expresso.sapo.ptexpresso.sapo.pt - 19 mar. 21:36

Caminhos de um vencedor

Caminhos de um vencedor

Faltou a um encontro com Salazar, apesar de ficar para a história como o grande industrial do regime. A indústria foi a grande paixão da sua vida. Construiu um império baseado no cimento e no aço. Perdeu-o com as nacionalizações, reergueu-o no Brasil. No regresso a Portugal entrou no sector financeiro com a Mundial Confiança e Banco Sotto Mayor. Quando morreu surpreendeu a família e os detractores com a doação de parte da fortuna para uma fundação científica que promove a saúde e batalha na luta contra o cancro. António Champalimaud, o homem que teve ‘sete vidas’, nasceu há 100 anos

Faltou a um encontro com Salazar, no tempo em que o professor de Coimbra ainda não tinha esquecido o mundo. Vinte anos passados e poucos dias antes de cair da cadeira, António de Oliveira Salazar mandou-lhe um recado através de Supico Pinto: «Ele [Salazar] diz que Deus Nosso Senhor manda perdoar, mas não esquecer.»

«A partida que eu lhe preguei em 1948...», comenta [em 1994] António Champalimaud, divertido. Nessa época, a Companhia de Carvões e Cimentos do Cabo Mondego pertencia «a uns ricaços do Norte, chamados Magalhães, amigos do Santos Costa, ministro da Defesa. Eles precisavam de uma fábrica de cimento à boca da mina para utilizar o carvão e pediram muitos privilégios» para levarem o projecto avante. «Quando já tinham os privilégios todos, venderam-me a Companhia» (atropelando as regras da concorrência ditadas pela política de condicionamento industrial).

António Champalimaud, o capitão da indústria

António Champalimaud, o capitão da indústria

Rui Ochôa

O ministro da Economia, Daniel Barbosa (que ocupou o cargo entre 4 de Fevereiro de 1947 e 16 de Outubro de 1948), ficou «fulo» quando soube da marosca. Chamou o seu chefe de gabinete - pai do actual ministro Ferreira do Amaral - e deu-lhe instruções para redigir uma portaria. Segundo esta, «o preço do cimento reduzia para metade se eu não desfizesse o negócio, numa altura em que já controlava 75 por cento da indústria do cimento».

A mediação de Botelho Moniz

Em 1948, Portugal recuperava das sequelas da guerra. Champalimaud desfez o negócio, enquanto Daniel Barbosa terminava a sua curta passagem pelo Governo, sucedendo-lhe António Júlio de Castro Fernandes (ministro da Economia até 2 de Agosto de 1950). «Nessa altura, os Magalhães foram dizer ao novo ministro que o Barbosa tinha dito que lhes dava 100 mil contos» para a fábrica. Ao que consta, «o António Júlio terá dito que o Barbosa deixara o cargo por ter a gaveta vazia e que ele também não tinha dinheiro para lhes dar. O certo é que eu refiz o negócio com os Magalhães».

António Champalimaud, então genro do patrão da CUF - Manuel de Mello -, não ficou muito preocupado por ter pregado uma rasteira a Salazar. Este «é que amarinhou pelas paredes acima quando soube da história. Mandou o Botelho Moniz, que era director da CUF e havia dominado a revolta militar da Madeira, procurar-me para me dar um recado. Ele falou comigo, na presença do meu sogro, dizendo-me que tinha tomado a liberdade de dizer ao dr. Oliveira Salazar que eu iria à sua presença no dia seguinte, às 11 horas», para ter uma conversa sobre o negócio do Cabo Mondego. A mensagem de Botelho Moniz continha uma ameaça velada: «O dr. Salazar conhece as suas pretensões para a Siderurgia e para as coisas em África. Por isso, veja lá se não compromete o seu futuro.»

Manuel de Mello ficou apreensivo, porque conhecia bem o genro, e disse-lhe: «António, olhe que eu sou a CUF e tenho mais do dobro da sua idade», para lembrar a António Champalimaud que contrariar Salazar era, no mínimo, má política. O certo é que Champalimaud faltou ao encontro, e Salazar nunca o esqueceu.


O perdão do ditador

Mas perdoou. «Das cinco vezes que recorri a ele fez-me sempre justiça, e a única coisa que não entendo é porque não indicou o nome do seu sucessor.
Quando Salazar desapareceu da cena política, Portugal só tinha o problema do Ultramar. O Franco Nogueira era o único homem que dispunha das chaves para a resolução desse conflito, e teria sido capaz de levar o Ultramar à independência no tempo e forma oportunos.»Marcello Caetano procurava o consenso, mas «era um homem de birras, muito complicado. Um invertebrado. Sempre tive muito boa relação com ele até ao dia em que o Alves Martins - que era familiar dele e trabalhava na CUF - o envenenou contra mim. A coisa foi de tal maneira que, a seguir à Revolução, na sua viagem da Madeira para o Brasil, escreveu três páginas absolutamente incríveis a meu respeito, onde justifica a animosidade para comigo. Dizia que eu estava a ser julgado criminalmente [caso da Herança Sommer] e como tal não devia ocupar-me dos meus negócios. Mas não justificava porquê. Apesar de ser professor de Direito, não mencionava lá o artigo que me proibia de tratar dos meus negócios».

Tempos houve em que a relação de António Champalimaud com Marcello Caetano chegou a ser boa. No final dos anos 40, «tinha eu a minha filha Luísa, lembro-me de ele ir jantar a minha casa, que era na Rua da Imprensa, 25. Mais tarde, chegou a descer à Assembleia Nacional para me defender de um ataque do almirante Reboredo por causa dos minérios de Moncorvo. Mas depois deixou-se envenenar, e eu não gosto de gente mole».

Revista do Expresso de 26 de novembro de 1994

Revista do Expresso de 26 de novembro de 1994

Os comentários sobre os anos mais recentes confirmam esta tese. Champalimaud teve vários contactos com o ministro das Finanças, Jorge Braga de Macedo, por causa das privatizações: «Ele é meio bruto, mas eu dei-me sempre muito bem com ele. Para bruto, bruto e meio. O Elias da Costa [secretário de Estado das Finanças] é que me deu a sua palavra de honra e depois voltou atrás» na história da Secil.

Cunhal: A alma gémea

A verdade e a honradez são as qualidades que mais preza num homem. «Nas mulheres, o problema é mais complicado.» Por isso, acha que os únicos homens que conheceu completamente fiéis a si próprios são ele mesmo, António de Oliveira Salazar e o ex-secretário-geral do Partido Comunista, Álvaro Cunhal: «Só que o dr. Cunhal desiludiu-me um bocadito nos últimos tempos. Tem tido umas certas tergiversações...» Salazar também o desapontou, apesar de, como diz, «ter sido sempre o meu salvador. Mas ficou velho e não quis perceber que o mundo mudara em 1945».

Nesta altura, a nação, intacta e amesquinhada pela memória fresca das privações e dos racionamentos, isolou-se da Europa em reconstrução. Além-Pirenéus, os britânicos e os franceses recuperavam a alma e o orgulho nacionais, enquanto os italianos estudavam a melhor maneira de construir a sua rede viária com os dinheiros do Plano Marshall. Mas Portugal, qual ostra nos mares do império, fechava-se sobre si próprio. Salazar que ria continuar a governar e «não teve a coragem de largar o poder quando devia. Depois da guerra não podia ter continuado a governar com a polícia política. Ou então devia ter tido a coragem de fazer uma consulta ao povo e, se a resposta fosse favorável, se calhar até podia ter governado com a PIDE».

«Malgré tout», Salazar foi um homem que deixou António Champalimaud construir o seu próprio império e transformar-se num «industrial» da velha guarda. «Não gosto que me chamem empresário. Embirro com a palavra. O dinheiro só pelo dinheiro é uma coisa que abomino. Vejam a palavra siderurgia. Vem do grego. 'Sider' quer dizer ferro, e `ergon' trabalho.
Quando eu a inaugurei, em 24 de Agosto de 1961, era o trabalho do ferro.
Agora que já não têm o sider' mais o ‘ergon’ deixaram de ter urna siderurgia para terem uma sucataria. É por isso que não estou interessado nela.»

Domar o ambiente

A siderurgia foi uma das suas grandes paixões. Diz que D. Afonso Henriques foi o primeiro «siderurgista» português, porque conquistou o país trabalhando o ferro. «E se não ma tivessem roubado, o que eu hoje estaria fazendo era siderurgia em altos fornos de carvão de madeira de eucalipto.»

As longas estadas no Brasil estão presentes numa fala de gerúndios constantes, que as mãos sardentas e envelhecidas acompanham com pancadinhas no tampo da mesa. Ao longo de dez horas de conversa, Champalimaud afirmou ser «um ambientalista com cabeça. Sou o maior inimigo da poluição, e por isso é que defendo a produção de carvão de madeira, que emite grandes quantidades de oxigénio para a atmosfera».

No Brasil, transformou-se num grande agricultor, porque entende que «o homem tem de meter as suas raízes na terra». Apanhou uma enorme desilusão quando comprou a fazenda «Três Rios» (no Estado de Minas Gerais), em 1975. Encontrou uma floresta lúgubre, cerrada, onde o sol nunca penetra. Não se via um papagaio, só cobras. Resolveu domá-la, porque «a vida é uma luta, e eu gosto da luta». Hoje, a «Três Rios» é urna herdade agricolamente civilizada, tal como a «Imperatriz» (Maranhão) e a «Santa Cruz» (Rio Grande do Sul).

D.R.

Mas o rosto de Champalimaud ilumina-se quando fala de África: «Apaixona-me de mais para lá me meter», bem como das longas caçadas no mato, que não são mais do que uma metáfora da sua vida. Persegue sempre com frontalidade os seus objectivos. «Venci todos os azares», afirma, procurando esquecer o trágico desaparecimento de dois filhos.

Caçador por destino

Para Champalimaud, «a caça é o combate» mais bem engendrado da natureza. Caçador e presa medem forças enquanto estudam a estratégia de ataque, que deve ser leal e frontal: «Foi o que mais me atraiu em África, para além do fascínio que o meu pai me incutiu. Nunca dei um tiro de longe, nem deixei que os meus filhos o fizessem. Quando cheguei a África pela primeira vez, tinha a sensação de que a fauna era interminável. Mas quando voltei do exílio mexicano em 1973, percebi que as coisas haviam mudado. Nessa altura tinha comprado a concessão do que era a melhor reserva particular de caça do mundo, em Moçambique. Orientei o projecto a partir do México, mas quando regressei a Moçambique e a vi nem queria acreditar nos meus olhos. Eram 90 mil hectares, próximos da Gorongoza, limitados pelo rio Zambeze ao norte. Mandei construir 150 quilómetros de picadas e lagoas artificiais para os animais poderem beber água sem problemas. Tínhamos jipes anfíbios para controlar as coisas e fizemos um povoamento de espécies como deve ser. A terra é muito importante, porque transmite uma sensação de autenticidade e continuidade. Foi da terra que eu vim e é para lá que vou voltar.» Tudo o resto é efémero e transitório. Até a indústria: «Aquilo que compro ou construo, dez anos depois já não é a mesma coisa.» Muda, deteriora-se, ao passo que a terra se transforma.

A Revolução de Abril constituiu um corte brusco nos seus devaneios africanos.
Atravessou o Atlântico em busca de novas caçadas, mas «o Brasil não tem o mesmo fascínio». Na África das suas recordações, as coisas limitavam-se a acontecer.

Embarcou pela primeira vez rumo a Moçambique em 21 de Outubro de 1944, a bordo do «vapor Angola». Chegou a Lourenço Marques no dia 23 de Novembro do mesmo ano, regressando à Metrópole em 1945. «Só que a partir daí nunca mais larguei África. Quando lá cheguei, ainda não sabia muito bem o que é que ia fazer. Em 1945, fui pedir ao engenheiro Araújo Correia, que era administrador da Caixa Geral de Depósitos, 120 mil contos para investir. Ele era um homem que ouvia tudo com muita atenção, e no fim disse-me: ‘Sabe que, pelos estatutos da Caixa, não posso emprestar dinheiro para África.' Aí, propus-lhe contrair o empréstimo em nome da empresa Cimentos de Leiria, e ele acedeu. Emprestou-me o dinheiro, com um prazo de 20 anos e uma taxa de 2,5 por cento. Com esses juros podiam-se fazer negócios.»

A herança do pai

António Champalimaud nasceu em Lisboa, a 19 de Março de 1918, filho do médico Carlos Champalimaud - oriundo de uma família do Douro - e de Ana Maria Sommer, irmã de Henrique Sommer, que viria a deixar grande parte da fortuna a este sobrinho. Carlos - o pai - morreu vítima de tuberculose a 5 de Maio de 1937, tinha António 19 anos.

Hoje, venera-lhe a memória com respeito e apreço: «Foi de uma exigência extrema comigo, mas formou-me e fez de mim um homem com a sua severidade. Foi ele que me incutiu, grande parte do fascínio que tenho por África.» O pai passou apenas meia dúzia de meses em Angola, deixando-se contaminar de tal forma pela atmosfera africana que transmitiu a este filho uma memória recheada de afectos pelo cheiro da terra vermelha e a miragem da liberdade na imensidão da savana. «Falava-me de um livro que tinha lido, escrito pelo pai do Presidente Roosevelt, onde ele descrevia as suas experiências de caça na companhia dos filhos. Quando fui a Nova Iorque pela primeira vez, procurei o livro em todos os alfarrabistas, mas não o consegui encontrar, apesar de ser conhecido.»

D.R.

O capitão médico Carlos Champalimaud também foi um homem de negócios. Teve roças em São Tomé, descobriu e desenvolveu a Companhia das Minas de Cobre do Bembe, no Nordeste de Angola, constituiu a Companhia Geral de Construções e lançou as bases para a construção do caminho-de-ferro que liga Luanda a Cassualala. Então teve um litígio com o Governo Geral de Angola que lhe causou grandes preocupações nos últimos anos de vida; entretanto, fora nomeada uma comissão arbitral para resolver o conflito; a decisão, favorável a Carlos Champalimaud, foi-lhe comunicada por um telegrama que a família recebeu um dia depois da sua morte. António leu o texto da mensagem e tomou a seu cargo um segundo troço da empreitada do caminho-de-ferro, que liga Cassualala ao Dongo (imediações da barragem do Duque de Bragança).

António Champalimaud levou a cabo os projectos do pai, mas esbarrou com algumas dificuldades. Recorda uma tarde passada em Cascais, na casa de Ricardo Espírito Santo, na companhia das suas filhas Vera e Maria (mãe de Ricardo Salgado). De regresso a casa, Ricardo Espírito Santo diz-lhe: «Olhe, António, ainda bem que o vejo aqui, porque hoje estivemos a tratar na reunião do Conselho um assunto que lhe diz respeito.»

Preparava-se então a fusão dos bancos Espírito Santo e Comercial. O falecido Carlos Champalimaud tinha sido membro do Conselho Fiscal desta última instituição bancária e deixara um passivo de 10 mil contos por saldar. Espírito Santo queria saber o que o jovem Champalimaud pensava fazer com a dívida herdada. Este responde-lhe: «As coisas em Angola estão a correr bem. O facto de a arbitragem ter sido favorável ao meu pai facilitou o processo. Os negócios do Douro também estão em expansão e quero desenvolver os projectos do meu pai para a Quinta da Marinha. Por isso, posso saldar a dívida dentro de pouco tempo.»

Champalimaud prossegue o relato: «Quando acabei a empreitada em Angola, recebi um cheque de 10 mil contos que entreguei de imediato ao Ricardo Espírito Santo. Ele ficou reconhecido e isso contribuiu para reforçar a minha grande amizade com aquela família. Mostrou-me sempre a sua estima e foi ele que me iniciou no negócio das antiguidades.» Hoje, António Champalimaud é um grande mestre do coleccionismo, e o seu apreço pela pintura, o mobiliário, a tapeçaria e os objectos decorativos está bem patente na casa da Lapa onde reside.

Uma infância selvagem

Aos 76 anos, os olhos cobrem-se-lhe de lágrimas quando fala da mãe: «Cada vez tenho mais saudades dela. Procurava compensar toda a severidade do meu pai com o carinho que me dava. Mas tive uma infância cheia. Falando com a imprecisão que o tempo passado já me permite, até aos 10 anos vivi em plena liberdade.» Perdido no meio dos 10 mil hectares da Quinta da Marinha, «onde só existia a casa dos meus pais».
O pai adquiriu a propriedade numa hasta pública, oferecendo aos filhos o privilégio de viver num território bravio onde o cheiro da caruma se confundia com a maresia do Guincho. «Eu e o meu irmão Henrique vínhamos todos os dias para Cascais, para assistir às aulas na escola da D. Henriqueta. Vínhamos com o meu pai num velho Hudson descapotável, preto, matrícula S 2314. O meu pai deixava-nos e apanhava o comboio das oito e trinta e cinco para Lisboa.»

O menino António cresceu tranquilo e sossegado como «um pequeno selvagem, a caçar, primeiro com fisgas, depois com espingardas de ar comprimido, e mais tarde com espingardas de calibre 32 de pólvora e chumbo». O sonho foi bruscamente interrompido aos 10 anos, quando o pai o decide mandar - com o irmão Henrique - para o colégio de Jesuítas de La Guardia, na Galiza (frente a Caminha).

«A transição da plena liberdade para o enclausuramento total foi muito penosa. Fomos os últimos a entrar no colégio e, quando sentimos um enorme portão pesadíssimo a ranger os gonzos e a fechar-se sobre nós, o Henrique disse-me: `Oh, António, estamos lixados'.»

A sorte mudou em 1933. Em Espanha vivia-se intensamente a República, e entretanto os Jesuítas tiveram permissão para se instalar em Portugal. Os dois irmãos mudaram-se para o Colégio de Santo Tirso, onde António conheceu Francisco Sousa Tavares. Foi «o Tareco que mais tarde me indicou o Salgado Zenha quando eu precisei de um advogado que não tivesse medo de nada, para o proceSso da Herança Sommer».

Pouco depois, António Champalimaud deixa os Jesuítas e muda-se para o Colégio Académico em Lisboa, onde inicia outra época da sua vida. «Entram os namoros e o primeiro e único desgosto que tive com uma paixão. Não digo quem é, já morreu, coitadinha.» Terminados os estudos liceais, matricula-se na Faculdade de Ciências, em Físico-Químicas, abondonando o curso depois da morte do pai.

D.R.

A saga do casamento

António Champalimaud diz que «as mulheres são a coisa mais fantástica da criação de Deus», mas é parco nos comentários que faz sobre elas. Nas entrelinhas menciona uma namorada que ficou com uma fotografia sua «a andar de moto no Poço da Morte» e insinua a passagem de muitos amores e da receita que utilizou para os resolver: «Tive alguns problemas com as mulheres até descobrir que, para deixarmos de ter problemas com elas, temos de lhes ser pouco fiéis.» «Honni soit qui mal y pense», pois tem uma dedicada companheira de longa data e fala com um enlevo especial das duas filhas, Luísa e Cristina.

Em 1941 casa com Maria Cristina Mello, filha de Manuel de Mello e irmã de outros dois «capitães da indústria»: Jorge e José Manuel de Mello. Os mais desatentos poderiam pensar que este casamento serviria para unir duas das famílias mais poderosas do país em termos financeiros, mas isso nunca chegou a acontecer. A forte personalidade de António Champalimaud fez com que sempre quisesse correr em pista própria, longe do patrocínio do sogro, misturando-se pouco com os cunhados.

António e Maria Cristina tiveram sete filhos, dois dos quais tragicamente desaparecidos: António, o primogénito, morreu num acidente de automóvel na baixa de Lisboa nos finais dos anos 70, e João foi assassinado em 1992 por Manuel Lopes, um antigo empregado da família. Mas os problemas do casal começaram pouco após o casamento, de acordo com o testemunho de quem com eles privou. Divorciaram-se em 1957, num processo que deu que falar. À época, o divórcio era pouco comum - e as personagens envolvidas alvo da atenção pública. Mário Soares foi o advogado encarregue de defender os interesses de Maria Cristina na acção de divórcio.

A casa de Acapulco

A única coisa que vendeu na sua vida foi uma casa em Acapulco, chamada «La Paloma». «Era espectacular dentro da sua simplicidade. Não gosto de vender nada. Prefiro que me roubem a ter de vender. Mas Acapulco fica fora de todas as rotas.» Comprou a casa durante o «exílio», palavra que gosta de utilizar para designar o período (1968-1973) em que viveu no México. Estabeleceu contactos com as personalidades da sociedade local mas nunca se integrou no país. Para trás deixou a ideia de construir uma fábrica de cimento e parte de uma ilha no Caribe, que posteriormente foi ocupada.

Abandonou Portugal num avião particular pilotado pelo marido da sua filha Cristina, perseguido por um dos mais longos processos-crime da justiça portuguesa. O caso da Herança Sommer ainda mexe nos tribunais. É a história de uma briga fratricida entre os irmãos Carlos e António Champalimaud. Em causa está o destino de uma parte da herança do tio Henrique Sommer (irmão da mãe de António). Carlos discute a posse das acções da Empresa de Cimentos de Leiria. Henrique Sommer escreveu uma carta que deveria ser entregue às suas irmãs Luísa e Albana depois da sua morte. A missiva, lacrada com o sinete do autor, foi-se mantendo no segredo dos deuses, e a paz reinava na família numa época em que o tio Henrique seria incapaz de imaginar o efeito da sua vontade.
Na carta que dirigiu às irmãs, dizia: «Por vossa morte desejaria que as acções da Empresa Cimentos de Leiria fossem distribuídas pelos nossos cinco sobrinhos, mas aqueles que mais garantias dessem de continuar a obra de nosso Pai.» Após a morte de Henrique, as tias entenderam que António deveria ser o beneficiado. Carlos argumenta com o texto do testamento de Henrique Sommer, instalando a contenda judicial: um processo com 100 volumes e 50 mil páginas, que fez manchetes de jornais, mobilizou um enorme rol de testemunhas famosas e uma parada de advogados com nomes conhecidos, de que se destacam Manuel João da Palma Carlos, Francisco Salgado Zenha e Daniel Proença de Carvalho. António acabou por ser absolvido, mas Carlos nunca desistiu dos seus intentos.

O «Expresso do Oriente»

António Champalimaud diz que teve uma vida cheia de sucesso. Fez tudo o que que ria, despertou paixões e ódios, motivou vinganças. Na ponta final da sua vida, fala da «raça deste povo, que cansou, e da grande lição que os portugueses deram quando há 500 anos tornaram o mundo finito». Por isso, tem dois sonhos para realizar: ir a Singapura e rumar para Goa para testemunhar a herança lusa no Oriente. Mais bizarro é o facto de querer regressar à Europa utilizando o «Expresso do Oriente» na sua cruzada trans-siberiana.

Como se isso não bastasse para testar a sua persistência e teimosia, António Champalimaud tem projectos para o ano 2000: comprar um terreno em Porto Seguro (Estado da Bahia) e mandar construir uma casa para «garantir que tenho um sítio para dormir na altura das comemorações do quinto centenário da descoberta do Brasil por Pedro Alvares Cabral». Não fosse uma doença de olhos, e António ainda esta ria pronto para pilotar aviões, fazendo jus à sua passagem pela Força Aérea, «a cavalaria do ar», enquanto tropa, no tempo da II Guerra Mundial. Esteve para ser mobilizado para os Açores, mas faltou a gasolina para abastecer o avião que deve ria transportar a sua unidade.

Tem dificuldade em identificar o medo como sentimento e forma de estar. «Medo que me faça parar não tenho. Um dia, ia a fazer uma aterragem e o avião bateu com as rodas no chão. Uma delas saltou, e o aparelho esteve quase a capotar. Numa fracção de segundo, vi toda a minha vida em retrospectiva com uma clareza extraordinária. Mas tive a certeza de que me ia salvar.»

Artigo publicado na Revista do Expresso, edição nº1152 , de 26 de Novembro de 1994

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