www.publico.ptpgarcias@publico.pt - 17 mar. 03:36

Opinião. As imitações no vinho deviam ser proibidas

Opinião. As imitações no vinho deviam ser proibidas

A longo prazo não há região que vingue sendo uma espécie de babilónia do vinho. Quando muito, vingará pelo preço baixo. É isso que queremos para os vinhos portugueses?

O vinho é como o futebol e a política: nunca haveremos de estar todos de acordo. E ainda bem. Já nem falo da subjectividade do gosto ou da opção clubística ou partidária, que são mais de natureza química, a primeira, e emocional, as outras. Falo de conceitos mais amplos, como direita ou esquerda, futebol defensivo ou de ataque, tipicidade ou homogeneização.

É a sempiterna questão do perfil dos vinhos. O que é típico, afinal? O classicismo é uma virtude com futuro ou é uma ideia já do passado? Pode a tradição coabitar com a criatividade e a inovação? Peguemos no exemplo do Tejo, região que o consumidor comum tende a confundir com Lisboa, pela proximidade e também pelo tipo de vinhos que produz, com inúmeras castas nacionais e estrangeiras. Qual é, afinal, o perfil do Tejo, antiga Ribatejo, que se divide nas sub-regiões de Almeirim, Cartaxo, Chamusca, Coruche, Tomar e Santarém e que tem como principais terroirs a Charneca (na margem esquerda do rio Tejo, onde imperam os solos arenosos), o Bairro (que engloba as terras argilo-calcárias situadas entre o vale do Tejo e os contrafortes dos maciços de Porto de Mós, Candeeiros e Montejunto) e o Campo (correspondente às planícies ribeirinhas e férteis do Tejo)?

Numa nota final do Elogio do vinho da semana passada escrevi que, depois de provar mais de uma centena de vinhos em dois dias no último concurso de vinhos do Tejo, cheguei ao fim sem perceber muito bem os vinhos e sem saber que castas provei. Por inépcia e falta de conhecimentos meus, admito, mas também, acredito, por não ser perceptível um perfil mais ou menos bem definido de vinho, uma marca distintiva. Muitos dos vinhos que provei encontro-os, quase a papel químico, noutras regiões portuguesas. Vinhos bons, alguns muito bons, mas sem nada de muito diferente.

A explicação pode ser encontrada na Portaria Nº140/2000, de 5 de Março, e na lista de castas autorizadas para a produção de vinhos com a denominação de origem “Do Tejo”. Estão lá as principais variedades brancas e tintas de Portugal e de França. É uma espécie de Arca de Noé de castas, embora no seu site a Comissão Regional Vitivinícola do Tejo destaque apenas oito: Castelão, Trincadeira, Aragonês e Touriga Nacional, nas tintas, e Fernão Pires, Arinto, Chardonnay e Sauvignon Blanc, nas brancas. Se quisesse ser ainda mais didáctica, a comissão devia eleger apenas duas: Castelão e Fernão Pires. Estas são as duas variedades mais representativas do Tejo e, na minha opinião, deviam ser a base principal dos seus vinhos — e são-no cada vez menos, infelizmente. Plantar de tudo, só para seguir as modas e chegar a todos os públicos, tem o mesmo efeito de uma salada de frutas. Pode ser boa, mas não passa de uma salada de frutas.

Um leitor ligado ao mundo do vinho, Paulo Saturnino Cunha, contrapôs, perguntando-me no Facebook: “Mas qual é o perfil do Douro, o do Bafarela ou o da Niepoort? Ou, continuando com alguns exemplos, os Syrah do Crasto, da Noval, da Romaneira e os Pinots de um produtor acima, ou os blends com as Tourigas, o Rufete, a Tinta Francisca, etc? Qual é o estilo de todas as outras regiões? Enfim, a discussão seria grande, fértil e interminável.” Boas perguntas.

Paulo Silva, comercial da Niepoort, respondeu: “A Niepoort é uma das casas (entre tantas outras) que mais preza o terroir e as vinhas velhas no Douro. Redoma, Turris, Batuta, Charme, Omlet, Ultreia, Coche, Tiara (…) são do Douro e sabem a Douro, (mas) “o estilo de vinificação pode não ser do agrado de todos”. E, como exemplo das confusões que podem advir dos diferentes métodos de vinificação, lembrou o caso de Henri Jayer, um nome lendário da Borgonha que “foi enormemente criticado por ser o primeiro a deixar o engaço de lado e por utilizar vinhas de baixo rendimento”. “Os vinhos do Henri Jayer não têm a identidade da Borgonha? Para mim, uma região deve ter identidade, mas os produtores devem também ter personalidade. Essa coisa de querer fazer tudo a cheirar e a saber ao mesmo não é identidade de uma região. É pequenez e falta de visão”, defendeu. Por sua vez, Pedro Marques, criador dos vinhos Vale da Capucha, da região de Lisboa, e um dos rostos do movimento dos vinhos ditos naturais, lembrou que “a noção de qualidade de um vinho é fundamental”. “Pode não ser com o perfil clássico [caso do Château Rayas, em Châteauneuf-du-Pape) ou da casta rainha. Tem é que ser bom e acrescentar valor à região. Isso dos clássicos cheira um bocado a armário”, rematou.

Pois, esta é mesmo uma discussão interminável. Para mim, fazer no Douro um tinto de Cornifesto ou de Tinta da Barca, contido de álcool, com pouca extracção e sem passagem por barrica, será sempre um genuíno tinto do Douro, mesmo não se encaixando no perfil clássico da região. Genuíno porque é feito no Douro e a partir de castas com história e tradição regional. Nesta época, seria até um vinho moderno e original. Fazer o mesmo no Douro com Pinot Noir ou Cabernet Sauvignon será sempre uma imitação, por muito bom que seja o vinho. E isto é válido para qualquer região portuguesa. As imitações deviam ser proibidas!

Em Châteauneuf-du-Pape não há nada igual ao citado Château Rayas. Este vinho é feito só de Grenache, quando o grosso dos vinhos da região incorpora várias castas (são autorizadas treze variedades). No entanto, não sendo um Châteauneuf-du-Pape clássico, é um Châteauneuf-du-Pape puro e duro. Classicismo, tipicidade e originalidade não têm que ser conceitos antagónicos.

É evidente que as castas sempre viajaram pelo mundo e que não podemos ser ortodoxos, mas as grandes regiões que servem de referência e de inspiração para todos assentam em castas com longa história local, em terroirs bem definidos e num estilo de vinho com carácter e mais ou menos fácil de reconhecer. É assim na Borgonha, em Bordéus, no Loire, no Rhône, no Mosel, na Alsácia, no Jura, no Piemonte, etc.

Até pela sua dimensão, Portugal deve inspirar-se nos bons exemplos do Velho Mundo e não nos casos de sucesso do Novo Mundo. Alguém acredita que o futuro de regiões como o Tejo está nos vinhos de Tannat, de Syrah, de Cabernet Sauvignon, de Riesling, de Chardonnay ou de Sauvignon Blanc?. Hoje, faz-se vinho bebível em qualquer lugar e com qualquer casta, e certamente que o Tejo e outras regiões portuguesas continuarão a fazer vinhos bons com uma multitude de castas nacionais e estrangeiras. Mas o negócio do vinho não é para sprinters, é para maratonistas, e a longo prazo não há região que vingue sendo uma espécie de babilónia do vinho. Quando muito, vingará pelo preço baixo. É isso que queremos para os vinhos portugueses?

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