observador.ptAntónio Pedro Barreiro - 18 mar. 00:03

Silêncio

Silêncio

Comecei a escrever este texto em Janeiro de 2017, após ver a adaptação cinematográfica de Scorsese do “Silêncio” de Shusaku Endo. Recupero-o na morte de Stephen Hawking, que viveu uma vida em silêncio

Consta que Martin Scorsese demorou 25 anos a insuflar vida ao seu “Silêncio”. É um trabalho pesado, meticuloso, tecido de planos tensos e claustrofóbicos, que cumprem plenamente a promessa do título. O enredo atira-nos directamente para os braços do silêncio. E mostra, com grande crueza, o que sobra do homem depois desse encontro. Há muita coisa em comum entre esta narrativa e a história de Stephen Hawking, que faleceu esta semana. “Silêncio” fala dos fantasmas da ausência. Hawking viveu uma vida inteira assombrado por eles.

O mote do filme é conhecido: no século XVII, dois jesuítas portugueses rumam ao Japão, para descobrirem sinais de um companheiro que se dizia ter abjurado a Fé sob tortura. A viagem coloca-os em risco absoluto, não apenas pela distância percorrida, mas também pela brutalidade das perseguições que as autoridades nipónicas então moviam contra a Igreja.

No século XX, dir-se-á que os católicos perseguidos pelo comunismo na Europa de Leste compõem “Igrejas do Silêncio”. Quando os padres de “Silêncio” aportam ao Japão, descobrem comunidades católicas ocultas, que facilmente caberiam sob a mesma designação. Confinada às catacumbas do possível, a sua Fé é vivida em surdina, amputada da dimensão sacramental. Mas plena de devoção e, por isso, transbordante de martírio.

Num dos momentos mais impactantes do filme, um dos jesuítas é colocado diante do grande inquisidor Inoue Masashige, que lhe explica com perturbadora serenidade que a árvore do Cristianismo – a árvore da Cruz, diria a Patrística – não conseguiria crescer num terreno pantanoso como o Japão. Inoue desejava uma religião fabricada à medida, um sustentáculo supersticioso para o seu projecto de poder temporal. Reconhecia espaço à Fé, mas apenas como excrescência de uma cultura, de um modo de vida e de uma estrutura de poder. Por isso, rejeitava o Cristianismo, cuja ambição de universalidade parecia incompatível com a mundividência japonesa.

Com Stephen Hawking, passava-se algo de similar. Físico invulgarmente brilhante, só conseguia perspectivar um deus que fosse inteiramente racional e demonstrável. Uma super-equação, que servisse de chave-mestra para revelar todas as incertezas do Universo. Um deus que explicasse tudo, que pudesse ser albergado pela esquadria do cálculo avançado e da física quântica. Em rigor, Hawking não se limitava a não acreditar em Deus. Passou a vida a tentar calculá-Lo, medi-Lo, e morreu sem ter tido sucesso. O infinito não cabe numa pipeta, nem num supercomputador. É essa a agonia insuportável do seu silêncio. Segundo Chesterton, a diferença entre um poeta e um lógico é que o primeiro tem a cabeça nas nuvens e o segundo quer encaixar o céu dentro da sua cabeça. O poeta é um excêntrico. Mas é o lógico que enlouquece.

Inevitavelmente, Hawking desiludiu-se desta demanda. Concluiu que seria a ciência a revelar na íntegra os mistérios do cosmos. Deus fora apenas um acidente histórico, um expediente inventado por homens pouco sofisticados, para explicar os fenómenos que a ciência não conseguira justificar. Com a evolução da ciência, Deus tornara-se dispensável. A ciência substituíra Deus. Na afirmação intransigente destes seus dogmas, o grande físico parece convergir com o grande inquisidor. O Inoue Masashige de “Silêncio” achava que a Fé não tinha lugar naquela latitude. Stephen Hawking defendeu que a Fé não tinha lugar no nosso tempo.

Com a sua dedicação à física teórica, Hawking explicou-nos muito sobre o universo em que vivemos. Temos para com ele uma enorme dívida de gratidão. A sua vida ilustra, porém, de maneira poética e brutal, os limites explicativos da ciência. Mesmo quando dirige o olhar para cima – para os altos céus e para o cosmos em expansão –, não enxerga mais longe do que a compreensão das leis físicas que estruturam o imanente. Não é incompletude ou falta de recursos. É a sua natureza. Iluminando a noite escura com as candeias trémulas da razão natural, da experiência e da percepção dos sentidos, a ciência intui o demonstrável e explica o físico, mas não perscruta o que está além dele – o meta-físico.

Útil e necessário, o olhar cientifico não se basta a si mesmo, nem tem condições para desenhar limites éticos ao seu próprio desenvolvimento. Hawking foi percebendo isso, nesta sua última cruzada solitária contra os perigos da inteligência artificial. De certo modo, este é também o drama central de “Silêncio”. A suspeita de que se caminha sozinho, sem amparo nem referências. O querer ouvir e não saber como. Nem a Quem.

Tenho andado preso aos versos que Stephen Hawking declamou, a convite dos Pink Floyd, na música “Keep Talking” (1994): “It doesn’t have to be like this/All we need to do is make sure we keep talking”. [Não tem de ser assim./Apenas temos de nos assegurar que continuamos a falar.] O pior é quando se fica a falar sozinho. O drama do silêncio é o desencontro.

Estudante de Ciência Política, 21 anos

NewsItem [
pubDate=2018-03-18 01:03:09.0
, url=https://observador.pt/opiniao/silencio/
, host=observador.pt
, wordCount=789
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2018_03_18_1623091628_silencio
, topics=[martin scorsese, opinião, stephen hawking]
, sections=[opiniao]
, score=0.000000]