www.jn.ptPedro Carlos Bacelar De Vasconcelos - 24 mai. 00:01

Democracia, futebol e populismo

Democracia, futebol e populismo

1. Desta vez, quis o destino que o malfadado protagonista fosse o presidente do Sporting! Intoxicada pelo discurso de ódio incansavelmente debitado pelo presidente, a claque encheu-se de brio e os mais impacientes e afoitos, sem querer saber da final da Taça - em que eram favoritos! - ou, porventura, com medo que lhes arrefecesse o ânimo, planearam um ato de terror contra o seu próprio clube, em Alcochete, vandalizaram o balneário, agrediram os jogadores, a equipa técnica e todos os que se atravessaram no seu caminho. Para máximo espanto, uma semana depois, à hora a que escrevo estas linhas, o presidente ainda não tinha renunciado ao lugar, nem os órgãos competentes do clube o tinham demitido.

2. No "Público" de domingo, Vicente Jorge Silva apontava as consequências políticas desta criminosa complacência: "Se o futebol se tornou um reflexo das derivas do funcionamento das sociedades, enquanto domínio imune, tantas vezes, à própria legalidade, o caso Bruno de Carvalho fez-nos confrontar, em Portugal, com um fenómeno corrosivo que desejaríamos iludir: o populismo. A partir do momento em que um país ficou refém de tal caso e tal personagem, importa extrair rapidamente as conclusões desse sequestro que, pela sua amplitude mediática e social, ultrapassou claramente as fronteiras futebolísticas. Não podemos continuar a dormir se não queremos que os Brunos de Carvalho se reproduzam noutras espécies - sociais e políticas - e os bandos de arruaceiros das claques antecipem as brigadas fascistas e nazis de sinistra memória."

3. Num artigo publicado anteontem pela "Social Europe", o ex-primeiro-ministro da Islândia, Jón Baldvin Hannibalsson, antigo dirigente do Partido Social Democrata, explicava como o seu país conseguiu recuperar tão depressa e com tanto sucesso da ruína neoliberal em que mergulhou devido à bancarrota de 2008/9. Afirma que o modelo nórdico, como paradigma do Estado social, "é o único tipo de sociedade, forjada nos combates ideológicos do século XX, que sobreviveu ao teste da competição globalizada". E sublinha que a Suécia, até à crise mundial de 1929/32, era um exemplo de "Governo mínimo", com baixíssimos impostos, e que foi a "Grande Depressão", originada pela crise financeira internacional, que obrigou os suecos a abandonar o modelo a que os ultraliberais querem regressar, para salvar a economia de mercado da ganância capitalista. Para ele, os campeões do "estado mínimo" são os "estados falhados", com o Haiti à cabeça: ali, "não há praticamente impostos... nem educação, nem cuidados de saúde, nem infraestruturas, nem há sequer - curiosamente - crescimento económico. Nem esperança." Há "um preço que todos temos de pagar por viver numa sociedade civilizada". E conclui, em jeito de provocação: "Se compararmos isto com o caminho que a União Europeia e o Banco Central Europeu impuseram, sob o comando da Alemanha, aos estados da periferia da União Monetária, torna-se fácil compreender por que se desvaneceu tão rapidamente, na Islândia, o entusiasmo pela adesão à União Europeia".

4. Nos últimos dois anos e meio, também Portugal experimentou uma recuperação económica e social extraordinária que veio repor a confiança perdida no Governo e na democracia. O Governo socialista e a maioria de Esquerda que o apoia na Assembleia da República, souberam operar a tempo esta viragem que veio salvar o país das mãos da coligação de Direita que prometia apenas mais austeridade e que defendia as doutrinas da troika dos credores como o seu próprio credo. Mas, sobretudo, devemos aos eleitos pela maioria insatisfeita que exigia outras políticas, a coragem de romper com preconceitos anacrónicos e procurar os entendimentos que permitiram responder às aspirações dos eleitores, repondo a tensão dialética entre Esquerda e Direita e atribuindo um sentido substantivo às alternativas políticas. Foi a aliança das esquerdas que salvou o país da deriva populista. Uma deriva que degrada a representação democrática e promove o acesso da extrema-direita racista e xenófoba ao poder, de mão dada com os partidos conservadores.

DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL

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