visao.sapo.ptvisao.sapo.pt - 19 mar. 15:13

Dançar ao som de zeros e uns

Dançar ao som de zeros e uns

A cultura de dança algorítmica − com música gerada por computadores − é um movimento que nasceu em Inglaterra e se traduz em eventos a que deram o nome de algoraves

Não é muito diferente de fazer malha ou tricô. 
A analogia foi feita por um dos precursores da cultura de dança algorítmica, Alex McLean. Uma algorave é uma rave onde a música que se ouve é gerada por algoritmos. No evento, os músicos encontram-se munidos de um computador portátil, estão a escrever “linhas de código” em tempo real e, por trás deles, está projetada a imagem do que se está a passar no ecrã do computador. Trata-se de uma forma de arte performativa, inserida nas chamadas artes digitais ou artes dos novos media, e alia uma cultura musical a uma cultura visual. “As ligações entre código, padrão e movimento são ancestrais. As pessoas estiveram sempre envolvidas em códigos. Nem é preciso um computador, bastam duas agulhas”, referiu McLean numa Ted Talk dada em março do ano passado em Hull, Inglaterra, onde falou sobre esta cultura de nicho que teve a sua primeira expressão em Londres em 2012. “O que fazemos com a programação em tempo real é criar padrões, tratamos o código como uma linguagem de padrões. E, no caso da dança, estamos a fazê-lo para o corpo, tal como quando fazemos uma meia.”

O algoritmo é um método para chegar a um resultado. “É uma coisa antiquíssima. Uma receita para fazer pão é um algoritmo”, diz André Gonçalves, artista sonoro e visual, criador de instrumentos que exploram o cruzamento entre analógico e digital. “Quando se ouve falar do algoritmo, parece que se refere sempre a uma coisa complexa e tecnológica, mas o algoritmo é tão simples quanto um conjunto de regras a seguir”, continua André Gonçalves, autor da Música Eterna, uma aplicação que permite criar uma peça sonora, virtualmente infinita, a partir de um algoritmo. 
“A complexidade não tem tanto que ver com o resultado musical... Uma coisa pode ser supercomplexa e ser horrível ou ultrassimples e ser bela."

“Eu evitaria os dois extremos relativamente a esta cultura de dança gerada por algoritmos: considerar que é uma coisa completamente nova ou que já foi feita”, defende João Pedro Cachopo, investigador na área da filosofia e da musicologia na Universidade Nova de Lisboa. “Há, por um lado, um fascínio naïf pela novidade da coisa, no sentido em que ignora uma genealogia. E, por outro, é, de facto, algo novo, que tem uma dimensão experimental: a tradução sonora de um determinado padrão visual e matemático; a improvisação; a ideia de performance; a interação com o público e a dança.”

O fascínio pelo código

“Há uma certa curiosidade pela tradução sonora de qualquer coisa que, à partida, não foi prevista, uma curiosidade pela tradução sonora dos códigos, ao invés de haver uma tentativa de encontrar o código certo para que a música soe de determinada forma”, continua Cachopo, esclarecendo que existe uma genealogia deste processo de composição que remonta ao Renascimento. A isorritmia consiste em articular dois padrões: uma sequência de alturas musicais (entre agudos e graves) com uma sequência de durações.

“A música rege-se por padrões como a repetição, a simetria, a interferência e o desvio”, dizia Alex McLean na tal Ted Talk. O britânico desenvolveu um sistema, uma “máquina de padrões”, como lhe chamou – o 
Tidal Cycles – que permite criar, a um tempo, música algorítmica e arte visual. Mas há outros, como o IXI Lang, Max/MSP, SuperCollider ou Cyril. 
“Há aqui um paralelismo com algumas coisas que foram surgindo na música contemporânea. Lembrei-me logo do Xenakis”, indica Cachopo. Iannis 
Xenakis (1922-2001) foi um compositor, pioneiro no emprego do computador na composição musical algorítmica, que foi buscar à matemática e à teoria dos jogos a ideia da música estocástica – processos que não estão submetidos senão a leis do acaso.

A particularidade desta cultura underground reside na intenção de aproximar a música feita pela máquina, pelos algoritmos, à dança. “Essa dimensão, da relação com o corpo, põe este tipo de experiências num universo completamente distinto do da música contemporânea mais tradicional.”

A cultura de dança algorítmica pode também definir-se por aquilo que não é: não é um DJ set, não é engenharia de programação – “a programação em tempo real está muito mais interessada em causar problemas do que em resolvê-los” – e não é ficção científica. “Aqui a ideia é mais desconstruir, despojar a tecnologia”, referia McLean na Ted Talk. Mas, se por um lado, parece interessar aos algoravers uma alienação do mundo onde a voragem da informação e a tecnologia moldam os dias que correm, por outro não deixa de ser curioso que essa fuga seja feita para dentro da própria máquina, numa espécie de imersão no universo criador de toda essa informação. João Pedro 
Cachopo chama-lhe “ir ao olho do furacão”. “Há uma certa estética fascinada pelo código. Lembro-me, por exemplo, dos créditos iniciais do filme Matrix, com os números a passarem pelo ecrã. Há um fascínio pelo código, pela possibilidade de reduzir tudo a zeros e uns.”

Cachopo fala ainda em fetichização da dimensão visual de todo o processo. “Corresponde, por um lado, a uma transparência. Ou seja, aquilo que o músico está a fazer é transparente, as pessoas estão a ver, mas ao mesmo tempo a ideia não é que percebam o que se está ali a passar em termos de ciência computacional. A ideia é que a fruição da música seja acompanhada por uma outra da parte visual da coisa, com toda a sua abstração.”

Em Sheffield, terra dos Pulp e dos Arctic Monkeys, aconteceu em novembro o Algomech Festival – Sheffield’s Festival of Algorithmic – Mechanical Movement. Esta experiência de aproximação da música gerada por computador ao corpo e ao movimento foi traduzida por Alex McLean pela ideia de kairós, o tempo na sua dimensão qualitativa, oportuna, com a qual terminou a sua Ted Talk: “A codificação em tempo real é trazer o ato da programação computacional para o momento presente, responder aos acontecimentos à medida que eles se desenrolam. Não se trata de apresentar uma peça de música já feita, mas ir respondendo ao som que está a ser gerado e à forma como o público está a reagir. É, na verdade, um sentimento especial: sentimo-nos completamente perdidos neste mundo de linguagem, muito abstrato, e damos-lhe uma resposta física.”

NewsItem [
pubDate=2018-03-19 16:13:52.0
, url=http://visao.sapo.pt/actualidade/sociedade/2018-03-19-Dancar-ao-som-de-zeros-e-uns
, host=visao.sapo.pt
, wordCount=1013
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2018_03_19_1325118264_dancar-ao-som-de-zeros-e-uns
, topics=[código binário, ted talk, alex mclean, sociedade, dança, rave, algoritmo, algoraves]
, sections=[sociedade, actualidade]
, score=0.000000]