expresso.sapo.ptexpresso.sapo.pt - 19 mar. 19:49

“O facto de o Hot ser um clube é o que o vai fazer perdurar por mais 70 anos”

“O facto de o Hot ser um clube é o que o vai fazer perdurar por mais 70 anos”

O Hot Club faz hoje 70 anos e é o clube de jazz mais antigo da Europa. Para aceder a essa memória, falamos com Bernardo Moreira, contrabaixista de 86 anos ainda em atividade, que esteve lá desde o início — quando o clube era “quase uma loucura” em Portugal e o jazz uma música de selvagens “que não interessava a ninguém”
Bernardo Moreira é contrabaixista e foi diretor do Hot Club de Portugal durante duas décadas

Bernardo Moreira é contrabaixista e foi diretor do Hot Club de Portugal durante duas décadas

José Carlos Carvalho

Bernardo Moreira era, nos anos 40, um dos pocos loucos do jazz. Está ligado ao Hot Club desde praticamente o seu início, quando em 1950 os estatutos foram aprovados, depois de três anos de digressão rocambolesca pelos corredores dos serviços e ministérios do Estado Novo. Dois anos antes, a 19 de março de 1948, num dia como hoje, o seu fundador Luiz Villas-Boas assinava a ficha de sócio número 1.

Os 70 anos do Hot Club celebram-se com um programa variado que tem o seu ponto alto no concerto que o saxofonista Joe Lovano vai fazer em Lisboa, no dia 23 (às 21h), no Teatro São Luiz, como convidado da Orquestra de Jazz do Hot Club. Lovano toca ainda na sala do Hot, na Praça da Alegria, com o seu Trio Fascination, dia 21 só para sócios e 22 para o público em geral.

Aos 86 anos, Bernardo Moreira — engenheiro e pai do também contrabaixista Bernardo Moreira — continua ativo, e vai tocar no domingo 25 também no Teatro São Luiz em homenagem ao Hot Club, a casa graças à qual, disse ao Expresso, se tornou músico de jazz e que chegou a dirigir durante duas décadas.

É um dos fundadores do Hot Club. O que sente agora que a instituição faz 70 anos?
É um autêntico milagre que tenha durado tanto tempo. Há 70 anos era quase uma loucura sugerir que iríamos existir sete décadas depois. Eu não sou fundador do Hot, cheguei uns 4 ou 5 anos depois de este ter sido criado. Mas sou, digamos, quase fundador. E a minha geração, a geração que fez o Hot, não tinha nada. Quando digo 'nada, é nada mesmo, algo difícil hoje de imaginar. Não havia discos de jazz, ninguém tinha rádio ou giradiscos. Só meia dúzia de pessoas muito ricas. O que é que havia? As pessoas juntavam-se em casa umas das outras para conversar. Havia músicos, alguns concertos na área da música clássica. Quando o Luiz Villas-Boas e alguns amigos decidiram criar um clube de sócios para divulgar o jazz, isso era uma coisa verdadeiramente insólita. Nesse tempo, o que quisemos fazer, fizemos. Contra tudo e contra todos. Penso que o facto de o Hot ser um clube é o que o vai fazer perdurar por mais 70 anos: porque nunca teve uma visão utilitária. O Villas-Boas percebeu que estava a criar o Hot num momento em que explorar comercialmente o jazz não era possível. E quando achou que havia condições para o fazer, não usou o Hot — criou um outro clube. Esse clube já fechou, como fecham quase todos os clubes comerciais. O jazz não é um negócio. Por isso há uma grande vantagem no associativismo: não é preciso ganhar dinheiro, basta não perder.

O que era o jazz há 70 anos em Portugal?
O jazz era uma coisa para meia dúzia de malucos, entre os quais estava eu. Mas era sobreutudo uma paixão, e sempre foi assim. O jazz tocou sempre muito os jovens, basta ver as plateias, mesmo hoje em dia, e ver que tem sobretudo gente entre os 17, 18 e os 29 anos. O problema agora é que as pessoas ficam em casa a ouvir discos.

Mas o que era o jazz, era uma ilha?
Há muita gente que diz que, nos anos 40, o regime de Salazar perseguia o jazz. Não é verdade. O regime queria controlar a sociedade, não propriamente o jazz. E era a sociedade em geral que tinha uma posição negativa em relação ao jazz.

Porquê?
Sociologicamente não lhe sei dizer porquê, mas vivi os factos, sei que era assim. Quando vim para Lisboa estudar, aos 22 anos, já era connotado como 'o tipo que tocava jazz'. E algumas vezes, a subir ou a descer o Chiado, cruzei-me com amigas de infância que chegaram a mudar de passeio só para não ter de me falar em público. Era muito fora da norma. Uma música de selvagens, que não interessava a ninguém, sem pés nem cabeça. Essa reação do público é oposta ao que se vê hoje. Hoje, as pessoas do jet-set ficam todas orgulhosas se o filho toca guitarra numa banda rock ou se funda uma associação. No meu tempo, esses processos eram muito, muito lentos.

Quer contar como foi o processo que deu origem ao Hot Club?
Digo-lhe rapidamente. A ideia do Hot surge em 1945. O Villas-Boas tinha conhecido um português radicado em França que estava cá a fazer a tropa, e que estava ligado ao Hot Club francês, fundado dez anos antes. O Villas-Boas já vinha com a mania do jazz e este amigo desafiou-o a fazer aqui qualquer coisa com isso. E ele decidiu fazer um programa de rádio. O primeiro programa foi emitido em 25 de novembro de 45, na Emissora Nacional. Era uma emissora muito formal, de casaco e gravata, em que ninguém dizia nada ao microfone que não fosse pomposo e solene. Mas, de manhã, havia um programa mais leve, liderado pelo Artur Agostinho, onde a rubrica de meia hora de VIllas-Boas teve um lugar. Chamava-se “Hot Club”. E por quê? Porque na época, mesmo que o termo jazz existisse desde 1920, ninguém falava de jazz, mas de 'hot music'. Nesse programa, o Villas-Boas lançou a ideia de criar um clube de sócios para promover o jazz e recebeu centenas de postais, em geral de jovens, a apoiar a iniciativa. Estes postais estão todos arquivados, e têm muita graça. As pessoas que se manifestaram eram sobretudo intelectuais ou estudantes, entre os quais aparecem alguns nomes muito conhecidos, como João Abel Manta, José Cardoso Pires ou Marcelino dos Santos, que depois viria a ser presidente da Frelimo, em Moçambique. Em 1947 os estatutos do Hot foram escritos e enviados ao Governo Civil de Lisboa para aprovação. Mas demoraram três anos a ser aprovados.

Qual a razão para esse tempo todo?
Uma frase que o Villas-Boas pôs no Artigo 1º, a dizer que o Hot tinha uma finalidade recriativa, cultural e educativa. Como estava lá o termo 'educativo', o Governo Civil enviou os estatutos para o Ministério de Educação, daí foi para a Junta Nacional de Educação, e daí para não sei qual organismo, e cada um destes pareceres demorava 7, 8 meses. Em finais de 1949, veio a resposta: o Estado não reconhecia ao Hot competência para intervir na esfera educativa do país, pelo que os estatutos não podiam ser aprovados. No dia seguinte, o Villas-Boas apresentou os mesmíssimos estatutos, com a palavra 'educativa' cortada. O Hot foi aprovado a 1 de janeiro de 1950. Essa é a data oficial. No entanto, a 19 de março de 1948, faz hoje exatamente 70 anos, ele assinou a ficha de sócio número 1 do clube em formação. É isso que estamos a comemorar.

Falava da fraca aceitação social do jazz nos anos 40 e 50. Quando sentiu que as coisas começaram a mudar?
Vou-lhe dar primeiro uma resposta a brincar: acho que ainda não mudaram. Mais a sério, a mudança começou nos anos 60, princípio dos 70. Por várias razões, uma das quais a passagem das gerações. As pessoas que nos anos 40 tinham 20 anos estão agora com 40 ou mais, e começam a ocupar lugares importantes nas estruturas do país. E já têm uma posição perante o jazz diferente da que tinham os seus pais. Porém, o jazz — e vou usar uma palavra que não é politicamente correta mas que eu considero exata — foi sempre promovido por determinadas elites. Não por uma elite social nem económica, mas cultural. Quanto a mim, comecei em Coimbra a tocar por paixão com meia dúzia de amigos. Um deles ainda toca comigo, tem 88 anos, é um bom pianista [o médico Barros Veloso]. No próximo domingo 25 vamos tocar em Lisboa, no Teatro São Luiz, ao lado de gente de 20 anos [risos].

O Hot Club recebeu músicos imensos. Que grande nomes internacionais marcaram a sua história?
Nos últimos anos, todos. Nos primeiros anos, houve uma situação que facilitou muito a vida ao Hot. É que, não havendo aviões a jato, só a hélice, não se voava de Nova Iorque para Paris. Era necessário fazer escala em Santa Maria, nos Açores, ou em Lisboa. Portanto, muitas vezes acontecia estarmos no Hot — íamos lá todas as noites — a conversar e ouvir discos, e às tantas batiam à porta e vinha pela escada o Dexter Gordon! Ele tinha chegado ao aeroporto, tinha de ficar em Lisboa a noite inteira, perguntava onde é que havia jazz, e como o Villas-Boas trabalhava no aeroporto toda a gente sabia que o jazz estava na Praça da Alegria nº39. Passaram por lá todos os grandes músicos da época. Em 1971 é organizado o primeiro Festival de Jazz de Cascais, em parceria com o produtor do Festival de Newport, em Nova Iorque. Isso marcou uma permanência já mais institucionalizada no circuito internacional do jazz.

Há pouco disse a brincar que as coisas “ainda não mudaram” no que respeita ao jazz em Portugal. Quer aprofundar?
Pois, era só meio a brincar. Em 1948, havia em Portugal 1.500 pessoas a gostar mesmo de jazz. Em 2018, continua a haver em Portugal 1.500 pessoas a gostar mesmo de jazz. A única diferença é que, em 1948, toda a gente dizia odiar o jazz. E hoje ninguém tem coragem de o dizer. Se perguntar a qualquer político se gosta de jazz, este vai certamente afirmar que adora. Mas é mentira! Não gosta, mas é politicamente bom dizer que se gosta. Ninguém se atreve a reconhecer que acha o jazz horrível.

E o que é o jazz?
Ora, nem eu sei! Se considerarmos que o elemento essencial do jazz é o improviso, eu digo-lhe que não é verdade. O elemento essencial do jazz é a linguagem, é o feeling. Porque se for o improviso então temos um grande músico de jazz que se chamou Mozart, ou Bach. Eram fabulosos improvisadores, mas nunca improvisaram na linguagem do jazz.

Qual foi o momento mais memorável da sua história com o jazz e com o Hot Club?
Tenho muitos. Mas posso tentar escolher um: tocar 'entalado' entre dois monstros do jazz mundial no Luisiana, o clube do Villas-Boas. Tínhamos ido todos para lá após um concerto do trio do Oscar Peterson no Monumental, em Lisboa. O contrabaixista desencontrou-se do grupo e por isso acabei por substituí-lo, ao lado de Louis Hayes, um super-baterista. E estávamos a começar a tocar quando entrou, clandestino, um grande saxofonista chamado Gerry Mulligan, que tinha vindo a Lisboa em viagem de núpcias e que por imposição da mulher não trazia o saxofone barítono. Só que teve um azar: o Villas-Boas tinha um no Luisiana. Dez minutos depois de ter entrado já estava a tocar. Estive a tocar toda a noite entre o Gerry Mulligan e o Louis Hayes, o que foi uma experiência notável. Nunca toquei tão bem na minha vida — aqueles dois monstros obrigaram-me a superar as minhas próprias barreiras.

E isso aconteceu graças ao Hot Club.
É graças ao Hot Club que hoje sou músico de jazz.

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