mas demorou. O ‘Movin’ Up’ foi um ponto de partida. Saímos de estúdio e ninguém estava satisfeito com a canção; voltou para trás. Entraram os sopros, mais vozes, outras coisas, e a canção cresceu. Percebemos aí que não basta ir para estúdio e pôr aquela energia para funcionar. Achámos que deveríamos voltar com algo muito forte, não queríamos que as pessoas dissessem “são os X-Wife, nada de novo”. Tínhamos a preocupação de encontrar os pontos fulcrais para tornar as canções mais fortes. Quando o disco se começou a encaminhar, sentimos que era por aí, vamos seguir essa linha.

Ganha-se algo de interessante em termos financeiros por ter uma música no FIFA?
Mais ou menos, nada de espetacular. Ganha-se a longo prazo. No streaming ganha-se alguma coisa.

Um milhão de audições significa o quê?
Não faço ideia. O que sei é que o Spotify é o serviço de streaming com mais ouvintes, de longe. Está muito à frente do Apple Music e conta muito. Se fores um ouvinte que paga o serviço, estás a contribuir mais sempre que estás a ouvir uma banda. Se tens a versão grátis, contribuis muito pouco. Estamos a falar de valores residuais; só a partir dos muitos milhares é que começa a contar alguma coisa. Uma pessoa tem que ir buscar a todas: ao Spotify, ao iTunes, à Sociedade Portuguesa de Autores, aos concertos, ao merchandising, a meia dúzia de CDs que vendes para o México.

Uma canção como ‘Coconuts’, do novo álbum, é diretamente dirigida a um mercado hispânico? A letra é em castelhano…
Nós temos público no México. A seguir a Portugal e Estados Unidos é onde mais somos ouvidos. Ainda agora fui aos correios enviar dois CDs para o lá. Os fãs já lá estavam, não foi por causa da ��Coconuts’. A seguir ao ‘This Game’ é a segunda canção mais popular no Spotify. Sendo a oitava música do disco, quer dizer muita coisa. Ou é curiosidade ou as pessoas acham piada. Vivemos muito em Espanha, é o país onde tocámos mais vezes a seguir a Portugal. Lá, a seguir aos concertos vamos aos bares, conhecemos outras bandas, existe aquele espírito indie rock… A canção é quase uma homenagem e agradecimento ao nosso público espanhol. Foi testada em Espanha, a primeira vez, improvisada. E como correu tão bem, porque não fazer em espanhol?

“Tínhamos de preservar o nome de uma banda que foi importante no panorama nacional alternativo, que o marcou e que o influenciou. Não queríamos estragar nada, como fizeram os Pixies”

Há um pendor mais eletrónico do que antes. Têm a noção de que o rock está numa fase de menor fulgor, de que seria um tiro no pé aparecer agora com riffs de guitarra?
Não sei… Tivemos uma liberdade muito grande neste disco. Não tínhamos prazo para nada – sem editora e manager –, não tínhamos a pressão de o single ser assim ou ser assado. Tínhamos liberdade total para fazer um disco que funcionasse, do qual nos orgulhássemos e que não estragasse o legado. Preservar o nome de uma banda que foi importante no panorama nacional alternativo, que o marcou e que o influenciou era importante. Não queríamos estar a estragar isso, como os Pixies, que tiveram um legado de discos brilhante e fizeram depois umas coisas que mais valia não terem feito. Eu sempre preservei essa ideia de que há uma época, um legado e convém mantê-lo, não estragar. Aqui o que pensámos foi fazer um disco que fosse de encontro ao que queríamos fazer agora – se for eletrónica, ótimo. Nunca fomos banda de vender muitos discos, fomos sempre uma banda que funcionou bem em palco, sendo a parte de estúdio muito importante. Começámos a criar os nossos próprios estúdios em casa, com material razoável. Começámos a apercebermo-nos das milhares de possibilidades do que podemos fazer num disco para melhorá-lo. O Fernando [Sousa], sendo agora adepto dos sintetizadores, também contribuiu com eles. Eu também – todos nós temos sintetizadores. O Rui com guitarras, coisa que não fez no outro disco. Houve uma distribuição de trabalho muito mais interessante. Cada um tem o seu instrumento, mas foi um trabalho de equipa. A percussão foi muito bem trabalhada pelo Rui, dá-lhe um ar orgânico. E os sopros [a cargo de João Cabrita, habitual colaborador de Legendary Tigerman]… É uma eletrónica, mas tem elementos orgânicos muito importantes: a bateria, os sopros e percuss��es tocadas.

O saxofone dá uma faceta por um lado glam, por outro mais disco sound (como em ‘Boom Shaka Boom’), mas sobretudo engrandece o som. O que é que procuravam exatamente?
O ‘Movin’ Up’ foi o ponto de partida para este disco, foi o primeiro single – embora tenha saído há mais de dois anos – e quando saímos de estúdio ainda não tinha sopros. Achámos que não tinha força, “isto não é uma canção para nós regressarmos, tem que ser algo mais forte”. Foi aí que o Rui incluiu os sopros e a música cresceu, realmente. Regravamos os sopros, baterias, o Rui tirou alguns sintetizadores… Mesmo a tonalidade da voz é diferente daquilo que fiz para trás, assenta-me melhor. Isso também foi trabalhado: “qual é a voz que me assenta melhor, como é que gosto mais de me ouvir, como é que funciona?”.

Estar numa banda como os X-Wife é tentar ter 20 anos para sempre? Convoca a sua juventude sempre que sobe a um palco?
Não, já não sinto isso. Já sou uma pessoa diferente. Somos melhor banda do que alguma vez fomos. Demos dois concertos e estamos em topo de forma. Nunca tocámos tão bem e eu nunca cantei tão bem. Somos muito melhores profissionais, não é aquela coisa do punk rock, partir tudo, beber uns copos, chegar ao palco e sempre a abrir. Conseguimos ouvir as coisas no palco de forma completamente diferente e saber exatamente o que tem de ser feito para as coisas funcionarem. Antigamente éramos mais ingénuos, mais movidos por aquela cena da energia da juventude, do sonho da banda… Isso mudou, mas não quer dizer que seja pior. Acabo por gostar imenso de estar em palco, continuo a sentir o mesmo nervosismo antes de entrar, mas trabalho de uma forma diferente: para passar algo às pessoas que não seja só energia. É importante não estar limitado por já não ter 20 anos. Houve músicas, como a ‘Rockin’ Rio’, que já não queremos tocar ao vivo. Eu já não sinto a ‘Rockin’ Rio’. É quase outra banda. Há músicas que encaixam, como a ‘Keep on Dancing’ ou a ‘On the Radio’, mas outras em que sentimos que não somos nós agora.

“Uma pessoa não pode estar constantemente do contra, tem de fazer alguma coisa. Foi o que fiz quando regressei ao Porto em 2001: não há um clube fixe, faz; não tens uma banda, faz”

Em 2001, quando regressa de Londres, o entretenimento no Porto – aliás, a vida no Porto – era completamente diferente da que hoje existe. Encara os tempos atuais com a esperança de quem vê uma cidade abrir-se ao mundo ou com a resignação de quem vê a cidade ficar igual a tantas outras no mundo?
Temos que encontrar um equilíbrio. O Porto era muito aborrecido quando começámos. Em 2001, o Porto era Capital Europeia da Cultura, mas era tudo muito institucional, faltava cultura alternativa, urbana, de rua. Pensei que não me iria adaptar e tive de criar novas coisas – o Club Kitten, os X-Wife – para me sentir numa cidade que me entusiasmasse. Vivi seis anos em Londres, uma cidade com os pontos turísticos mais cobiçados da Europa, e lidei muito com o turismo, os hostels, as lojas de souvenirs em todo o lado. Mas ao mesmo tempo havia concertos, pubs, lojas de discos independentes… De um lado as H&M e os Starbucks deste mundo, do outro as lojas de discos nas caves, as bandas a tocar por 5 libras… Uma pessoa não pode estar constantemente do contra, tem de fazer alguma coisa. Foi o que fiz quando cheguei cá: não há um clube fixe, faz; não tens uma banda, faz uma banda. As coisas vão surgindo e a cidade vai crescendo. Se eu tivesse 20 anos agora, não tinha ido viver para Londres porque a cidade me teria oferecido o que eu desejava na altura: ver bandas rock e poder vestir-me de uma forma diferente. Em 1995, o Porto era uma cidade-fantasma. Tinhas a Ribeira a passar Led Zeppelin, Doors e Rage Against the Machine; o Aniki Bobó e o Meia-Cave… E o Mercedes [O Meu Mercedes É Maior do Que o Teu], onde eu parava tantas vezes... A música era muita ‘down’ e eu saía de lá às vezes um pouco nostálgico e triste. Em janeiro de 2001, quando regressei, chovia todos os dias intensamente e ir ao Mercedes ouvir aquelas músicas dos dEUS… aquilo matava-me. Tinha o seu charme, a cidade, mas não chegava.

NewsItem [
pubDate=2018-05-24 18:08:48.0
, url=http://blitz.sapo.pt/principal/update/2018-05-24-Se-tivesse-20-anos-agora-nao-tinha-ido-para-Londres-porque-o-Porto-me-teria-dado-o-que-desejava.-Joao-Vieira-e-os-X-Wife-voltam-a-sorrir
, host=blitz.sapo.pt
, wordCount=2589
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2018_05_24_2009858984_blitz-se-tivesse-20-anos-agora-nao-tinha-ido-para-londres-porque-o-porto-me-teria-dado-o-que-desejava-joao-vieira-e-os-x-wife-voltam-a-sorrir
, topics=[alertas]
, sections=[]
, score=0.000000]