observador.ptDiogo Prates - 19 mar. 09:56

Um dia deste lado do rio

Um dia deste lado do rio

Um dos grevistas dá-lhe um “flyer”, Maria lê a primeira frase: “por melhores condições de trabalho e melhores salários". Olha-o nos olhos e atira: “devia ter ido de comboio, na Fertagus não há greves”

Maria tem 25 anos é mãe solteira, filha de emigrantes cabo-verdianos, vive na Amora e trabalha como empregada de limpeza em Lisboa. Levanta-se todos os dias às 5h30 horas da manhã, arranja o pequeno-almoço para a pequena Inês de 6 anos e prepara-se para sair de casa. Hoje é dia de greve de professores e Maria tem que levar Inês para o trabalho, mas quando chega ao cais às 6h30 percebe que os trabalhadores da Transtejo também estão em greve. Um dos trabalhadores estende-lhe um “flyer” com as suas reivindicações, Maria só lê a primeira frase – “por melhores condições de trabalho e melhores salários” –, olha o homem nos olhos e atira-lhe: “devia ter ido de comboio, na Fertagus não há greves”. Enfia o papel no bolso e segue em frente. Os serviços mínimos estão assegurados mas só há barcos de duas em duas horas.

Maria espera, ao seu lado Inês pergunta porque não pode ir à escola hoje, Maria responde que a escola está fechada e Inês insiste: “porquê mãe?” “Porque o teu professor está de greve”, responde-lhe Maria sem paciência. “E tu mãe porque é que tens que ir trabalhar? Porque é que não fazes greve também?” Maria olha a filha nos olhos e diz-lhe: “A mãe não pode fazer greve, a mãe tem muita sorte por ter trabalho e se fizer greve é despedida e não pode comprar a comida para te pôr na mesa, percebeste?” Inês acena que sim com a cabeça e deita-se ao colo da mãe, as duas sentadas no cais à espera do barco, uma hora e 30 minutos de espera.

Cada vez mais gente se junta à espera do barco que chega finalmente, são 8h30, o horário de entrada de Maria é as 9h00. As duas esperam na fila para entrar no barco, que vai cheio como um ovo, entram no barco e ficam de pé encostadas a uma janela, a ver Lisboa cada vez mais perto.

Finalmente em Lisboa, Maria corre para o metro com a filha pela mão, trabalha em Telheiras na casa da Sra. D. Fernanda, viúva e reformada. São 10h00 quando toca à porta da D. Fernanda, que lhe abre a porta.

– Olá Maria, que te aconteceu hoje?

– Desculpe, Dra. Fernanda, a Transtejo está em greve, só consegui chegar aqui agora e tive que trazer a Inês porque a escola está fechada.

– Humm, muito bem, entra lá, no final do mês fazemos contas.

Maria já sabe o que aquele “fazemos contas” quer dizer e tira do bolso o “flyer” que falava em melhores condições de trabalho e melhores salários, revira os olhos e atira o papel para o lixo.

Enquanto a mãe cozinha, limpa, passa a roupa a ferro e volta a cozinhar, Inês vê televisão com os netos da Dra. Fernanda, médica reformada. Depois do almoço, Inês queixa-se de dor de garganta e de “pintas” no corpo, a Dra. Fernanda puxa do termómetro, 39ºC, e sentencia: “Maria, a tua filha tem escarlatina, leva-a ao Hospital”.

Maria não quer acreditar, um dia de trabalho perdido, pega na filha e volta em direcção ao Cais do Sodré. Espera pelo barco que a leve de volta à sua margem do rio. Chega ao hospital, são 16h00 e dirige-se à urgência pediátrica, espera pela triagem numa sala cheia, demasiado cheia, espera para ver o médico que confirma o diagnóstico da Dra. Fernanda, espera para que a filha leve a injecção que lhe tratará da maleita.

São 21h00 e Maria volta para casa de autocarro com Inês pela mão, batem as 22h00 quando as duas entram em casa, exaustas. Maria aquece uma sopa no micro-ondas, comem em silêncio, demasiado cansadas para falarem.

Depois do jantar vão deitar-se. Felizmente amanhã não há greves.

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