www.sabado.ptFlash - 19 mar. 07:00

Um batom vermelho do caraças

Um batom vermelho do caraças

Um crédito fiscal de 800 milhões de euros tirado da cartola e uma entrada de Pai Natal da Santa Casa no capital da Caixa Económica: estes dois truques de cosmética ilustram a fragilidade da Associação Mutualista Montepio e a operação política, não assumida, montada para a salvar

"Beleza, para mim, é sobre sentirmo-nos confortáveis na nossa pele. Isso ou um batom vermelho do caraças", disse uma vez a actriz Gwyneth Paltrow. A tirada devia ser pendurada numa parede da sala de reuniões do conselho da Associação Mutualista Montepio Geral. A associação dona do banco Montepio já não conseguia esconder o desconforto com a sua situação patrimonial e aplicou-lhe muito batom vermelho, base, corrector de olheiras, máscara e eyeliner. O resultado final só parecerá bom para quem não olhar por um segundo para o que está por baixo.

A primeira aplicação de maquilhagem vem com truque: a equipa de Tomás Correia tirou da cartola um crédito fiscal de 800 milhões de euros. O processo é de um engenho quase infantil (foi a Roland Berger que teve a ideia?). A administração da Mutualista começou por alterar os seus estatutos, pondo os administradores a terem interesse directo nos resultados (por via de prémios de gestão). Com isso deixou de cumprir uma das três alíneas que lhe conferem a isenção fiscal de IRC de que beneficiam as IPSS – ou seja, fez de propósito para passar a pagar IRC.

Mas porquê?, pergunta o leitor que não gosta de pagar impostos. Porque como a Mutualista teve prejuízos grandes em 2017 pode constituir um crédito fiscal diferido sobre o Estado, válido durante cinco anos. Este crédito surge com o montante de 808,6 milhões de euros no lado do activo da associação e contribui para, no papel, a situação patrimonial líquida no ano passado passar a ser de 510 milhões de euros em vez de -300 milhões.

Para os contribuintes o crédito fiscal não é penalizador, antes pelo contrário – a Mutualista já não pagava IRC e quando o crédito se esgotar por via do tempo até vai passar a pagar. Para os mutualistas é cosmética pura. O crédito fiscal não pode ser transaccionado e, por isso, o seu valor real no balanço da Mutualista – cujo património assegura as poupanças dos associados – é nulo. (Pode ser vagamente atraente para outra entidade que tenha lucros que se queira fundir com a Mutualista.)

Mas há ainda mais maquilhagem a caminho. O banco Caixa Económica Montepio é o maior activo da Associação Mutualista, que a regista no balanço por mais de 2.000 milhões de euros. O banco precisa de novos accionistas, mas precisa de accionistas que não o reavaliem, caso contrário a Mutualista terá de baixar a avaliação do seu maior activo. Dado que ninguém sério no mercado avalia o banco em 2.000 milhões – 1.700 parece ser o valor mais optimista num intervalo que chega bem mais baixo do que isso –, é preciso um accionista Pai Natal. É a Santa Casa. Esta vai liderar um grupo de IPSS que, segundo o jornal ECO, se prepara para comprar 2% do banco por 50 milhões de euros – a confirmar-se significará que avalia o banco em 2.500 milhões (mais 500 milhões do que quando o seu provedor assumia a hipótese de comprar 10% por 200 milhões!).

Há muitas perguntas por responder no meio de tanta cosmética. A Autoridade Tributária validou o crédito fiscal de 800 milhões de euros? Com que base? A decisão subiu até à tutela política? Alguém na política vai explicar e assumir o porquê destas medidas? O auditor da Mutualista, a KPMG, dá luz verde a tudo isto? E o regulador público? Aceita este tamanho inflacionamento dos activos?

A parada é alta: sem toda esta cosmética a situação da Mutualista seria muito negativa e poderia obrigar a penalizações nas poupanças dos milhares de pessoas que não saíram com as más notícias (ver gráfico) e que acreditam não estarem a correr qualquer risco (é o que lhes dizem aos balcões do Montepio, como testemunhei em visitas como cliente -mistério). Daí ao risco de uma corrida aos balcões – incluindo os do banco, no meio da confusão entre marcas – podia ser um passo. A cosmética assumida desta forma escandalosa ilustra assim duas coisas: a fragilidade da Mutualista e a operação política, não assumida, para a salvar.

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