sol.sapo.ptsol.sapo.pt - 19 mar. 21:11

Refugiados. Depois da tragédia, recuperar a vida em Lisboa

Refugiados. Depois da tragédia, recuperar a vida em Lisboa

A Câmara Municipal de Lisboa deu recentemente luz verde para que o Centro de Acolhimento Temporário Para Refugiados (CATR) continue a ser uma porta aberta para os refugiados que vêm para Portugal. O i foi conhecer o espaço e perceber como é o programa que promete devolver a vida a pessoas que tudo perderam

É num palacete do Lumiar que está instalado o Centro de Acolhimento Temporário de Refugiados (CATR). Uma das entidades que, em Portugal, têm a porta aberta para receber refugiados a quem a guerra tirou a casa, a paz e, em muitos casos, a família.

“O CATR nasceu no âmbito de um programa da Câmara Municipal de Lisboa”, explica ao i Carla Guimarães, coordenadora do centro. O programa, que se estende por três fases durante 18 meses, tem como objetivo final reintegrar estas pessoas na sociedade. O centro do Lumiar foi pensado para a primeira fase.

“Cada requerente de asilo que chega ao aeroporto no âmbito do nosso programa vem diretamente para este centro”, continua a coordenadora, enquanto guia a visita pelo espaço, que acabou de celebrar dois anos, a 22 de fevereiro.

“Knock-knock, com licença”, diz Carla ao bater à porta do rés-do-chão onde trabalham diariamente, lado-a-lado, equipas das duas entidades responsáveis pela gestão do centro – a Câmara Municipal de Lisboa e o Serviço Jesuíta aos Refugiados em Portugal (JRS). Na sala, psicólogos, assistentes sociais, voluntários, entre outros, compõem a equipa. Um iraquiano é um dos intérpretes que facilitam a comunicação nos primeiros meses, quando o português é ainda desconhecido e o ténue conhecimento da língua inglesa não chega para assegurar um diálogo lógico.

Na porta ao lado, uma sala de reuniões é usada conforme as necessidades: reuniões de trabalho, aulas de português, aulas de conversação, etc. É no piso de cima que vemos os primeiros refugiados, reunidos na cozinha, a prepararem o almoço – duas mulheres, com um lenço a tapar o cabelo, e dois homens. “São mães de duas famílias e dois casos isolados”, explica Carla.

O cheiro que invade as várias salas daquele andar tem algo de exótico. Não é certamente cozinha portuguesa que preparam, uma suspeita que Carla confirma. “Não é comida portuguesa, não. Temos um protocolo com uma empresa de catering, só que a comida nem sempre é do agrado deles, como é óbvio. Tentamos inibir o porco e coisas que eles não gostam e fomentar alimentos como o bacalhau, que é o prato menos preferido”, diz, entre risos. “Tentamos integrá-los na nossa comida e naquilo a que nós estamos habituados. Mas têm a liberdade de cozinhar, muitas vezes pegam naquilo que nós temos e fazem outras misturas, ou então fazem eles de raiz e têm aqui condições para isso”.

E quantas pessoas vivem agora no centro? “Neste momento estão 26 pessoas aqui, todas com 20 e poucos anos, e de inúmeras nacionalidades”, informa Carla. Algumas, contudo, parecem mais velhas – resultado provável de uma vivência marcada por momentos de sofrimento. Mas aqui há também crianças: uma menina que não parece ter mais de três anos passa com uma boneca na mão, seguida de um rapaz que ainda não tem certamente dez.

Ao lado da cozinha fica a sala, que está vazia. “Vamos arrumando e dispondo a sala em função das pessoas que cá temos. Às vezes temos mais áreas reservadas porque há várias culturas, outras vezes temos pessoas de vários países que gostam de conviver entre eles e a disposição está mais alargada porque se sentam todos juntos e veem televisão todos juntos e fazem a sua vida um bocadinho em partilha”, descreve a coordenadora do centro. Junto à sala, uma pequena divisão guarda livros, filmes e dois computadores para uso dos moradores.

Uma das paredes da sala é decorada por um horário grande. “É a escala de limpezas. Tem os dias da semana, o nome das pessoas e as tarefas, que incluem manutenção do jardim, casa de banho, sala, cozinha, escadas. E são eles que fazem a escala”. A casa é limpa por profissionais todas as semanas, mas cabe aos refugiados fazer a manutenção. “Até porque, na segunda fase do programa, quando partem para casas partilhadas com outros refugiados, são eles que têm de assegurar a limpeza”, nota Carla. São, também, os refugiados que cuidam da sua roupa, na lavandaria existente no centro.

Numa outra sala cheia de cadeiras e mesas, que é usada com vários fins, salta à vista uma shisha (cachimbo de água) azul. Carla contextualiza: “É um sítio para onde eles vêm muito quando está a chover e está mau tempo. Vêm para aqui fumar shisha e estudar”.

A sala dá acesso ao jardim, que possivelmente já viu melhores dias: várias cadeiras de plástico atiradas e viradas ao contrário causam estranheza. “Temos pessoas que estão sempre muito preocupadas em regar e em fazer a manutenção, enquanto outras deixam as cadeiras espalhadas”, diz Carla em jeito de justificação.

Nos últimos dois andares ficam as camaratas, que não visitamos.

Um processo “difícil” É a coordenadora do centro que assim o descreve. “Toda a gente aqui vem de contextos complicados. Eles sabem, nos lugares onde estão – quer na Grécia, quer na Itália – que vão ser colocados em Portugal. Mas a maior parte deles não faz a mais pálida ideia de onde é que isto fica, e o grande objetivo deles, na sua maioria, é sair dos campos de refugiados onde estão, porque não têm condições e não se sentem bem”. Quando aqui chegam, todas as questões relacionadas com a saúde, a aprendizagem do português, e as necessidades básicas são asseguradas.

A partir daí, são seguidos no Centro de Saúde do Lumiar. “Temos um médico praticamente dedicado à questão dos refugiados e eles passam a ter o que muitos portugueses não têm, que é médico de família, e um cartão do Serviço Nacional de Saúde. Numa semana têm esses direitos precavidos. Têm também apoio psicológico e psiquiátrico, se necessário”, explica Carla.

Algumas pessoas ficam alarmadas porque vêm viver num espaço que é, mais uma vez, partilhado. “Dormem em camaratas, têm de dividir quartos… só nos casos em que há famílias é que têm direito a uma camarata restrita”, explica Carla Gonçalves.

Casos há em que a situação se torna ainda mais complicada. “Houve pessoas que não se conseguiram mesmo adaptar”. Carla recorda o caso de um casal, “já com uma certa idade”, em que, para a mulher, o centro era novamente um campo de refugiados. “O facto de ver o portão fechado fazia-lhe imensa confusão”, diz. Explicavam-lhe que o centro era um espaço aberto e que aquela era apenas uma situação temporária, mas nunca conseguiu aceitar. Um dia perdeu o controlo, saiu rua fora a gritar e o Alto Comissariado Para as Migrações acabou por integrar o casal noutra instituição com casas disponíveis de imediato.

“Mas a taxa de sucesso tem sido 50/50”, atira Carla. Outras pessoas houve que conseguiram reerguer a vida e excederam todas as expectativas. “Houve um rapaz novo que, já na segunda fase do programa e a receber a bolsa a que têm direito enquanto não arranjam trabalho – 150 euros –, a primeira coisa que fez foi comprar um computador para procurar trabalho. No espaço de dois anos mudou a vida dele, acumulou dois ou três trabalhos e hoje já é intérprete oficial do Alto Comissariado Para as Migrações e do SEF”.

Frequentes são os casos de pessoas formadas que, por terem perdido os certificados de habilitações e comprovativos, não arranjam emprego na sua área e acabam por trabalhar em call-centers, supermercados ou restauração.

O problema da burocracia “Portugal é um país muito burocrático”, assinala Mário Souto, Chefe da Divisão Para a Coesão e Juventude do Departamento dos Direitos Sociais da Câmara Municipal de Lisboa. Esse é, na opinião do responsável, o problema maior de todo o processo porque “conflitua muito com a vida das pessoas”, explica.

Mário Souto e Carla Gonçalves concordam ao apontar o SEF como a entidade que mais dificulta o processo. “O SEF é a parte mais morosa do processo. Obviamente é necessário perceber quem é quem, no entanto esse processo é muito moroso e impede uma integração mais célere que todos nós gostaríamos de ter. Até porque o número de pessoas para quem a cidade de Lisboa tem potencial para dar resposta poderia ser maior, caso não houvesse esse problema”, defende Mário Souto.

A moção aprovada recentemente pela Câmara estendeu a vigência do protocolo de colaboração entre a CML e o JRS no Centro de Acolhimento Temporário Para Refugiados, mas garantiu também um novo apoio financeiro para o Centro. Ainda assim, para a assessora de Ricardo Robles, o vereador dos Direitos Sociais da CML, a importância da moção vai além disso. “A moção é importante também no sentido de criar uma pressão política e um comprometimento por parte da Câmara de Lisboa e da cidade de Lisboa, confirmando que somos uma cidade de acolhimento, que queremos receber as pessoas, integrá-las. Mas para isso precisamos de ter respostas céleres que não podem falhar, ao nível da Segurança Social, do IEFP e do SEF – cuja documentação é fundamental para que estas pessoas possam recuperar a sua vida”, defende Rita Calvário.

Mário Souto concorda: “a aprovação da moção é uma responsabilização e uma declaração em como estamos despertos e a viver diariamente com as pessoas e em como percebemos os seus problemas e que algo tem de ser feito para que existam respostas mais práticas”. Até porque, lembra, “estão em causa vidas e estamos a falar de pessoas”.

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