observador.ptobservador.pt - 23 mai. 16:21

Sara Antónia Matos: “Júlio Pomar olhava para a frente e nunca para o passado”

Sara Antónia Matos: “Júlio Pomar olhava para a frente e nunca para o passado”

A diretora do Atelier-Museu Júlio Pomar recorda o artista, que morreu em Lisboa na terça-feira, aos 92 anos, e explica como ele encarava a vida. Conheceram-se em 2013 e viam-se quase todos os dias.

Liberdade, movimento e generosidade são algumas das palavras que ocorrem a Sara Antónia Matos para falar de Júlio Pomar, o artista plástico que morreu na terça-feira em Lisboa, aos 92 anos, reconhecido como um dos criadores mais influentes da arte portuguesa contemporânea.

Sara Antónia Matos, de 40 anos, é doutorada em Escultura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e dirige o Atelier-Museu Júlio Pomar desde a fundação, em 2013. Ao Observador, recorda como conheceu o artista e lembra como ele ficava espantado ao ver pinturas que tinha assinado há mais de 50 anos.

Atelier-Museu Júlio Pomar fica na Rua do Vale, em Lisboa, frente ao atelier onde o artista trabalhou quase até aos últimos dias

Que memórias guarda do momento em que conheceu Júlio Pomar?
Conhecemo-nos em 2013, quando a Câmara de Lisboa abriu o Atelier-Museu. Conhecia a obra, mas não o pintor. Na altura, as obras dele ainda não estavam no espaço, não tínhamos acervo, e fizemos uma primeira visita, que foi muito bonita. Nessa ocasião, conheci a pessoa e a sua generosidade, ouvi-o falar das ideias que tinha para este museu, desenhado por Siza Vieira. O espaço estava vazio e começámos a imaginar as obras nas paredes. Foi um momento muito especial. Depois, claro, no trabalho que desenvolvemos nos últimos anos, tivemos um contacto semanal, às vezes diário. Houve sempre muita cumplicidade.

Era no Atelier-Museu que Pomar trabalhava?
Algumas pessoas essa ideia, mas não, o atelier não era aqui. Foi essa a intenção original, mesmo antes de Siza Vieira fazer o projeto: que Júlio Pomar fizesse do museu um espaço de trabalho. Mas isso não chegou a acontecer. O pintor preferiu ficar no atelier que já tinha, porque não poderia trabalhar à frente do público. O palavra manteve-se no nome não só pela estrutura arquitetónica, que é quase a de uma casa, mas também porque, segundo o próprio Pomar, os ateliers são espaços de ensaio e de propostas e era essa a ideia que ele tinha para o museu. Não uma casa-museu, que mostrasse o passado, mas um lugar de novas propostas, de experimentação, de diálogo com outros artistas.

Diz-se que o pintor trabalhou praticamente até aos últimos dias. A criação constante foi uma das principais características de Pomar?
Penso que sim. O atelier propriamente dito fica na mesma rua do museu, mesmo em frente, era só atravessar a estrada. Ele visitava-nos muitas vezes. Trabalhava para respirar, era a maneira que tinha de encarar o mundo, de pensar e de viver. Trabalhava continuamente, se não a desenhar ou pintar, a pensar e a escrever, a imaginar projetos, ou até a trabalhar connosco. Relatava memórias, participava nas conferências do museu, estava sempre em trabalho, era incansável. Começava várias telas em simultâneo, que muitas vezes ia transformando com camadas sobre camadas.

É autêntica a imagem que temos de um homem muito sociável e de um pintor sempre disponível para dialogar com outros criadores?
Sem dúvida. Nunca foi uma pessoa isolada do mundo e afirmou-se muito em termos políticos. Pensava esta casa como local de conversa e de encontro com os seus pares e com o público. Nunca recusou participar. Não houve inauguração a que ele não tenha vindo, a não ser nos últimos tempos, porque estava impossibilitado. Recordo um momento marcante, com Pedro Cabrita Reis, em que Pomar, de manhã à noite, participou na montagem, sempre de pé, sempre dinâmico. Foi há cerca de um ano, com a exposição “Das Pequenas Coisas”, que mostrou esculturas e assemblages de Pomar e Cabrita Reis. Admiravam tanto o trabalho um do outro que decidiram não identificar as obras em exposição e com isso desafiaram o público a descobrir quais seriam as de um e as de outro.

Sara Antónia Matos dirige o Atelier-Museu Júlio Pomar desde a fundação, em 2013

Pomar foi várias vezes homenageado em vida. Qual terá sido a distinção mais importante que lhe foi feita?
Nunca foi esquecido, é importantíssimo dizer isso. O Atelier-Museu terá sido o maior reconhecimento em vida. Um museu que trabalha a própria obra, apoiado pela Câmara da cidade em que nasceu, é sintomático desse reconhecimento, que continuará daqui para a frente. Houve outros momentos, ao longo das décadas. Foi o primeiro artista português que em vida viu uma obra classificada como de Interesse Público, o que aconteceu com “Almoço do Trolha” [1946-50, hoje pertencente ao Centro de Arte Manuel de Brito]. É motivo de espanto e de alegria. O “Almoço do Trolha” foi exibida aqui no museu há cerca de um ano e meio. Muitas vezes, para as nossas exposições, pedimos obras emprestadas a outras instituições, porque não temos a obra completa de Júlio Pomar. Ele espantava-se quando uma obra chegava. Não via o “Almoço do Trolha” há 50 anos. Espantava-se e sorria, quase como se não tivesse sido ele a fazer a obra.

Raquel Henriques da Silva, diretora do Museu do Neorealismo e antiga diretora do Museu do Chiado, defendeu ontem que o Museu do Chiado deveria organizar imediatamente uma retrospetiva de Pomar. Concorda?

Congratulo-me e felicito todas as homenagens que possam ser feitas, mas só posso falar pelo Atelier-Museu. O desejo do mestre foi sempre, disse-mo várias vezes nesta fase final, que continuássemos com a programação normal e isso significava olhar para a frente. Penso que não queria aqui, no museu, exposições que olhem apenas para o passado — embora isso seja fundamental, porque só dessa maneira se consegue perspetivar. A ideia dele seria sempre, para o museu, um cruzamento com a obra de outros. Pomar olhava para a frente e nunca para o passado. É isso que aqui faremos. Para já, estamos a assinalar o Maio de 68 com séries de Júlio Pomar nunca antes reunidas e mostradas em Lisboa [exposição “O Que Pode a Arte?”, até 29 de setembro].

A influência que Pomar deixa na arte portuguesa é mais estética ou ética?
Ambas, porque a estética e a ética estão associadas. Os modos de fazer da estética contêm sempre uma ética na sua raiz, que é uma espécie de verdade do pintor e da sua expressão plástica. Pomar foi sempre fiel a isso. Alterou e contribuiu de forma determinante para a história da arte portuguesa e para a obra dos seus sucessores, foi-se renovando plasticamente ao longo de sete décadas de atividade, o que constitui um exemplo inigualável. Sem medo de não ser consensual, sem evitar qualquer discussão. Era conduta dele afirmar a liberdade de criação e de expressão. Acho que isso é uma marca indelével. Trouxe para o campo da arte assuntos estéticos, éticos e políticos como o erotismo e o prazer dos corpos, a crítica e a ironia. Deu o exemplo de como a arte pode ser desimpedida de qualquer tipo de constrangimentos.

Se tivesse de resumir a pessoa e a obra numa só frase, diria que morreu Júlio Pomar, um artista plástico que…
…que pugnou sempre pela liberdade, pelo movimento, pela dinâmica e pelo encontro com os outros, pela partilha, pelo diálogo e pela generosidade.

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