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Bromidrose

Bromidrose

O chulé restitui a individualidade da raça portuguesa, particulariza-a, constitui uma das maiores riquezas do nosso património linguístico. É o momento em que o excesso verbal do português atinge um ponto de perfeição pouco conhecido

Saudade é a própria nação condensada numa única palavra. Durante muito tempo acreditei firmemente nisto. Ontem, porém, depois de atirar os sapatos e as peúgas pelo chão, compreendi de súbito que há outro termo que não só capta mais de perto a nossa alma popular, como alarga e aprofunda o nosso autoconhecimento como País com a fronteira mais antiga da Europa.

Excitado pela alegria de ter descoberto o segredo que permite a interpretação de nós próprios, faço uma pausa, porque me sinto no dever de informar os leitores: muitos cavalheiros ficarão escandalizados, ou mesmo enojados, com a brusca revelação de que a palavra que constitui o ponto essencial da nossa identidade, aquela onde Portugal aparece mais nítido, não é uma palavra intangível, mística, profética ou filosofal como a saudade. Pelo contrário, é uma palavra banal, grosseira e pouco lírica, muitas vezes abafada, depreciada, proscrita, com a qual, segundo as minhas pesquisas linguísticas, temos sido bastante injustos.

Mas vejamos! Não apenas está completamente engastada nos interstícios da imaginação colectiva, como não tem realmente tradução em mais nenhuma língua: os franceses chamam-lhe odeur des pieds, os ingleses foot odor, os italianos l’odore del piede, os espanhóis olor de los pies (é significativo, de resto, que o próprio latim tenha de recorrer a uma expressão como pede odor).

Ao invés do que ocorre no resto do mundo, as relações entre Portugal e esse potente jacto olfactivo que deflagra quando nos descalçamos, qual onda que nos atinge impiedosamente como se estivéssemos no centro de uma explosão nuclear, manifesta-se sob a forma de uma palavra com um timbre português, bem verdadeiramente português, que parece soar na acústica da Sé de Braga: chulé (bromidrose, em linguagem médica).

Trata-se, com efeito, de um vocábulo que não se dá bem em nenhum outro clima ou nação, e que, por isso, é característico do mais autêntico que existe na longa história lusa. Ao mesmo tempo que mostra a nossa habilidade para inventar palavras com dicções peculiares, que produzem não sei que estranheza, como se fossem entidades mágicas provenientes de civilizações desaparecidas e em cuja presença ninguém pode evitar certa perturbação. Mas que, simultaneamente, possuem um notável poder de comunicação para expressar a cultura de um povo.

Quando é que o chulé apareceu, qual a sua origem? Deriva de quê? Da nossa capacidade ou conformação genética? De uma necessidade de sobrevivência, para nos adaptarmos de forma darwiniana, quando grande parte de Portugal era constituída por florestas impenetráveis e estava infestada de animais viscosos e coleantes, que era preciso afugentar dos nossos membros locomotores? O que é que propiciou o seu surgimento? Foram as danças religiosas dos primeiros portugueses, os que fizeram Portugal? Qual a extensão histórica desta palavra com uma sugestão fónica arcaica, que permanece nos tímpanos? Terá sido uma criação espontânea, popular, ou denota uma origem cabalística, erudita? Será contemporânea das peúgas e das sapatilhas?

Ninguém sabe. Apenas se sabe que o chulé é uma palavra puramente nacional, que surgiu aqui e aqui criou raízes. Talvez porque o cheiro dos pés possui, em Portugal, uma energia própria que se tornou, em dado momento, uma necessidade fonética e de escrita. Talvez porque o cheiro intenso dos nossos pés era um cheiro que reclamava um reconhecimento específico, que queria ser lido, escrito, ouvido. E que, por conseguinte, se desprendeu, se autonomizou dos próprios pés, e redundou numa palavra única.

Depois, em resultado de várias influências, o papel do chulé tornou-se enorme. Disseminou-se, atravessou vales e montanhas, percorreu o País de ponta a ponta, atravessou toda a história do País e transformou-se num lugar -comum, num símbolo automático da vocação patriótica de cada português, aquele em que Portugal se defronta e analisa. Dito de forma mais crua: assumiu-se como o garante da unidade da Pátria (enquanto continuarmos a inventar palavras como chulé, ninguém duvide, Portugal continuará de pé) e ganhou dignidade, constituindo hoje uma epistemologia inevitável.

É verdade que a saudade provoca entusiasmos mais vivos, paixões. Porém, trata-se de uma palavra que não possui uma feição particular, porque existe em todos os países e em várias línguas. Contrariamente, o chulé restitui a individualidade da raça portuguesa, particulariza-a, constitui uma das maiores riquezas do nosso património linguístico. É o momento em que o excesso verbal do português atinge um ponto de perfeição pouco conhecido. Porque o chulé, quando é, é. Não é apenas uma palavra entre muitas outras.

De todas as que existem nos dicionários, o chulé é com certeza a que melhor representa o sentido e a essência do homo-português, pois não há um único lusíada que se ache absolutamente desprovido de chulé. Na realidade, o chulé é um atributo e um produto exclusivo de Portugal, é algo que acontece frequentemente entre nós, que nos acompanha pela vida fora, em novos e em velhos, e que pode surgir a qualquer altura e a qualquer hora, em qualquer grau e sob qualquer forma, qualquer que seja a classe ou o grupo social.

Sempre que um português tira os sapatos para refrescar os pés, o chulé é certo, engole tudo à volta, tende a narcotizar todas as conversas. Por isso, cheirar a chulé é também uma certa maneira de ser intelectual, designa também o recheio que muitas pessoas transportam dentro da cabeça, denuncia uma determinada orientação metafísica, o ambiente mental em que muitos indivíduos exercem a sua escrita. (Continua)

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