observador.ptobservador.pt - 23 mai. 17:16

A “Granta” quer unir o que o mar separa

A “Granta” quer unir o que o mar separa

Depois de dez números, a "Granta" portuguesa renasceu das cinzas para se tornar num tributo à língua portuguesa. O primeiro número da renovada revista, que agora também é do Brasil, chega este mês.

A Granta portuguesa, tal como era conhecida, acabou em outubro do ano passado. Foi nessa data que foi publicado o número 10 da revista literária, com o tema “Revoluções”, o último exclusivamente português. Agora, passados sete meses, a Granta renasceu das cinzas para abarcar toda a língua portuguesa. A partir deste mês de maio, a publicação vai passar a dizer respeito a Portugal e também ao Brasil, onde a versão brasileira estava suspensa porque a editora que a publicava, a Objectiva, foi comprada. Com o tema “Fronteiras”, a nova Granta pretende aproximar o que o mar separa — dois países diferentes, mas com uma língua em comum. Porque “aquilo que nos une por vezes nos separa, e aquilo que nos separa também nos une”.

Apesar da fronteira literária que insiste em existir entre os dois países, na Granta Portugal, o Brasil esteve sempre por perto: foi depois de ouvir falar na Granta Brasil, que Bárbara Bulhosa, editora da Tinta-da-China, decidiu dizer a John Freeman, antigo editor da “Granta-mãe, a inglesa”, que “achava que era a editora ideal para ter a Granta Portugal”, tornando-se assim na responsável pela edição, em solo português, da revista literária. Ao longo dos seus dez números, a Granta Portugal foi dando a conhecer novos autores portugueses, mas também brasileiros e africanos. Sem qualquer adaptação. Uma decisão editorial que ganhará um novo fôlego com o nascimento do Granta em Língua Portuguesa.

O número 10 da Granta Portugal saiu em outubro do ano passado. A capa é de André Carrilho, responsável também pela da nova Granta

“O que me interessa, o meu projeto editorial, que se foi tornando mais óbvio ao longo do tempo, é um projeto global de língua portuguesa. Por isso é que fomos para o Brasil”, explicou Bárbara Bulhosa ao Observador. “Ou seja: considero que tem havido, durante muito tempo, uma barreira linguística absurda entre Portugal e o Brasil. Devemos ser as únicas línguas em que há várias traduções, uma para Portugal e outra para o Brasil. Isso não acontece com o espanhol, com o inglês ou com o francês”, onde a mesma tradução circula por diferentes países. Uma coisa que a Bárbara Bulhosa sempre fez “muita confusão”. Lembrando que já houve vários autores brasileiros com obras adaptadas para o português de Portugal, a editora da Tinta-da-China frisou que esse tipo de iniciativas apenas contribuem ainda mais para a criação dessa “barreira” que, em grande parte, acredita ter sido da responsabilidade de Portugal.

“Há uma certa sobranceria da parte de Portugal em relação à literatura brasileira que acho que é profundamente injusta”, disse a editora, admitindo que o tema da nova Granta, “Fronteiras”, “foi escolhido propositadamente”. “Queremos tentar destruir fronteiras. Estas são as mais difíceis mas, ao mesmo tempo, há aqui uma porta, e é a língua que nos segura. Não há nada como falar a mesma língua. O entendimento é sempre diferente”, disse a editora, que sempre sentiu que os brasileiros são de facto “nossos irmãos”, principalmente na música. “O Caetano [Veloso] e o Chico [Buarque] são tanto deles como nossos. Também senti isso nas novelas, mas nunca senti na literatura.” Foi por isso que nasceu a Granta em Língua Portuguesa — para que passasse a existir um espaço para todos os escritores de língua portuguesa, brasileiros, portugueses ou africanos, “sem qualquer alteração da grafia”. “Para nos começarmos a ler — a ler de forma natural.”

Língua portuguesa, esse “património incrível”

Reunindo textos tanto de autores portugueses como brasileiros, “a primeira Granta transatlântica é assim a constatação de uma distância e um desejo de aproximação”. Os contos que lhe enchem as páginas “percorrem os múltiplos matizes do idioma”, com “sotaques distintos”, como fez questão de referir Carlos Vaz Marques, diretor da revista semestral, no “Incipit”. Sinal disso é a inclusão de um autor que não é de Portugal nem do Brasil, mas que também escreve em português. José Eduardo Agualusa, “escritor angolano que não gosta de alfândegas”, surge em terceiro lugar no índice (a seguir ao citado “Incipit” e ao texto da carioca Adriana Lisboa, “Dia de Iemanjá”), com “Vissolela”. Porque “na Granta em Língua Portuguesa aproxima-nos e diferencia-nos a língua — simultaneamente a mesma e outra, consoante o lugar de origem”, escreveu ainda Carlos Vaz Marques. “Em português nos des/entendemos.”

Bárbara Bulhosa espera que Agualusa (que já tinha colaborado com a Granta Portugal) seja o primeiro de vários escritores africanos a participar na nova revista, cuja circulação será em breve alargada a Moçambique e Angola. “A ideia é pôr a Granta em África, em Angola e Moçambique. É ser um periódico literário que sai semestralmente em todos os países de língua portuguesa. Esse é o meu objetivo”, afirmou a editora da Tinta-da-China, que espera assim contribuir para um menor desconhecimento dos diferentes autores, “tendências e lógicas de escrita” que podem ser encontrados na língua portuguesa. “Acho que é muito mais estimulante”, disse ainda, admitindo que a Granta é, sem sombra de dúvidas, “o projeto mais ambicioso” em que está “metida” e em que mais acredita “por razões políticas. “Acho que a língua portuguesa é um património incrível e temos de saber tratá-lo bem. Se apenas fizermos isso aqui, vamos ficar isolados. Ninguém nos garante que o governo brasileiro não vai um dia dizer que a língua falada é a brasileira.”

A nova Granta em Língua Portuguesa está à venda a partir desta sexta-feira, 25 de maio. O tema é “Fronteiras”

Neste sentido, a Granta em Língua Portuguesa não é muito diferente do restante trabalho que Bárbara Bulhosa e a Tinta-da-China têm vindo a desenvolver no Brasil. Em 2012, a editora decidiu atravessar o Atlântico, criar uma Tinta-da-China brasileira (que, para todos os efeitos, é uma editora diferente da portuguesa) e começar a publicar no “país-irmão” os grandes autores portugueses modernos, completamente desconhecidos dos leitores brasileiros. Agustina Bessa-Luís, Herberto Helder e Eduardo Lourenço são apenas alguns dos nomes que constam de um catálogo já extenso e ao qual se irá juntar, muito em breve, a poesia completa de Sophia de Mello Breyner. “São autores-chave da língua [portuguesa] e não estavam disponíveis no Brasil”, disse a editora que, ao mesmo tempo, tem tentado trazer para Portugal os grandes escritores de lá, criando pontes, criando diálogo. Foi isso que aconteceu com Nelson Rodrigues, “um dos maiores autores brasileiros do século XX”, que a Tinta-da-China tem vindo a editar.

“Interessa-me muito esse diálogo, e está a correr bem”, admitiu ainda Bárbara Bulhosa. “Pode parecer estranho, mas acho que, neste momento, nos estamos a entender mais.” Ao contrário do que acontecia há uns anos, quando fala neste ou naquele autor, os leitores brasileiros sabem a quem se refere. E por cá é a mesma coisa. Isto acontece porque, “entretanto, as pessoas habituaram-se a ler autores de língua portuguesa” com uma nacionalidade diferente. “Custa um bocadinho, mas depois sabe muito melhor.”

Além de José Eduardo Agualusa, que não é de cá nem de lá, esta nova Granta inclui ainda textos originais, escritos em português, do brasileiro Julián Fuks, vencedor do Prémio Saramago (que Adriana Lisboa também ganhou) em 2017, a portuguesa Teresa Veiga, o “filho da diáspora portuguesa” Valério Romão e o também brasileiro Francisco Bosco. Assim mesmo, intercalados. Porque a ideia não é separar, é precisamente unir o que o mar afastou. “A ideia é essa — é fazer o mesmo que tem a Granta espanhola”, que “sai em todo o mundo”. “Sai em Espanha e na América Latina, em todos os países de língua castelhana”, explicou a editora da Tinta-da-China ao Observador.

A estes autores, juntam-se outros, publicados previamente na Granta inglesa. Um deles, “O fruto da minha mulher”, até deu origem a um romance galardoado com o Man Booker Prize International — A Vegetariana, da sul-coreana Han Kang (que este ano voltou a estar nomeada para o mesmo prémio). Da norte-americana Emma Cline, autora de As Raparigas, foi reproduzido “Los Angeles”, a história de uma mulher que se aventura em territórios perigosos. Keane Shum, um alto funcionário das Nações Unidas no Sudeste Asiático, Peter Pomerantsev e Patrick Marnham também assinam textos nesta Granta. As traduções para língua portuguesa foram feitas por portugueses e brasileiros (um deles foi traduzido por Gustavo Pacheco, que se estreou precisamente numa Granta), de modo a equilibrar as coisas. Numa revista que pretende ser de todos, nem seria justo se assim não fosse.

No “Incipit” desta primeira Granta em Língua Portuguesa, Carlos Vaz Marques questiona se, “imaginando que podíamos engolir o Atlântico, quem desejaria realmente fazê-lo desaparecer?”. É que “a primeira tendência do cosmopolita é rejeitar as fronteiras”. “Ler é, por definição, um ato de cosmopolitismo. Quero ser outro quando leio. Anseio por essa metamorfose — ser outros personagens, outros lugares, outros sentimentos. Eis um dos paradoxos admiráveis da literatura: sou mais eu sendo outro.” E é “nesse espírito paradoxal” que se inaugura a nova Granta — “num espírito poético em que aquilo que nos une por vezes nos separa, e aquilo que nos separa também nos une”. A solução é então deixar o oceano ficar onde está: “Deixemo-lo separar-nos, talvez seja assim que mais intensamente nos une”.

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