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Paulo Bragança. “Sempre me senti um extrarreste”

Paulo Bragança. “Sempre me senti um extrarreste”

Desiludido com a indústria, exilou-se em Dublin. No ano passado, Paulo Bragança voltou a Portugal e ao meio a que nunca pertence

Durante uma década, ninguém soube do paradeiro de Paulo Bragança e quem sabia onde estava, desconhecia quem era. Em Dublin, exilou-se do país do fado. Estrangeiro no meio e na criação, cruzou alma fadista, trip-hop e uma aura excêntrica, só comparável à de Mísia. A cabeça falante de David Byrne reconheceu-lhe potencial para pertencer ao catálogo da Luaka Bop. E o sonho americano ali ao lado n’América, onde esteve em digressão. Uma relação terminal levou-o a um cocktail auto-destrutivo de drogas e rejeição da indústria. Do último álbum “Lua Semi-Nua” (2001) pouco se recorda. Agora, e após uma sequência de concertos em festivais como o Bons Sons e o Caixa Alfama, regressa para relembrar e ser lembrado com o EP “Cativo”, formado por fados tradicionais e interpretações de “Remar Remar” dos Xutos & Pontapés, e de “Soldado” dos Sitiados.

O que é que ainda não sabemos sobre o seu passado?

(longa pausa) O que me falta perguntar - e também não se resume em poucas frases ou numa página - é em que é que a música me fez falta. Pelo que é que a substituí. Para mim, cantar é uma questão de existência. É uma função básica como comer e beber. Se não cantasse, acho que morria. Se tiver que ter um fim trágico, será trágico. E estou a ser literal, não a fazer dramas ou a anunciar alguma coisa. Quando me fui embora, senti falta do palco, do contacto com as pessoas e de cantar. De me expressar, comunicar. O “Cativo” é sobre estar numa gaiola. Vamos fazer esta analogia: o bico estava apertado. O pássaro pode cantar mas está preso na gaiola. E lidar com isso? Durante muito tempo, nem queria pensar no assunto. Não queria mas pensava só que não acontecia nada. Era um processo auto-infligido de castração. Falta perguntar como é que se lida com o estar no auge de uma carreira e... Já nem sequer vivia em Portugal, estava em Nova Iorque, numa das vezes que vim cá, fiquei mais tempo. Meteu-se uma relação pelo meio, a pessoa morre, e fartei-me mesmo. Até de mim mesmo. Fui muito abaixo. Acho que só na Irlanda é que acordei desse tempo. Subi demais. Fez-me bem sair. Depois de ter feito tantos concertos e visto tanta coisa, Portugal ficou pequeno demais. Penso escrever 30 ou 40 páginas sobre a pergunta que me colocou. Talvez um ensaio. Escrevi tantos quando estava em Filosofia.

E uma autobiografia?

Não, não quero ir por aí. Têm-me falado sobre isso mas não. A minha já dava um filme mas ainda não chegou o momento. Não tem lógica, nem sei se alguma vez escreverei. Talvez outra pessoa. Claro que vindo de mim, a verdade seria outra. E também lhe digo, se algum dia escrever a minha autobiografia, é preto no branco. Tudo, mas tudo aberto, desde o início ao fim. Sem verdades embelezadas. E esse escancarar, não sei até que ponto é que... Ia pôr em causa muita gente. 

Quando fugiu de Portugal também estava cansado do meio?

Sim. Ainda hoje [estou] e acho que está pior do que há vinte anos. Há uma ganância enorme. Ganhar dinheiro é legítimo, atenção. O fado hoje não é imaterial, é material. Está descaradamente escancarado um cifrão. Até podem nem ser os fadistas, mas o meio à volta força. Já sei que vou ser escalpado na opinião pública mas não quero saber. Antes de começar, os artistas têm de se preocupar com o que são. Hoje, há muita gente a querer aparecer. [Quando comecei] queria lá saber disso. Queria era cantar. Algumas questões ficaram sem resposta, porque simplesmente não as tinha. Como o ter cantado descalço, porque fui tão martirizado. Talvez fosse algum sinal de despojamento pela merda toda que isto é. A razão não tem de ter uma razão. Justifica-se pela ação.

Como é que nasce a consciência de que seria fadista?

Não tinha. O meu pai toca guitarra portuguesa, a minha mãe canta, mas jamais pensei ser cantor ou fadista. Cantava de uma forma tão despretensiosa que até achava um despautério quando os meus colegas de escola me diziam que cantava bem. Participava nas festas normais do miúdos. Na faculdade, evidenciei-me. No primeiro ano, em 1988, o presidente da Associação Académica de Lisboa convidou-me para fazer a Aula Magna. Disse-lhe que era doido mas ele insistiu. Já ia às casas de fado mas era a Aula Magna!

Acredita que se fosse mais novo não teria passado por algumas experiências?

Enquanto fadista, penso que teria sido igual. Nunca pensei em fazer nada [para ter êxito]. Não acautelo as situações. Às vezes, ingenuamente, não penso nas consequências. Nunca soube do mundo mas de mim. O que é meu, é meu. Não no sentido egoísta, ou de não ser altruísta. Se passava pelo mesmo, tudo o que aconteceu de [vida de] bad boy foi uma consequência. Enquanto artista, começasse agora ou há vinte e tal anos, ia ser a mesma pessoa. Não sou só mas estou sempre muito sozinho.

Sente-se um extraterrestre?

Desde sempre. Mal tive consciência de mim, com quatro anos, que me senti um extraterrestre. E só muito mais tarde é que venho a compreender a questão do género. Para mim, era indiferente. Trouxe-me vários problemas, o que não entendia. Não fiquei traumatizado, nem fui vítima de bullying, ou se fui não liguei. Estava tão seguro do que era que nem me preocupava. Notava um certo desconforto mas era exterior, não era eu. Hoje é que se eu disser: “essa camisa está rota” já é considerado assédio.

Está a instituir-se um novo politicamente correto?

É um horror. Uma grande merda. É uma forma de deseducar as pessoas. Agora, como a maré vai toda numa direção, temos de ir todos atrás dela e ainda exacerbá-la. Somos umas bestas dissimuladas. A pior besta é o ser humano. O que se está a fazer é uma maldade. O não se poder expressar porque vai contra os cânones estabelecidos.

O David Byrne reconheceu a diferença.

Ora aí está, foi isso que o encantou. O David Byrne apareceu no sítio certo, na altura certa, e quase escapou das mãos. Em 1995, enviou um fax para a Universal e ninguém ligou. Tinha chegado de férias e disseram-me que havia um tarado de um americano, ou de um inglês, que andava a ligar para mim. Liguei de volta, e disseram-me que era uma editora. Pedi para me enviarem o fax e era uma editora americana que queria editar o disco [”Amai”, de 1994]. Guardei o fax na memória visual e a lombada era igual à de um CD que tinha em casa. Era Luaka Bop. E o DB da assinatura era David Byrne. O tarado chamava-se só David Byrne.

Na Irlanda teve algum contacto com Portugal?

Nenhum. Foi deliberado.

Que país veio reencontrar?

Um país em que não me revejo muito. Portugal está muito fariseu. É tudo muito bonito, muito envernizado, mas à superfície. A Irlanda, por exemplo, vive do turismo. É o quarto país mais rico do mundo. São dados recentes. E não é por isso que a vida se altera. Os turistas são bem-vindos mas estamos a ficar submissos. Em Roma, sê romano. Não somos nós que temos que nos adaptar. Se não qualquer dia não temos identidade. Nem pessoas na cidade. Não tenho nada contra o cosmopolitismo, é uma questão global. E de resto, sempre foi assim. O que era Lisboa no século XVI? De certeza que foi a primeira cidade europeia a ver um negro.

Voltou para ficar?

Voltei para ficar, se bem que não deixarei a Irlanda. Tenho lá a minha casa e vou lá de dois em dois meses. Este EP é um prefácio ao álbum que há-de vir e se chama “Exílio”. Eu até queria fazer uma trilogia mas disseram-me que não podia ser - não tenho nenhuma consciência do mercado. O “Cativo” é o sumo do verão de 2017, quando fiz os espetáculos no Caixa Alfama, Entremuralhas e Bons Sons mas o “Exílio” já vem a ser gravado desde 2012 com o Carlos Maria Trindade (Madredeus, Heróis do Mar).

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