expresso.sapo.ptPaula Cosme Pinto - 24 mai. 15:46

Coimbra é uma lição de sonho, tradição... e violência sexual

Coimbra é uma lição de sonho, tradição... e violência sexual

Opinião de Paula Cosme Pinto

“Coimbra é uma lição, de sonho e tradição”, cantava Amália em tempos idos. Se tivéssemos de reinventar este fado, estes dados negros deveriam fazer parte da letra: 94,1% das mulheres da esfera académica de Coimbra já foi alvo de assédio sexual. Uma em cada duas já passou por tentativas de contato sexual indesejado quando não se encontrava na posse de todas as condições físicas/psicológicas para consentir. Mais de metade têm medo de andar sozinhas na rua por receio de sofrerem um ataque sexual. E cerca de uma em cada oito já foi alvo de tentativa de violação, segundo dados revelados ontem pela UMAR – Coimbra, resultantes do estudo Violência e Assédio Sexual no Contexto Académico de Coimbra.

O estudo contou com a participação de mais de 500 pessoas (79% mulheres, 17,5% homens), todos elas com quotidiano ligado à comunidade académica daquela cidade (estudantes, docentes, investigadores, etc). Os números referentes aos homens também são alarmantes: por exemplo, 9,3% dos homens respondentes já foram vítimas de alguma forma de coerção sexual, e 35% afirmou ter sido alvo de situações de assédio. Contudo, a prevalência deste tipo de violência continua a recair sobre o sexo feminino, sendo que a grande maioria das mulheres inquiridas reportou ter sofrido estes comportamentos por parte de indivíduos do sexo masculino, nomeadamente parceiros íntimos, ex-parceiros íntimos, professores, conhecidos e superiores hierárquicos e/ou colegas.

É impossível olharmos para estes números e ficarmos indiferentes. Principalmente se pensarmos que o mundo universitário - seja pelo contexto de estudo e conhecimento acrescido, seja pelas idades mais jovens envolvidas, seja pela abertura de mente e de livre pensamento que era suposto existir num universo como este (que em tudo deveria apelar e construir caminho para a evolução das sociedades) - está simplesmente a perpetuar uma cultura de desrespeito e desigualdade. É importante não optarmos por meter a cabeça debaixo da areia e, em vez disso, encaramos a realidade: a violência sexual e a discriminação de género estão totalmente institucionalizadas em boa parte dos meios académicos.

Aliás, basta pensar na tradição das praxes, que a UMAR Coimbra ressalva – e muito bem – serem práticas que continuam a “promover uma concepção de masculinidade viril e violenta, a objetificação e a hipersexualização dos corpos femininos, a discriminação LGBTQI+fóbica, assim como relações hierárquicas e desiguais”. Um dos grandes perigos é total falta de percepção das próprias vítimas, que não só não se conseguem identificar como tal, como tendem a desvalorizar as situações abusivas. Precisamente porque essas mesmas situações estão normalizadas e são socialmente aceites pela comunidade, como se fossem simples regras do jogo com as quais se deve aprender a lidar, em vez de serem combatidas ativamente.

Lembram-se dos números da violência no namoro?

Já que falamos de violência e juventude relembro os dados que no início do ano deram que falar: outro estudo da UMAR (com quase cinco mil participantes, com uma média de idades de 15 anos) mostrava que mais de metade dos inquiridos com um relacionamento amoroso (passado ou atual) já tinha sido alvo de pelo menos um ato de violência no namoro. A violência psicológica surgia no topo da lista, com insultos, humilhação e ameaças. Situações de ciúme e controlo (a proibição de estar ou falar com amigos imposta à vítima era a mais comum, tal como a crítica à roupa escolhida), violações de privacidade nas redes sociais, coação e violência sexual, agressões físicas e perseguições foram alguns dos atos abusivos relatados pelos adolescentes. Contudo, 68,5% dos jovens considerava natural a existência de comportamento violento nas relações.

Tal como escrevi aqui nessa altura, escusado será dizer que a banalização e legitimação da violência em relações de intimidade continua a ser mais que muita, e partilhada das mais diferentes formas, desde a indústria do cinema à da música, passando pelas piadinhas supostamente humorísticas que surgem amiúde nas redes sociais, por exemplo. Basta olharmos para os números da violência em relações de intimidade entre adultos para percebermos que continuamos a criar novas gerações que crescem a ter o abuso como exemplo dentro das próprias paredes da sua casa. As consequências estão à vista e merecem ações concertadas que visem uma maior e mais célere atuação, sensibilização e consciência para este tema.

Basicamente, é o futuro da nossa sociedade que está em risco. E é inaceitável que o futuro passe por continuarmos a ter uma parte da nossa população com medo de andar sozinha na rua.

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